O AMIGO DEVOTADO - Conto de Oscar Wilde
O AMIGO DEVOTADO
Oscar
Wilde (1854 – 1900)
Tradução
de Paulo Soriano
Era uma vez um jovem
trabalhador e honesto... Chamava-se Hans. Morava sozinho numa pequena casa e
passava o dia inteiro cuidando do jardim. Em toda a região, não havia jardim
tão bonito quanto o seu. Encontravam-se aí as mais variadas espécies de flores que
cresciam ao lado das mais lindas rosas.
O pequeno Hans tinha
muitos amigos, mas o seu maior amigo, o "amigo fiel" era Hugh, o rico
moleiro. Realmente, o rico moleiro era tão amigo de Hans que jamais visitava o
seu jardim sem inclinar-se sobre os pés de cravo para admirá-los de perto, ou
sem colher um bom punhado de flores que levava para casa.
— Os amigos
verdadeiros repartem tudo entre si — costumava dizer o rico moleiro. O pequeno
Hans concordava com a cabeça e sorria, sentindo-se muito orgulhoso por ter um
amigo com tão nobres ideias.
E o pequeno Hans
colhia aquelas palavras com um sorriso nos lábios, sentindo-se orgulhoso e
feliz por ter um amigo que pensava tão nobremente.
Às vezes, porém, os
vizinhos achavam estranho que o rico moleiro nunca concedesse coisa alguma ao
pequeno Hans. Conquanto possuísse cem sacos de farinha armazenados em seu
estabelecimento comercial, seis vacas leiteiras e uma boa criação de galinhas,
jamais compensava o pequeno Hans pelas flores que colhia de seu lindo jardim. O
jovem, no entanto, jamais se preocupava com isso.
Nada o encantava
tanto quanto ouvir as belas coisas que o moleiro costumava dizer sobre a
solidariedade dos verdadeiros amigos.
Assim, pois, o
pequeno Hans cultivava o seu jardim. Na primavera, no verão e no outono,
sentia-se muito feliz; mas, quando chegava o inverno, e ele não tinha flores
para levar ao mercado, chegava a sofrer de frio e fome, deitando-se, à noite,
muitas vezes, sem nada ter comido durante o dia.
Além disso, no
inverno, sentia-se muito só, porque o rico moleiro jamais o visitava durante
essa estação.
— Não convém visitar
o pequeno Hans enquanto o inverno durar — dizia, às vezes, o rico Moleiro à sua
mulher. — Quando uma pessoa está em apuros, não devemos atormentá-la com
visitas. Essa é a minha opinião, e estou certo de que tenho razão. Por isso,
esperarei a primavera e, então, tornarei a visitar o meu amigo. Poderá dar-me
um cesto de flores e isto o alegrará muito.
— És realmente muito
bom, querido — afirmava sua mulher, sentada em um cômodo divã perto de um bom
fogo de lenha. — Gosto imensamente de te ouvir falar sobre a amizade. Estou
certa de que o padre da comarca não diria sobre ela tão belas coisas como tu.
— E não poderia
convidar o pequeno Hans a vir à nossa casa? — perguntava o filho do moleiro. Se
o pobre homem está em dificuldade, dar-lhe-ei metade do que é meu, e, assim, já
não sofrerá fome:
— Como és tolo! —
exclamou o moleiro. — Na verdade, não sei para que serve mandar-te para a
escola. Parece que não aprendes nada. Se o pequeno Hans viesse cá, e visse o
nosso bom fogo, e comesse da nossa excelente comida, e tomasse do nosso ótimo
vinho tinto, poderia sentir inveja. E a inveja é uma coisa terrível que
prejudica os melhores caracteres. Realmente, eu não poderia consentir em que o caráter
de meu grande amigo se prejudicasse. Estarei sempre atento para que o pequeno
Hans não se desvie do bom caminho. Além disso, se ele viesse cá, poderia
pedir-me um pouco de farinha, e eu não lhe poderia dar. A farinha é uma coisa e
a amizade é outra; não devem confundir-se, portanto.
