Postagens

Postagem em destaque

OFÉLIA - Poema em Prosa - Sarainés Kasdan

Imagem
  OFÉLIA Sarainés Kasdan Tradução de Paulo Soriano A morte chegou a destempo, como se fosse uma amante resignada e abatida. Não a esperava o salgueiro, com seus galhos abertos; não a esperava a tarde, silente e pacífica; não a esperava as flores brancas, vermelhas e amarelas. E, claro, nem Ofélia por ela esperava quando seu corpo se rendeu ao riacho de águas cristalinas. Tudo isso aconteceu enquanto a tarde fenecia junto a um salgueiro de galhos abertos, um salgueiro-chorão de folhas cinzentas, um salgueiro que oferecia suas folhas de outono à corrente cristalina. Naquela tarde, Ofelia visitou o salgueiro e o riacho. Levava consigo um buquê de flores brancas, vermelhas e amarelas; pendurou o buquê em um galho quebradiço, um galho invejoso a ponto de partir-se, um galho moribundo que, quando se quebrou, levou consigo folhas cinzentas, flores brancas, vermelhas e amarelas, e um corpo feminino e um ramo, em meio ao assombro do riacho cristalino. Ela poderia se ter lev...

A FELICIDADE - Conto - Guy de Maupassant

Imagem
A FELICIDADE Guy de Maupassant Tradução de autor desconhecido do séc. XIX Era a hora do chá, antes de acender as luzes. A chácara dominava o mar; o Sol, desaparecido, roseara o céu com a sua passagem, esparzindo pelo caminho uma poeira de ouro, e o Mediterrâneo, sem uma ruga, sem um frêmito, liso, luzidio ainda ao entardecer, parecia uma imensa placa de metal polido. Ao longe, à direita, montanhas pontiagudas desenhavam o negro perfil sobre a púrpura pálida do oceano. Falava-se de amor, discutia-se este velho assunto, repetiam-se frases já ditas muitas vezes. A morna melancolia do crepúsculo suavizava as palavras, enternecia as almas, e esta palavra—amor—que vinha sem cessar, ora pronunciada por uma voz forte de homem, ora suspirada por uma voz de mulher, de timbre ligeiro, parecia encher o pequeno salão, voltear nele como um pássaro e plainar como um espírito. Pode-se amar muitos anos em seguida? —Sim — pretendiam uns. —Não — afirmavam outros. Distinguiam-se casos, e...

AOS VINTE ANOS - Conto Humorístico - Aluísio Azevedo

Imagem
AOS VINTE ANOS Aluísio Azevedo (1857 – 1913) Abri minha janela sobre a chácara. Um bom cheiro de resedás e laranjeiras entrou-me pelo quarto, de camaradagem com o sol, tão confundidos que parecia que era o sol que estava recendendo daquele modo. Vinham ébrios de abril. Os canteiros riam pela boca vermelha das rosas; as verduras cantavam, e a república das asas papeava, saltitando, em conflito com a república das folhas. Borboletas doidejavam, como pétalas vivas de flores animadas que se desprendessem da haste. Tomei a minha xícara de café quente e acendi um cigarro, disposto à leitura dos jornais do dia. Mas, ao levantar os olhos para certo lado da vizinhança, dei com os de alguém que me fitava; fiz com a cabeça um cumprimento quase involuntário e fui deste bem pago, porque recebi outro com os juros de um sorriso; e, ou porque aquele sorriso era fresco e perfumado como a manhã daquele abril, ou porque aquela manhã era alegre e animadora como o sorriso que desabotoou nos lábios da ...

À TONA D'ÁGUA - Conto - Raul Pompeia

Imagem
À TONA D'ÁGUA (Microscópica) Raul Pompeia (1863 – 1895) I Há crepúsculos que parecem desmaios. Olha-se para cima e vê-se o firmamento pálido; o ocidente apresenta a expressão vaga do olhar da criança que se faz mulher e que sofre a transição. Parece que uma nota de espanto percorre a natureza… Segue-se depois a noite, a escuridão, o desfalecimento da luz. A alma compreende que a noite é uma ausência. Vai além: apalpa esta ausência. É deleitoso. Tem-se os olhos abertos e sonha-se. Os espetáculos são panoramas de fumaça; e sempre nessa confusão de escuros e meias sombras, destaca-se um ponto. Quem vê este ponto é o coração. Perguntem-no aos amantes. Rosália estava vendo um crepúsculo assim; e esperava ansiosa pela noite… à praia. II Resvala a canoa, macio como a nuvem à flor do céu… Rosália já está com ele. Só quem os vê é a noite. O remeiro canta distraído uma barcarola por trás do estofo que os encobre. E vão… III Trocam olhares que os prendem como elos de doces...

O INSTINTO DE SAMUEL - Anedota - Gringo

Imagem
O INSTINTO DE SAMUEL Gringo (Séc. XX) Levi, depois que se casou com Rebeca, estabeleceu-se em Marselha com uma pequena loja de produtos de higiene e de toucador. Levi vendia sua mercadoria e Rebeca ficava no caixa, recebendo as importâncias e dando os trocos. Ao mesmo tempo segurava ao colo o pequeno Samuel, nascido há poucos meses, e que parecia já se interessar muito com o modo de agir dos clientes. De vez em quando, Samuel lançava gritos terríveis, verdadeiros urros de raiva. — Não sei que tem este menino — disse o pai. — Ele não está doente, mas grita todas as vezes que um freguês se retira. Rebeca, que observara a atitude do filho, respondeu calmamente ao esposo: —  Ele não tem nada… Apenas grita quando me vê entregar o troco ao freguês. Fonte: “Vamos Ler”/ RJ, edição de 18 de julho de 1940. I lustração: Elizabeth Nourse (1859 - 1938)