O CONTO DE ALIBECH E FREI RÚSTICO - Conto Humorístico de Giovanni Boccaccio


O CONTO DE ALIBECH E FREI RÚSTICO
Giovanni Boccaccio
(1313 – 1375)


Na cidade de Capsa[1], na Berbéria, havia, há muito tempo, um homem muito rico que tinha, entre outros filhos, uma filhinha bela e graciosa chamada Alibech. Não sendo ela cristã, e ouvindo os muitos cristãos que na cidade louvavam a fé cristã e o serviço dedicado a Deus, um dia perguntou a um deles de que maneira e com menor impedimento poderia servir a Deus. Este lhe respondeu que melhor serviam a Deus aqueles que mais fugiam das coisas do mundo, como os que se haviam retirado para as solidões dos desertos de Tebaida. A jovem, que mui ingênua era, e que teria algo em torno de catorze anos, não por desejo consciente, mas por um impulso infantil, sem dizer nada a ninguém, pôs-se, logo na manhã seguinte, às escondidas e sozinha, a caminho do deserto de Tebaida. E, sem que a sua determinação esmorecesse, com grande e exauriente esforço, depois de alguns dias alcançou aqueles lugares ermos. Vendo ao longe uma casinha, dirigiu-se a ela, na qual encontrou, à porta, um santo homem. Maravilhado em vê-la naquele ermo, perguntou a ela o que procurava. Ela respondeu que, inspirada por Deus, queria pôr-se a seu serviço e buscava quem pudesse ensinar-lhe como fazê-lo.

O honrado homem, vendo-a assim tão jovem e bela, temeu que, se a mantivesse em sua casinha, iria o diabo enganá-lo. Assim, elogiou sua boa disposição e, dando-lhe algumas raízes, frutos silvestres e tâmaras para comer, e água para beber, disse-lhe:

— Minha filha, não muito longe daqui há um santo homem que, no que procuras, é mestre muito melhor do que eu. Procura-o.

E ensinou-lhe o caminho. E, lá chegando, ouviu as mesmas palavras. Assim prosseguindo, chegou por fim à cela de um jovem eremita, uma pessoa muito boa e devota, cujo nome era Rústico, a quem a jovem fez a mesma pergunta que formulara aos demais. Ele, intentando pôr a uma grande prova a sua firmeza, não mandou, como os demais, que ela seguisse adiante, mas a acolheu em sua cela.

Chegada a noite, o monge preparou à jovem uma caminha de folhas de palmeira e disse-lhe que ali descansasse. Isto feito, as tentações não tardaram a travar uma luta contra as suas forças. O jovem eremita, que se enganara quanto ao poder de sua resistência, sucumbiu já aos primeiros assaltos da tentação. E, deixando de lado os pensamentos santos, as orações e as disciplinas[2], trouxe à memória a juventude e a beleza da jovenzinha e começou a pensar como lidaria com ela, para que a moça não percebesse que ele, como homem dissoluto, queria alcançar aquilo que dela desejava.

E, experimentando primeiro com certas perguntas, percebeu que ela nunca havia conhecido homem. Concluindo que ela era mesmo tão ingênua quanto parecia ser, pôs-se a imaginar uma maneira de induzi-la a satisfazer aos seus desejos, malgrado convicta de estar em verdade a servir a Deus. Primeiramente, com muitas palavras, mostrou a ela o quão inimigo de Nosso Senhor era o diabo; depois, convenceu-a de que o serviço mais gratificante a Deus era meter o diabo no inferno, ao qual o Nosso Senhor o condenara. A mocinha perguntou-lhe como se fazia aquilo. Rústico disse-lhe:

— Logo saberás. Para tanto, tu hás de fazer tudo o que eu fizer.

E começou a tirar as poucas vestes que tinha, ficando completamente nu. A mocinha fez o mesmo. Rústico ficou de joelho, como se estivesse pronto para orar, ordenando à moça que fizesse o mesmo à sua frente. Assim permanecendo os dois, e sentindo-se Rústico, ao contemplá-la assim tão bela, mais do que nunca inflamado em seu desejo, veio-lhe a ressurreição da carne. Alibech, vendo aquilo, maravilhou-se e disse-lhe:

— Rústico, que coisa é esta que vejo em ti, que se projeta para fora, e que eu não tenho?

— Oh, minha filha — disse Rústico —, isto é o diabo de que te falei. E vê que ele me causa um imenso transtorno: um incômodo tão grande que mal consigo suportá-lo.

Então, disse a mocinha:

— Oh, Deus seja louvado! Eu vejo que estou em melhor condição que tu estás, já que não tenho esse diabo!

Rústico disse:

— Falas a verdade. Mas tu tens outra coisa que eu não tenho, em vez disto.

Alibech disse:

— E o que é?

Rústico disse:

— Tens o inferno e te digo que creio que Deus cá te enviou para a salvação de minha alma, pois este diabo me atormenta impiedosamente. Se tu tens dó de mim, e permitires que eu o meta em teu inferno, proporcionarás a mim um grande alívio e darás a Deus um grande prazer e serviço, se vieste mesmo a este lugar para fazer o que disseste.

A jovem, de boa-fé, respondeu:

— Oh, meu padre!  Já que eu tenho o inferno, que seja feita a tua vontade.

Disse, então, Rústico:

— Minha filha, bendita sejas! Metamos, então, no inferno o diabo, e assim ele me deixará em paz.

