INSPEÇÃO NA ARCA DE NOÉ - Conto Humorístico de Mark Twain
INSPEÇÃO NA ARCA DE NOÉ
Mark
Twain
(1835
– 1910)
Ninguém
poderá negar que são verdadeiramente notáveis os progressos realizados na arte
da construção naval desde os tempos em que Noé construiu o seu navio. As leis
da navegação talvez não existissem ou pelo menos não eram aplicadas
rigorosamente. Agora, elas são tão sabiamente combinadas que, à primeira vista,
parecem papel de música. O pobre patriarca não poderia fazer hoje o que fez com
tanta facilidade naquela época, pois a experiência, mestra da vida, ensinou-nos
que é necessário preocuparmo-nos com a segurança das pessoas dispostas a
atravessar os mares.
Se
Noé quisesse sair do porto de Bremen, as autoridades lhe negariam redondamente
o "navicert[1]".
Os inspetores poriam toda espécie de defeitos à sua esplêndida embarcação.
Vocês
podem imaginar, em todos os seus pormenores, o diálogo entre o
patriarca-marinheiro e as autoridades? Chega o inspetor, vestido impecavelmente
com um vistoso uniforme militar, e todos se sentem constrangidos pelo respeito
diante da majestade que brilha em sua pessoa. É um perfeito cavalheiro. De uma
finura requintada, mas tão imutável como a própria estrela polar, desde que se
trate do cumprimento dos seus deveres oficiais.
Começaria
por perguntar a Noé o nome da povoação do seu nascimento, sua idade, a religião
ou seita a que pertencia, o montante de sua renda, sua profissão habitual, sua
posição na escala social, o número de seus filhos e de seus criados, e o sexo e
idade de seus filhos e criados! Se o patriarca não estivesse provido de
passaporte, seria obrigado a preparar todos os papéis necessários. Feito isto —
nunca antes — o inspetor visitaria a arca.
—
Comprimento?
—
Duzentos metros.
—
Altura da linha de flutuação?
—
Vinte e dois metros.
—
Material de construção?
—
Madeira.
—
Pode-se especificar?
—Cedro
e acácia.
—Pintura
e verniz?
—Piche
por dentro e por fora.
—
Passageiros?
—
Oito.
—Sexo?
—Quatro
homens e quatro mulheres.
—Idade?
—A
mais jovem tem cem anos.
—E o chefe da expedição?
—Seiscentos.
—Pelo que vejo, o senhor vai a Chicago. Fará
negócio na exposição. Nome do médico?
—Não levamos médico.
—Tem que levar médico e também um agente
funerário. São requisitos indispensáveis. Pessoas de certa idade não podem se
aventurar em uma viagem como esta sem grandes precauções. Tripulantes?
—As
oito pessoas mencionadas.
—As
mesmas oito pessoas?
—Sim,
senhor.
—Já
prestaram seus serviços à marinha mercante?
—Não,
senhor.
—E
os homens?
—
Também não.
—Qual
dos senhores já navegou?
—Nenhum.
—Que
profissão tiveram até hoje?
—Agricultores
e fazendeiros.
—Como
o navio não é a vapor, precisa pelo menos de uma tripulação de oitocentos
homens. É preciso procurá-los, custe o que custar. É necessário também ter
quatro imediatos e nove cozinheiros. Quem é o capitão?
—Este
seu criado.
—É
preciso um capitão. E é necessário, pelo menos, uma camareira e oito
enfermeiras para os oito anciãos. Quem fez o projeto e os detalhes do navio?
—Eu.
—É
a sua primeira experiência?
—Sim,
senhor.
—Já
supunha. Que carga leva?
—Animais.
—De que espécie?
—De
todas.
—Que
animais domésticos leva a bordo?
—Quase todos são selvagens.
—Exóticos
ou do país?
—Principalmente
exóticos.
—Enumere
os mais notáveis.
—
Megatérios, elefantes, rinocerontes, leões, tigres, lobos, serpentes; numa
palavra, levo animais de todos os climas. Um casal de cada espécie.
—As
jaulas estão solidamente construídas?
—Não
há jaulas.
—É
preciso levar jaulas de ferro. Quem é o encarregado de alimentar as feras?
—Nós.
—Os
oito anciãos?
—Sim,
senhor.
—
É um perigo para as feras e, sobretudo, para os anciãos. Precisa de empregados
competentes, muito fortes e habituados a esse trabalho. Número de animais?
—Grandes,sete mil. Contando todos, grandes,
médios e pequenos... noventa e dois mil.