— Quão inteligente
és, querido! Como falas bem! — disse a mulher do moleiro, servindo-lhe um
grande copo de cerveja. — Sinto-me tão bem quando falas como quando estou na
igreja.
— Muitos sabem agir —
replicou o moleiro. — Poucos, porém, sabem falar com elegância e aprumo, o que
prova que falar bem é não só mais difícil do que agir, como mais bonito.
E fixou tão severo
olhar no filho que este sentiu vergonha de si mesmo, baixando a cabeça e
chorando baixinho.
Era tão jovem, que
bem podereis vós desculpá-lo!
*
Logo que passou o
rigor do inverno e os botões começaram a abrir-se em rosas, o moleiro disse à
sua mulher que já era tempo de visitar o pequenos Hans.
— Ah, que bom coração
tens! — exclamou a mulher. — Estás sempre pensando nos outros. Não te esqueças
de levar o cesto grande para trazeres as flores.
O moleiro, então,
desceu à colina com a cesta no braço.
— Bom dia, Hans —
disse o moleiro.
— Bom dia — respondeu
Hans, todo sorridente e feliz.
— Como passaste o
Inverno?
— Bem, bem —
respondeu, prontamente, o jardineiro. — Muito obrigado pelo seu interesse.
Houve alguns momentos duros, mas, agora, chegou a primavera e sinto-me quase
feliz... — Ademais, as flores estão muito bonitas.
— Em casa, falamos
muito a teu respeito, Hans — disse-lhe o moleiro. — Pensávamos no que seria de
ti, em pleno inverno.
— Quanta amabilidade!
— exclamou Hans. — Pensei que me tivésseis esquecido.
— Hans!
Francamente... Como podes falar desta maneira? — disse o moleiro. — Na
verdadeira amizade não há esquecimento. É isso que há de mais admirável. Temo,
porém, que não compreendas a poesia da amizade... Mas, voltando às flores, que
belas estão!
— Sim, estão muito
bonitas — respondeu Hans. — Vou levá-las ao mercado, onde as venderei à filha
do burgomestre e, com esse dinheiro, comprarei outra vez o meu carrinho de mão.
— Queres dizer que o
vendeste, então? Foi uma tolice.
— Certamente. Mas o
fato é que me vi obrigado a fazê-lo. O inverno foi muito rigoroso... e eu
fiquei sem dinheiro para comprar pão. Vendi, primeiramente, os botões de prata
de meu traje dos domingos; depois, me desfiz da corrente de prata que recebi do
vovô e, em seguida, vendi a minha flauta. Por último, vendi o meu carrinho.
Agora, porém, vou resgatar tudo.
— Hans — disse o
moleiro — dar-te-ei o meu carrinho de mão. Não está em muito bom estado. Um dos
lados está precisando de reparo, mas, apesar disso, te darei. Sei que é muita
generosidade de minha parte e que a muita gente isso parecerá uma loucura, mas
não sou como os outros. Estou em que a generosidade é a essência da amizade e,
além disso, comprei um carrinho novo. Portanto, podes ficar tranquilo...
dar-te-ei o meu carrinho.
— Obrigado, és muito
generoso — disse o pequeno Hans. — Posso consertá-lo muito bem porque tenho
aqui uma tábua.
— Uma tábua! —
exclamou o moleiro. — Muito bem! Isso é juntamente o que necessito para o teto
do meu estábulo. Há uma fenda que é preciso tapar. Muito bem, eis uma bela
oportunidade de me prestares um serviço. Realmente, uma boa ação é sempre bem recompensada.
Dei-te o meu carrinho e, agora, dás-me a tua tábua. É claro que o carrinho vale
muito mais que a tábua, mas a amizade sincera não olha estas coisas. Dá-me,
pois, a tua tábua e, hoje mesmo, consertarei o teto do meu estábulo.
— Pois não — replicou,
solícito, o pequeno Hans.
Foi correndo ao outro
jardim e trouxe uma tábua.
