A ÁRVORE DE NATAL - Conto de Fíodor Dostoievski



A ÁRVORE DE NATAL

Fíodor Dostoievski

(1821 – 1881)

 

Em uma grande cidade, na noite de Natal, sob um frio intensíssimo, vi um menino, ainda muito criança, de oito anos apenas, talvez de menos, ainda bem pequeno para mendigar, mas já perseguido e torturado pela miséria. Esse menino despertou tiritando, pela manhã, num quarto úmido e frio, abrigado com uma espécie de bata, velha e puída. A respiração saia-lhe em forma de vapor branco: sentado a um conto, sobre um baú, distraía-se ativando de propósito sua respiração, divertindo-se vendo-a sair. Mas tinha muita fome. Desde a madrugada, aproximara-se já várias vezes da cama de tábuas, coberta com um delgado enxergão, em que estava deitada a mãe, com a cabeça apoiada em um monte de farrapos à guisa de travesseiro.

Como chegara até ali aquela pobre mulher? Sem dúvida saíra, com seu filho, de alguma cidade longínqua, em que a acometera a enfermidade. E ali estava havia dois dias. Na companhia de gente miserável como ele. Dia de festa, os outros inquilinos andrajosos saíram. Mas um deles está deitado há vinte e quatro horas, bêbado ainda, sem esperar a festa. De outro recanto brotam os lamentos de uma velha de oitenta anos, entrevada pelo reumatismo. Essa velha foi ama, em seu tempo. Agora está morrendo, solitária, gemendo, queixando-se, resmungando contra o menino, que começa a ter medo de aproximar-se do lugar em que ela agoniza.

O menino encontrou água no passadiço, mas nem sequer um pedaço de pão, e volta pela décima vez a despertar a mãe. Começa a assustar-se naquele escuro recanto. A tarde avança, e,  no entanto, não há luz. Encontra às tontas o rosto da mãe, e surpreende-se de que ela não se move, e esteja tão fria quanto a parede.

—Faz tanto frio? — pensa o menino.

Permanece imóvel um momento com a mão sobre o ombro da morta. Depois, sopra os dedos para aquecê-los. Apanha seu gorro sobre a cama, procura devagar a porta e sai do subsolo. Já o teria feito se não fosse o grande cão que, lá em cima, no passadiço, diante da porta do vizinho, ladra todo o santo dia. Mas o cão já ali não se encontra, e eis o menino na rua.

—Meu Deus, que cidade!

Até então, nunca vira nada semelhante. Lá de onde veio a noite é mais escura. Há somente um lampião para toda a rua. Casinhas baixas fechadas com postigos. Desde que escurece, ninguém pela rua. Todo mundo se encerra em sua casa. Só uma multidão de cães que ladram, centenas, milhares de cães que latem a noite inteira. Mas, em compensação, lá fazia muito calor e lhe davam de comer. Aqui, meu Deus, como seria bom comer! Que alvoroço! Que barulho! Que luz! Que mundo de gente! Quantos cavalos e carros! E o frio... o frio... O corpo dos cavalos fumega frio, e seus ardentes focinhos sopram vapor branco. Suas ferraduras soam no calçamento através da branca neve. E como se atropela toda essa gente!

— Meus Deus, que vontade tenho de comer um pedacinho de qualquer coisa!... E agora que me doem os dedos...

Um guarda acaba de passar e volta-se para não ver o menino. Outra rua mais... Oh! Como é larga! Certamente vão esmagá-lo aqui. Como gritam todos, como correm, como rodam!... E luzes e mais luzes! E isto, que será? Oh! Que vidro grande! E atrás desse vidro um quarto, e nesse quarto uma árvore que sobe até o teto. É a árvore de Natal... E quantas luzes há debaixo da árvore! Quanto papel de ouro e maçãs, rodeadas de bonecas, de cavalinhos! Há muitos meninos no quarto, bem vestidos, muito limpinhos. Riem, brincam, comem, bebem... Aqui uma pequena que dança com outro menino... Que menina linda! E lá a música que se ouve através do vidro.

