A LEPRA - Conto de Guillaume Apollinaire
Guillaume
Apollinaire
(1880
– 1918)
Tradução de
Paulo Soriano
Como
haviam acabado de dizer que o idioma italiano oferece muito poucas
dificuldades, o barão d’Omesan respondeu com a certeza de quem fala duas dúzias
e meia de línguas europeias e asiáticas:
—
O italiano não é difícil? Ora, isto está errado! Pode ser que as dificuldades
não sejam frequentemente observáveis, mas elas não deixam de existir, creiam em
mim. Nisto, tenho experiência. Por causa destas dificuldades, eu quase caí
vítima da lepra, esta terrível doença que, à semelhança das dificuldades da
língua italiana, se oculta sorrateiramente, levando-nos a crer em seu
desaparecimento, quando, na realidade, continua a expandir-se, e a causar malefícios
pelas cinco partes do mundo.
—
A lepra!
—
Por causa do italiano?
—
Conte-nos essa história!
—
Deve ter sido horrível!
Quando
ouviu tais exclamações, que provavam o sucesso de sua paradoxal declaração, o
barão d’Ormesan sorriu. Entreguei-lhe a caixa de charutos. Ele escolheu um e o
acendeu, depois de tirar-lhe a etiqueta, que colocou no dedo anular, seguindo
um hábito estúpido que adquirira na Alemanha. Depois de lançar algumas
baforadas triunfais sobre os ouvintes, começou a falar com um tom de mui vã
condescendência:
—
Há uns doze anos, eu estava em viagem pela Itália. Na época, eu era um
linguista deveras ignorante. Falava pessimamente o inglês e o alemão. Quanto ao
italiano, eu o macarronizava. Ou seja: empregava termos franceses aos quais
juntava terminações sonoras, e usava também palavras em latim. Em síntese:
fazia-me entender.
Eu
havia percorrido, a pé, uma parte significativa da Toscana, quando cheguei,
certa tarde, por volta das seis horas, a uma bela aldeia, onde iria pernoitar.
Na única pousada do lugar, disseram-me que todos os quartos estavam ocupados
por um grupo de ingleses.
O
estalajadeiro me aconselhou a procurar hospedagem com o padre. Este me recebeu
muito bem e pareceu encantado com o meu linguajar híbrido, que, de boa vontade,
fazendo-me grande honra, comparou à língua do Sonho de Polifilo[1].
Respondi que me contentava em imitar involuntariamente Merlin Coccaeie[2].
Ele riu muito, dizendo-me que o seu nome era justamente Folengo, o que lhe
pareceu uma coincidência deveras extraordinária. Então ele me conduziu ao seu
quarto, que pôs à minha disposição. Tentei recusar, mas não adiantou. Aquele
digno sacerdote Folengo entendia a hospitalidade à maneira toscana, sem dúvida,
porque nem sequer manifestou a intenção de mudar os lençóis de sua cama e eu
não consegui encontrar um bom pretexto para pedir ao bom padre, sem ofendê-lo,
lençóis limpos.
Jantei
sozinho com o padre Folengo. O cardápio era tão delicado que eu esqueci os
infelizes lençóis, entre os quais me recolhi às dez da noite. Adormeci
imediatamente. Meu sono durou apenas um par de horas, porque fui despertado por
vozes que vinham do quarto contíguo. Dom Folengo conversava com a governanta,
uma respeitável senhora de setenta anos, que tinha preparado a deliciosa
refeição que eu ainda digeria. O padre falava animadamente. Sua governanta
respondia com voz agridoce. Uma palavra, repetida várias vezes durante a
conversa, me chocou: lepra. Fiquei a imaginar por que motivo
falavam eles dessa terrível doença: a lepra.
Então
evoquei a figura do padre Folengo. Pareceu-me que ele estava inchado. Suas mãos
eram muito grossas. Continuando meu raciocínio, tive de concordar que o padre
toscano era imberbe, apesar de sua idade avançada. Isto foi suficiente. O
terror se apoderou de meu espírito. Algumas aldeias italianas, assim como
certas aldeotas francesas, são verdadeiros viveiros de lepra. E agora tinha
certeza: dom Folengo era um lazarento. E eu estava deitado no leito de um
leproso. Os lençóis sequer haviam sido trocados. Nesse momento, as vozes se
calaram. Depois, o padre pôs-se a roncar longamente no quarto vizinho. Ouvi
estalarem os degraus de uma escada de madeira: a governanta subia para dormir
no sótão. Meu terror crescia. Pensava que os médicos ainda não haviam chegado a
uma conclusão quanto ao contágio da lepra. Esses pensamentos não eram adequados
a tranquilizar-me. Eu me dizia que o padre me oferecera a sua cama como ato de
caridade, mas que, durante a noite, lembrou-se de que poderia muito bem
transmitir-me a sua enfermidade. Era disso que falava com a sua governanta e,
sem dúvida, antes de dormir, rogara a Deus para que a sua imprudência não
tivesse um resultado nefando. Coberto por um suor frio, levantei-me e fui à
janela.