— Não é muito grande
— disse o moleiro, examinando-a. — Creio que só dará para o reparo do teto do
estábulo. Não sobrará madeira para consertares o carrinho, mas, é claro que a
culpa não é minha... E, agora, que te dei o meu carrinho, penso que me poderás
dar em troca umas flores. Aqui tens o cesto; procura enchê-lo quase por
completo.
— Quase por
completo?! — perguntou, aflito, o pequeno, vendo que o cesto era muito grande
e, se o jardineiro o enchesse, não teria mais flores para levar ao mercado.
— Francamente! —
exclamou o moleiro. — Uma vez que te dou o meu carrinho, não julguei que fosse
muito pedir-te algumas flores. Talvez eu esteja equivocado, mas acreditava que
a amizade, a verdadeira amizade, estava isenta de toda classe de egoísmo.
— Meu bom amigo, meu
maior amigo — protestou o pequeno Hans —, todas as flores do meu jardim estão à
tua disposição.
E correu a colher os
cravos perfumosos e encher a grande cesta do moleiro das mais lindas flores de
seu jardim.
— Adeus, Hans — disse
o moleiro, subindo novamente a colina com a sua tábua ao ombro e a cesta cheia
de flores ao braço.
— Adeus — respondeu o
pequeno Hans.
E pôs-se a cavar
alegremente: estava tão contente de possuir um carrinho de mão!
*
Na manhã seguinte,
quando novamente estava cultivando o seu jardim, ouviu a voz do moleiro que o
chamava da estrada. Trazia ao ombro um grande saco de farinha.
— Hans — disse o
moleiro —, queres levar-me este saco de farinha ao mercado?
— Oh, é pena — disse
Hans —, mas estou hoje muitíssimo ocupado. Tenho de regar ainda todo o jardim,
de podar muitas roseiras, enfim, de fazer ainda quase todo o serviço.
— Francamente! —
exclamou o moleiro. — Acreditava que, em consideração a te haver dado o meu
carrinho, não te negarias a fazer-me um favor.
— Oh, sim! Eu não me
nego! — protestou o pequeno Hans. — Jamais deixarei de agir como um verdadeiro
amigo.
E correu a buscar o
seu gorro, partindo, em seguida, com o grande saco ao ombro.
Era um dia de calor e
a estrada estava muito poeirenta. Antes de alcançar o posto que marcava a sexta
milha, Hans já estava tão cansado que teve de sentar-se para poder continuar
depois. Chegou ao mercado, vendeu toda a farinha e voltou quase contido a casa,
porque temia encontrar-se com algum salteador, se se demorasse pelo caminho.
— Que trabalho árduo!
— disse consigo mesmo ao deitar-se, à noite. — Mas estou contente por não me
haver negado, porque o moleiro é o meu melhor amigo e, ademais, vai dar-me o
seu carrinho.
Na manhã seguinte,
muito cedo, o moleiro chegou para receber o dinheiro do saco de farinha, mas o
pequeno Hans estava tão fatigado que ainda não havia deixado a cama.
— Palavra! — exclamou
o moleiro. — És muito preguiçoso. Quando me lembro de que te dei o meu
carrinho, acho que devias trabalhar com mais ardor.
— Sinto muito —
respondeu o pequeno Hans. — Eu estava tão fatigado que pensei que me havia
deitado há pouco. Agora, porém, já me sinto bem.
— Bravo! — exclamou o
moleiro, dando-lhe uma palmada no ombro. — Preciso que faças o reparo no teto
do estábulo.
O pequeno Hans tinha
grande necessidade de trabalhar no seu jardim, porque havia dois dias que não
regava as suas flores, mas não quis negar-se a fazer a vontade do moleiro, que
era o seu melhor amigo.
Vestiu-se,
apressadamente, e acompanhou o rico moleiro ao estábulo.
Trabalhou o dia todo.
Ao anoitecer, o moleiro veio verificar como iam as coisas.
— Terminaste o
serviço? — perguntou ele, alegremente.