E, dizendo isto, levou a jovem para uma daquelas caminhas e lhe ensinou como deveria postar-se para encarcerar o maldito de Deus. A jovem, que nunca havia posto em seu inferno diabo algum, sentiu, da primeira vez, alguma dor. Por isto, disse a Rústico:

— Por certo, meu padre, este diabo deve ser coisa muito ruim, e verdadeiramente inimigo de Deus, quer no inferno, ou em outra parte, pois dói quando metido lá dentro.

Disse Rústico:

— Filha, não será sempre assim.




E para evitar que aquilo acontecesse novamente, antes que saíssem da caminha, por mais seis vezes meteram o diabo no inferno, até que, da última vez, lograram extrair toda a soberba da cabeça do diabo, que, de bom grado, permaneceu em paz.

Mas, retornando, muitas vezes, depois desta ocasião, a soberba do diabo, e estando a jovem sempre obediente ao dever de aplacá-la, sucedeu que a brincadeira começou a agradar à mocinha. E disse ela a Rústico:

— Bem vejo que aqueles sábios homens de Capsa diziam a verdade: servir a Deus é a coisa muito boa.  Na verdade, não me recordo de qualquer outra coisa que tenha me dado tanto deleite e prazer como meter o diabo no inferno. Por isto, acho que é uma besta uma pessoa que se dedica a outra coisa que não seja servir a Deus.

Por isto, Alibech muitas vezes procurava Rústico, dizendo-lhe:

— Meu padre, eu vim aqui para servir a Deus, não para ficar ociosa. Vamos, então, meter o diabo no inferno!

Às vezes, depois de fazer isto, ela dizia:

— Rústico, não sei por que o diabo foge do inferno. Porque, se ele estivesse ali de boa vontade, tanta quanto aquela com que o inferno o recebe, ele nunca mais sairia de lá.

Assim, a jovem convidava Rústico com tão grande frequência, incitando-o ao serviço de Deus, que terminou por consumir toda a lã do gibão, de modo que ele sentia frio nas ocasiões em que outro transpiraria. Por isto, ele começou a dizer à jovem que o diabo somente necessitava de castigo, sendo posto no inferno, quando, por soberba, erguesse a cabeça.

— E nós, pela graça de Deus, já tanto o temos castigado, que agora é ele quem pede a Deus para ficar em paz.

E, assim, impôs um certo silêncio à jovem. Esta, percebendo que Rústico não lhe pedia mais que pusesse o diabo no inferno, disse-lhe certo dia:

— Rústico, enquanto o teu diabo já está castigado, e não te incomoda mais, o meu inferno não me deixa tranquila. Por isto, tu farás bem se, com o teu diabo, ajudares a acalmar a fúria de meu inferno, assim como meu inferno ajudou a aplacar a soberba de teu diabo.

Rústico, que vivia de água e raízes de ervas, mal podia acudir aos convites. E disse-lhe que, conquanto muitos diabos fossem necessários tranquilizar o seu inferno, faria, em todo caso, o que pudesse. Assim, às vezes a satisfazia, mas tão raramente que era como lançar uma semente na boca de um leão. Então a jovem, achando que não estava a servir a Deus tanto quanto queira, resmungava.

Mas, enquanto corria a altercação entre o diabo de Rústico e o inferno de Alibech, em razão   do excesso de desejo contra a falta de potência, um incêndio em Capsa consumiu a casa do pai de Alibech, causando a morte deste, de todos os seus filhos e de outros familiares. Assim, fez-se Alibech herdeira de todos os bens deixados por ele. Em razão disto, um jovem chamado Neerbale, que em magnificências gastara todos os seus bens, ficou sabendo que Alibech estava viva. Pôs-se, assim, a procurá-la e a encontrou antes que o tribunal se apropriasse dos bens deixados pelo pai da jovem, como acontece, frequentemente, aos que morrem sem deixar herdeiros. Portanto, para o grande prazer de Rústico, e contra a vontade dela, o jovem trouxe-a de volta a Capsa e a tomou por esposa, fazendo-se herdeiro de um grande patrimônio.

Todavia, quando as mulheres perguntaram a Alibech como fazia para servir a Deus no deserto — e nesta ocasião Neerbale ainda não se deitara com ela —, a moça respondeu que o fazia metendo o diabo no inferno. Disse, também, que Neerbale cometera um grande pecado em tirá-la daquele serviço.
As mulheres perguntaram:

— E como se mete o diabo no inferno?

A jovem, com palavras e gestos, demonstrou como se fazia. E as mulheres riram tanto que ainda estão a rir, e disseram:

— Não fiques triste, filha, que isto também se faz aqui. Neerbale bem servirá contigo a Deus Nosso Senhor da mesma forma.

Depois, como as mulheres contaram umas às outras o episódio por toda a cidade, tronou-se popular o ditado — e este, transpondo o mar, chegou até nós e ainda é ouvido — de que o mais o mais aprazível serviço que se pode fazer a Deus é meter o diabo no inferno.

Por isto, jovens damas, que estais necessitadas da graça de Deus, aprendei a meter o diabo no inferno, porque isto é coisa muito gratificante a Deus e agradável às partes, podendo disto nascer e seguir-se um grande bem.


Versão em português de Paulo Soriano.


Ilustração: Gravura de autor desconhecido do século XV (edição veneziana do Decamerone, de 1492). 

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