O
relógio da igreja deu meia-noite. Eu não já aguentava mais e, exausto, me
sentei no chão. Adormeci encostado à parede. O frescor da manhã me despertou
pelas quatro horas. Espirrei umas trinta vezes e estremeci ao olhar para o
leito fatal. Acordando com os meus espirros, o padre entrou no quarto.
—
O que você está fazendo em camisa contra a janela? — perguntou-me. — Eu acho,
meu caro hóspede, que estaria melhor nessa cama.
Olhei
para o padre. Sua pele era rosada. Ele era roliço, mas sua saúde, tive que
admitir, parecia florescente.
—
O senhor — disse-lhe — sabe que o clima de Paris — o da Ile-de-France em geral
— é pouco favorável ao desenvolvimento da lepra. Esse clima tem, até mesmo, a
saudável propriedade de coibir essa doença. Muitos leprosos da Ásia ou da Colômbia,
na América, onde esta enfermidade é muito frequente, têm como objetivo de suas
existências formar um pecúlio que lhes permitam viver dois ou três anos em
Paris. Após esse período, a lepra é atenuada; então eles voltam aos seus países
para angariar uma nova fortuna que lhes garanta outra temporada às margens do
Sena.
—
Aonde você quer chegar? — perguntou-me o padre Folengo. — Você fala, se não me
engano, da lepra, la lebbra, essa
terrível enfermidade que causou tantos estragos na Idade Média.
—
Não causa menos estragos atualmente — respondi, olhando-o severamente. — E
quanto aos sacerdotes acometidos por este mal, creio que melhor estariam nos
leprosários de Honolulu ou em outras colônias de leprosos asiáticas. Eles
poderiam tratar de seus companheiros de infortúnio...
—
Mas porque você me fala dessas coisas horríveis tão cedo? — respondeu o padre
Folengo. — Não são ainda cinco horas. O Sol mal desponta no horizonte. A aurora
que tinge de púrpura o céu não me parece concebida para inspirar pensamentos tão
fúnebres.
—
Confesse logo, senhor cura! — exclamei. — O senhor é leproso. Ouvi o que o
senhor dizia ontem à noite...
Dom
Folengo parecia estupefato e chocado:
—
Senhor francês — disse-me o padre —, você está enganado. Não sou leproso. E me
pergunto de onde veio tão angustiante ideia.
—
Não, senhor padre — afirmei. — Eu o ouvi na noite passada. O senhor falava da
lepra com a sua governanta no quarto vizinho.
O
padre Folengo soltou uma gargalhada:
—
Vocês franceses — disse, rindo até as lágrimas — não podem chegar à Itália sem
que venham com este tipo de história, dando testemunho de Paul-Louis Courier[3],
que conta algo um pouco semelhante em suas cartas... Lepre significa “lebre” em italiano. A temporada de caça está
aberta. Nestes dias, um de meus paroquianos me trouxe uma lebre maravilhosa.
Era sobre ela que eu falava, ontem, com a minha governanta, pois me parece que
ela já está ao ponto. A lebre será servida hoje mesmo, ao meio-dia. Você há de
se regalar com ela e se felicitará por haver aumentado a sua bagagem de
conhecimentos linguísticos à custa de uma péssima noite.
Fiquei
acabrunhado. Mas a lebre me pareceu deliciosa. É que as piores coisas, até
mesmo a lepra, podem se tornar excelentes quando se sabe acomodá-las e
acomodar-se a elas.
Imagem: Giacomo Ceruti (1697 – 1776)
[1] Referência ao livro Hypnerotomachia Poliphili, atribuído ao frade dominicano italiano
Francesco Colona (c. 1433 – 1527), impresso e publicado em 1499 por Aldus
Manutius.
[2] Pseudônimo de Teofilo Folengo (1491 – 1544),
poeta renascentista italiano.
[3] Paul-Louis Courier (1772 – 1825), escritor e
helenista francês.
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