O VIAJANTE - Conto de Emilia Pardo Bazán
O
VIAJANTE
Emília
Pardo Bazán
(1851
– 1921)
Fria,
glacial era a noite. O Vento silvava impetuoso e a chuva caía tenaz, já em
rajadas, já em aguaceiros fortes. Nas duas ou três vezes em que Martha se
aproximava da janela para ver se aplacava a tempestade, deslumbrou-a a rápida
luz de um relâmpago e a encheu de horror o ribombar do trovão, tão em cirna da
sua cabeça que parecia atirar a casa a baixo.
Quando
com mais fúria se desencadeavam os elementos, ouviu Martha distintamente que
batiam à sua porta e percebeu um acento gemedor e premente que a instava a
abrir. Sem dúvida, a prudência aconselhava a Martha desatendê-lo, pois em noite
tão espantosa, quando nenhum vizinho honrado ousa sair à rua, só os malfeitores
e os perdidos libertinos são capazes de arrostar vento e chuva em busca de
aventuras e presas. Martha deveria ter pensado que quem possui um lar, e nele
uma mãe, uma irmã, uma esposa que o console, não sai em noite de inverno sob
uma tormenta desabrida, nem bate a portas alheias, nem perturba a tranquilidade
das donzelas honestas, já recolhidas. Mas a reflexão, pessoa digníssima e mui
senhora nossa, tem o maldito vício de chegar retrasada, pelo que só serve para
amargar gostos e adubar remorsos. A reflexão de Martha tinha se retrasado, segundo
o costume, e o impulso da piedade — o primeiro que salta no coração da mulher,
fez com que a donzela, através do postigo, perguntasse compadecida: «Quem
bate?» Voz de tenor doce e vibrante respondeu em tom persuasivo: «Um viajante».
A
bem-aventurada Martha, sem mais averiguações, tirou a tranca, correu o ferrolho
e deu volta à chave, movida pelo encanto daquela voz vibrante e tão doce.
Entrou o viajante, cumprimentando-a cortesmente, tirando com gentil desembaraço
o chapéu, cujas plumas gotejavam, desembaraçando-se da capa, empapada pela
chuva, agradeceu a hospitalidade e tomou assento perto do lume, aceso por
Martha. Esta apenas se atrevia a olhá-lo, porque nesse momento a sabida tardia
reflexão começava a fazer das suas, e Martha compreendia que dar asilo ao
primeiro que nos bate à porta é leviandade notória. Contudo, decidida a não
levantar os olhos, viu de soslaio que o seu hospede era moço e de bom porte, pálido
e ruivo, cara linda e triste, ar de senhor acostumado ao mando e aos altos
postos. Sentiu-se Martha encolhida e cheia de confusão, embora o viajante se
mostrasse reconhecido e lhe dissesse coisas lisonjeiras, que pelo feitiço da
voz pareciam mais agradáveis; a fim de dissimular a sua turbação, deu-se pressa
em servir a ceia e oferecer ao viajante o melhor quarto da casa, para que se
recolhesse a dormir.
Assustada
com a sua própria indiscreta conduta, Martha não pôde conciliar o sono em toda
a noite, esperando com impaciência que raiasse a aurora para que se ausentasse
o hóspede. Aconteceu que este, quando desceu, já descansado e sorridente, a
tomar o café, não falou em sair, e nem à hora do almoço e nem à hora do jantar,
Martha, entretida e encantada com a sua lábia, não teve coragem para dizer-lhe
que não era hospedeira profissional.
Correram
semanas, passaram meses e em casa da Martha não havia outro dono nem outro amo
que aquele viajante imprudentemente acolhido numa noite tempestuosa. Ele
ordenava e Martha obedecia submissa, muda e veloz como o pensamento.
Não
julgueis por isso que Martha era propriamente feliz. Ao contrário, vivia em
contínua desventura e susto. Eu qualifiquei de amo o viajante, e tirano deveria
chamá-lo, pois seus caprichos despóticos e seu inconstante humor traziam Martha
quase louca. A princípio, o viajante parecia obediente, afetuoso, lisonjeiro
humilde; mas foi crescendo e tomando foros até não haver quem emparelhasse com
ele. O pior de tudo era que nunca podia Martha adivinhar-lhe o desejo ou
precaver-se contra as suas mudanças: sem motivo nem causa, quando era menos de
temer ou esperar, ficava frenético ou contentíssimo, passando, num momento, do
enfado ao afago, e do sorriso à raiva. Tinha arrebatamentos de furor, fazia
ataques injustos e insensatos, transformando-se em dois minutos em transportes
de carinho e doçuras angélicas; zangava-se como uma criança e logo se
desesperava como um homem: ora cobria Martha de impropérios, ora lhe prodigalizava
os nomes mais suaves e as ternuras mais cativantes. As suas extravagancias eram
ás vezes tão insuportáveis, que Martha, com os nervos irritados, e alma
atravessada e o coração a dois dedos da boca, maldizia o fatal momento em que
acolheu o seu horrível hóspede. O mau era que quando Martha, esgotada a
paciência, ia saltar e sacudir o jugo, parece que ele o adivinhava e lhe pedia
perdão com uma sinceridade e uma graça de menininho, pelo que Martha não só
esquecia instantaneamente os agravos, senão que pelo esquisito gosto de
perdoar, sofreria três vezes as passadas ofensas. Em olvido as tinha posto
quando o hospede, a meias palavras, com precauções, e rodeios, anunciou que já
havia chegado a ocasião de sua partida. Martha ficou de mármore e as lagrimas
lentas que lhe arrancou o desespero caíram sob as mãos do viajante, que sorria
tristemente, murmurando em voz baixa frasezinhas consoladoras, promessas de
escrever, de voltar, de recordar. Como Martha, em sua amargura, balbuciava
queixas, o hospede, com a sua voz de tenor doce e vibrante, alegou: «Bem eu te
disse, menina, que sou um viajante. Eu me detenho, mas não me demoro, descanso,
mas não me fixo». Haveis de saber que só ao ouvir esta declaração franca, só ao
sentir que se dilaceravam fibras mais intimas do seu ser, Martha, a inocentíssima,
reconheceu que aquele fatal viajante era o Amor, e que havia aberta a porta,
sem o pensar ao ditador crudelíssimo do orbe.
Sem
fazer caso do pranto de Martha (para atender a lagrimazinhas está ele!), sem
pensar no rastro de pena inextinguível que deixava após si, partia o Amor
embuçado em sua capa, ladeado o chapéu cujas plumas, já secas, flutuavam ao
vento bizarramente enristadas em busca de novos horizontes, a bater noutras
portas melhor trancadas e defendidas. E Martha ficou tranquila, dona de seu
lar, livre de sustos, de temores, de alarmes, entregue à companhia da grave e
excelente reflexão, que tão bem aconselha, embora um pouquinho tarde. Não
sabemos o que terão feito: — sabemos, porém, com certeza, que nas noites de
tempestade furiosa, quando o vento sibila e a chuva tamborila nos vidros,
Martha, premendo com a mão o seio em que lhe dói o coração, a força de pulsar
apressado, não cessa de prestar ouvido aos rumores de fora para ver se o
hospede bate à porta.
Fonte: O Sempre-Viva
(PR), edição de 15 de setembro de 1925.
Tradutor desconhecido
do século XX.
Imagem:
Pierre-Olivier-Joseph Coomans.
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