O menino contempla aquilo tudo com admiração. E ri... Já não sente a dor dos dedos nem dos pés. Os dedos de sua mãozinha apenas incharam, por causa do frio, e ele não pôde dobrá-los. Nem é bom tentá-lo. De repente, sente que lhe doem os dedos. Chora e se afasta... Divisa, através de outro cristal, outra habitação e mais árvores e pastéis de toda espécie sobre a mesa. Confeitos vermelhos, amarelos... Quatro formosas damas se acham sentadas e alguém chega, entre muitos senhores. O menino desliza, abre de repente a porta... Oh, quanto ruído fazem ao vê-lo! Que agitação! Uma dama levanta-se, põe-lhe uma moedinha na mão e abre-lhe ela própria a porta. O menino tem medo... A moedinha cai-lhe das mãos e corre pelos degraus da escada. Seus dedinhos vermelhos já não podem fazer movimento para segurar a moeda. O menino sai correndo... Aonde vai? Ignora-o. Quer chorar, mas tem muito medo. E corre, corre, soprando as mãozinhas. E o pesar se apodera dele. Sente-se tão abandonado, tão triste... E súbito... Que há? Uma multidão permanece ali e olha. Em uma janela, por traz do cristal, três bonecas bonitas, vestidas com ricos vestidos vermelhos e amarelos, parecem vivas. E aquele velhinho sentado que parece tocar violino... Há outros dois, parados, que tocam pequenos, pequeníssimos violinos movendo o cabeça ao compasso da música... Olham-se um ao outro, e seus lábios se movem: falam de verdade! Apenas não são ouvidos através do vidro. E o menino pensa primeiro que eles estão vivos... E quando compreende que são bonecos, põe-se a rir. Nunca viu bonecos semelhantes, e não sabia que os houvesse assim. Tem uma vontade louca de chorar... Mas não se sente com coragem diante daqueles bonecos tão graciosos. Inesperadamente, se sente agarrado pela roupa. A seu lado se acha um menino grande e mau, que lhe dá um murro na cabeça... O menino cai. Ao mesmo tempo, ouve gritos. Fica um momento rígido de pavor. Em seguida, se levanta rapidamente, e põe-se a correr... a correr... Enfia-se por uma porta, não sabe onde, e oculta-se em um pátio, atrás de uma pilha de lenha.

—Aqui não me encontrarão, pois há muita escuridão.

 

Acocora-se. Encolhe-se. Seu medo é tão grande que apenas se atreve a respirar. E, de repente, sente um bem-estar infinito. Suas mãozinhas, seus pequeninos pés não mais lhe doem. Tem calor, tanto calor como ao lado de uma estufa. E todo o seu corpo estremece. Ah, vai dormir! Como é bom dormir.

—Ficarei aqui um momento e depois voltarei a ver os bonecos — pensava o garoto, que sorriu ao recordar os bonecos. — Parecem vivos.

Agora, ouve a canção da sua mãezinha.

—Mamãe, estou dormindo... Ah, como aqui é bom para dormir!

—Vem à minha casa, menino, ver a árvore de Natal — pronuncia uma voz suavíssima.

Pensa que é sua mãezinha. Mas não! Não é ela.

Quem o chama, então? Não sabe. Mas alguém se inclina sobre ele e o envolve na escuridão... E ele estende a mão e, de repente... Oh, que luz! Oh, que arvore de Natal! Não! Isso não é uma arvore de Natal. Nunca viu coisa parecida.

Onde se encontra ele? Tudo brilha, tudo irradia, e há bonecos em torno. Mas não são bonecos: são homenzinhos e mulherezinhas, que resplandecem muito. Todos giram em tomo dele, voando, beijando-o, carregando-o... Afinal, ele próprio voa. E vê sua mãezinha que o olha e lhe sorri com alegria.

— Mamãezinha! Mamãezinha! Ah, como isto aqui é bonito! — grita-lhe o pequeno. E de novo abraça os meninos e quer contar-lhes também a história das bonecas que viu atrás do vidro.

— Quem são vocês? — pergunta, rindo.

O menino está diante da árvore de Natal do Menino Jesus.  Em casa de Jesus, nesse dia, há sempre uma arvore de Natal para os meninos que não têm árvore própria. E soube que todos aqueles homenzinhos e todos aquelas mulherezinhas eram meninos como ele: uns mortos de frio nas cestas em que os haviam abandonado à porta das casas dos funcionários da São Petersburgo. Outros, mortos em casa da ama de criação, nas ilhas sem ar dos Tchaukhnas. Alguns mortos de fome no seio esgotado de suas mães, durante a calamitosa carestia. Outros, envenenados pela infecção dos vagões de terceira classe.

Todos estão ali. Todos são anjos. Todos se encontram na casa de Jesus, que, entre elas, lhes estende as mãos, abençoando-os, a eles e a suas pecadoras mães.

E, também, as mães dos meninos estão ali, angustiadas. E choram. Cada qual reconhece seu filho ou sua filha, e os meninos voam para elas, beijando-as, enxugando-lhes as lágrimas com suas pequeninas mãos, suplicando-lhes que não chorem, pois eles também aí se encontram...

E embaixo, pela manhã, foi encontrado o cadáver do menino refugiado no pátio, gelado, atrás da pilha de lenha. Também foi encontrada a mãe, no quarto úmido e escuro. Ela havia morrido antes dele. Ambos se encontraram no céu, na casa do senhor.

 

Fonte: “Fon-Fon”, edição de 24/12/1938.

Tradução de autor desconhecido do século XX.


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