— Está quase pronto.
— Não há
trabalho melhor do que o que se faz por outro! — exclamou o moleiro. — E agora
que reparaste o teto do estábulo, é melhor que voltes para casa, a fim de
descansares, pois amanhã necessito de que leves os meus carneiros à montanha.
No dia seguinte,
quando o pequeno Hans voltou da montanha, estava tão cansado que adormeceu em
uma cadeira.
— Que tempo bom para
as minhas flores — pensou ele, ao acordar. E ia trabalhar quando chegou o
moleiro e lhe pediu que fosse trabalhar no seu cercado, que precisava ser
cultivado. O pobre jardineiro lembrou-se de suas flores. Precisava tanto de
trabalhar no seu jardim... Mas acompanhou o moleiro, consolando-se em pensar
que ele era o teu melhor amigo.
— Além disso — dizia consigo
mesmo —, vai dar-me o seu carrinho.
O pequeno Hans
continuou trabalhando para o moleiro, e este dizia muitas coisas belas sobre a
amizade, coisas que Hans copiava em seu livro verde e que relia à noite, pois
amava a leitura.
*
Certa noite, estava o
pequeno Hans sentado janto ao fogo, quando bateram à porta.
A noite era
negríssima. O vento soprava forte. Era intenso o frio.
— Será algum pobre
viajante? — disse consigo Hans, e correu para abrir a porta.
Era o moleiro que
estava com uma lanterna em uma mão e sustinha com a outra as rédeas de seu belo
cavalo.
— Querido Hans —
gritou ele —, estou muito aflito. Meu filho caiu da escada. Está ferido.
Preciso do médico. Mas ele mora tão longe daqui, e a noite está tão escura, que
me lembrei de que era melhor que você fosse em meu lugar.
— Certamente —
exclamou o pequeno Hans. — Alegra-me muito que tenhas lembrado de mim. Irei
imediatamente. Peço-te apenas a lanterna, pois está tão escuro que eu temo cair
em algum pântano.
— Sinto muitíssimo —
respondeu o moleiro. — Mas é a minha lanterna nova e seria uma grande perda se
voltasses sem ela.
— Bem, não falemos
mais nisso! Irei sem lanterna.
A noite era tão negra
que o pequeno Hans quase nada via. No entanto, depois de caminhar durante cerca
de três horas, chegou à casa do médico, batendo à porta.
— Quem bate? — gritou
o doutor.
— Sou eu, doutor!
Hans!
— E que desejas,
Hans?
— O filho do moleiro
caiu de uma escada e machucou-se. Por isso, é necessário que o doutor vá até
lá.
— Muito bem —
replicou o médico.
Montou o seu cavalo e
dirigiu-se à casa do moleiro, sendo seguido por Hans, que caminhava a pé.
Começou a chover e
Hans já nada via. Finalmente, perdeu o caminho. Vagou pelo terreno baldio. A
chuva aumentava mais e mais. Havia muitos lugares pantanosos e, na escuridão,
Hans caiu em um pântano, afogando-se.
Todo mundo assistiu
ao enterro de Hans porque ele era muito querido.
— Era eu o seu melhor
amigo — dizia o moleiro. — É justo, pois, que também assista a tudo. A morte do
pequeno Hans é, sem dúvida, uma grande perda para todos nós. — Sobretudo —
acrescentava baixinho — para mim. Na verdade, fui muito generoso ao
oferecer-lhe o meu carrinho velho e agora não sei o que fazer com ele. Está em
tão mal estado que de nada me serve. Também não encontrarei a quem vendê-lo.
E voltando-se para os
amigos, afirmou:
— E eu que lhe havia
prometido o meu carrinho de mão! Asseguro-vos que, para o futuro, jamais darei
nada a alguém. Pagam-se sempre as consequências de se ter sido generoso...
Ilustração de Charles Robinson (1870 –
1937).
O pequeno Hans não merecia morrer, o Moleiro deveria ter uma lição 🥲. Li está história quando era criança e nunca me saiu da memória
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