—Precisa
de mil e duzentos empregados. Que método de ventilação adotou: ou melhor,
quantas janelas e portas tem a embarcação?
—Duas
janelas.
—E
onde estão?
—Junto
ao respiradouro.
—E
um tonel de duzentos metros conta apenas com dois respiradouros? É impossível
permitir isso. Terá que abrir janelas e instalar iluminação elétrica. Não podemos
permitir a partida sem que a embarcação leve, pelo menos, uma dúzia de lâmpadas
voltaicas e mil e quinhentas lâmpadas de outra espécie. Número de bombas?
—Não
temos bombas.
—É
preciso instalar bombas. Como conseguirá água potável para as pessoas e bichos?
—Penduraremos
tonéis nas janelas.
—Não
podemos aceitar isso. Força motriz?
—Força...
o quê?
—Força
motriz. Preste atenção. Como fará o navio andar?
—Eu
não emprego força. Ando sozinho.
—Precisará
velas ou vapor. Tem leme?
—Não.
—Como
governa a embarcação?
—Não a governamos.
—Precisa instalar tudo o que é necessário para
o leme. Âncoras?
—Não temos.
—São necessárias seis pelo menos. Se não levar
seis, não lhe permitiremos navegar. Tem lanchas salva-vidas?
—Não.
—É
preciso vinte e cinco. Há salva-vidas?
—Não.
—Precisa
dois mil. Quanto tempo durara a travessia?
—Um
ano, mais ou menos.
—
Vai ser longa. Enfim, ainda chegará a tempo para a exposição. Que material
empregou para o casco?
—Nenhum
especial.
—Mas,
homem de Deus, a brincadeira vai rebentar o navio, e antes de um mês não restará
dele senão destroços. O senhor está irremediavelmente destinado a habitar os
profundos abismos do oceano. Sem um bom reforço metálico, não sairá daqui. E,
já ia esquecendo de fazer uma advertência: Chicago fica no interior do
continente e com este navio não pode chegar até lá.
—Chicago?
Mas que história é essa de Chicago? Nunca pensei em ir lá.
—É
verdade? Mas então não compreendo por que lava tantos animais a bordo.
—
São animais de reprodução.
—Não são suficientes os que existem no mundo?
—São, para o estado atual da civilização. Mas
como os outros animais vão ser afogados pelo dilúvio, estes servirão para
garantir a perpetuação de suas espécies.
—Dilúvio,
diz o senhor?
—Sim,
senhor. Um dilúvio.
—Tem
certeza?
—Absoluta.
Choverá durante quarenta dias e quarenta noites.
—E o senhor se preocupa por isso? Aqui chove
até oitenta dias e oitenta noites.
—Mas
não se trata de uma chuva como essas. A que cairá, há de cobrir os cimos das
mais altas montanhas, e fará desaparecer a superfície da Terra.
—Se assim é, e isso sem compromisso, devo
dizer-lhe que não lhe resta outra solução que não seja o uso do vapor ou da
vela: precisará prover-se de máquinas a vapor, pois não poderá levar água para
onze ou doze meses. Além disso, precisará de um potente condensador.
—
Já lhe disse que colocarei tonéis nas janelas.
—Mas
que ingenuidade! Antes que o dilúvio tenha coberto as mais altas montanhas,
toda a água doce se terá transformado em uma salmoura pelo efeito da água do
mar. O senhor precisará de uma máquina a vapor para destilar a água. Vejo,
efetivamente, que é este seu primeiro passo na arte da construção naval.
—É verdade. Nunca fiz estudos especiais e
procedi sem conhecimento das respectivas noções.
—Considerando
as coisas desse ponto de vista especial, considero verdadeiramente notável a
sua obra. Juraria que jamais foi lançada à água uma embarcação de caráter tão
extraordinário.
—Agradeço-lhe
muito os elogios que me faz. A recordação que guardarei da sua visita será
imperecível. Muito obrigado, mil vezes obrigado, e adeus, senhor.
—Será
inútil que diga adeus, velho e venerável patriarca! Sob o exterior afetuoso e
cortês desse inspetor alemão, oculta-se uma vontade de ferro. Juro-lhe, velho e
venerável patriarca, que o inspetor não autorizará a sua partida.
Fonte: “Carioca”,
edição de 02/10/1947.
Tradução de autor
desconhecido do século XX.
[1]
Contração
de “navegation certificate” (certificado de navegação), ou seja, uma espécie de
passaporte que permite a um navio neutro atravessar um boqueio ou barreira em
tempo de guerra.
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