OS PÃES DE CENTEIO - Conto Legendário - Anatole France
OS PÃES DE CENTEIO
Anatole
France
(1844 - 1924)
Naquele tempo, Nicolau Nerli era um banqueiro na
nobre cidade de Florença. Ao soar a terceira hora, já estava sentado em sua
mesa de trabalho e, ao soar a hora nona, ainda continuava sentado. Durante todo
o dia desenhava números era suas tábuas. Emprestava dinheiro ao Imperador e ao
Papa, e, se não chegou a emprestar ao Diabo, foi por temor de que lhe corressem
mal os negócios com este que se chama o Maligno e que tem demasiada esperteza.
Nicolau Nerli era atrevido e desconfiado. Adquiriu enormes riquezas despojando
muitas pessoas, pelo que sempre teve boa reputação na cidade de Florença.
Habitava um palácio onde a luz que Deus criou só entrava por estreitas janelas,
e nisto deve-se reconhecer uma justa previsão, porque a morada dos ricos deve
ser como uma cidadela, e os que possuem considerável fortuna agem prudentemente
defendendo, pela força, o que adquiriram com malícia.
Assim, pois, o palácio de Nicolau Nerli estava
provido de trancas e cadeados. No interior, as paredes eram pintadas por hábeis
artesãos que ali representavam as Virtudes sob aparência de mulheres, os
patriarcas, os profetas e os reis de Israel. Tapeçarias estendidas nos cômodos
ofereciam, aos olhos, as histórias de Alexandre e de Tristão, tal como se
relatam nas lendas.
Para ostentar sua riqueza na cidade, fundava Nicolau
Nerli instituições piedosas. Construiu, fora do recinto murado, um hospital em
cujo friso, de relevos pintados, eram representados os atos mais honrosos de
sua vida. Em agradecimento à quantidade de prata que facilitou para que se terminasse
Santa Maria a Nova, no coro daquela igreja achava-se pendurado o seu retrato.
Viam-no ajoelhado aos pés da Santa Virgem, com as mãos juntas, e era facilmente
reconhecível por seu gorro de lã vermelha, por sua capa forrada de pele, por
seu rosto gorduroso e amarelado e por seus olhinhos espertos. Sua honrosa
mulher, Mona Bismantova, de aspecto triste e honrado, cuja aparência fazia
supor que jamais havia agradado a alguém, achava-se do outro lado da Virgem, em
humilde atitude de meditação. Aquele homem era um dos principais cidadãos da
República; como nunca havia demandado contra as leis e tampouco se havia
preocupado com os pobres, nem com aqueles a quem os poderosos dominantes
condenam à multa e ao desterro, nada pôde diminuir, perante os magistrados, o
alto conceito que, aos olhos destes, suas imensas riquezas o fizeram merecedor.
Ao entardecer de um dia de inverno, entrando em seu
palácio a uma hora mais avançada do que acontecia, na soleira da porta se viu
rodeado por um grupo de mendigos seminus, que lhe estendiam as mãos.
Repeliu-os com palavras rudes; a fome, porém, os
obrigava a se mostrarem ariscos e atrevidos como lobos. Fizeram um círculo em
torno de Nicolau Nerli e lhe pediram pão com voz queixosa e enrouquecida. Inclinava-se
já para apanhar pedras do solo e atirá-las, quando viu chegar um de seus
criados, que trazia sobre a cabeça um cesto de pães de centeio destinados aos
moços das cavalariças, da cozinha e dos jardins.
Indicou ao padeiro que se aproximasse e, tirando do
cesto os pães a mancheias, os atirou aos miseráveis. Depois, entrou em seu
palácio, deitou e dormiu. Enquanto dormia, teve um ataque epilético e morreu
tão repentinamente que ainda se considerava em seu leito quando, num lugar
"falto de toda luz", lhe apareceu São Miguel, iluminado pela
claridade que irradiava seu próprio corpo!
Com a balança na mão, o arcanjo enchia os pratos. Ao
reconhecer, no mais pesado, as joias das viúvas que guardava como garantia, os
inumeráveis escudos que havia retido indevidamente, e algumas peças de ouro
muito formosas que só ele possuía e que havia adquirido pela usura ou pela
fraude, Nicolau Nerli supôs que era sua vida passada o que o arcanjo pesava
naquele instante, pelo que se mostrou atento e temeroso.
—Messer São Miguel — disse —, se colocais
num lado todos os lucros que eu tive em vida, colocai no outro, se vos apraz,
todas as formosas fundações pelas quais manifestei, magnificamente, minha
devoção. Não esqueçais a cúpula de Santa Maria a Nova, para a qual contribuí
com uma boa terça parte, nem o hospital extramuros que mandei construir só com
o meu dinheiro.
—Não tenhas temor, Nicolau Nerli — respondeu São
Miguel. — Nunca esqueço nada.
E, com suas mãos gloriosas, colocou, no prato que
pesava menos, a cúpula de Santa Maria e o hospital com seu friso de relevos
pintados; o prato, porém, não baixava.
O banqueiro
começou a inquietar-se profundamente.
—Messer São
Miguel — insistiu —, procurai mais. Não colocastes, neste prato da balança, nem
a formosa pia de água benta de São João, nem o púlpito de Santo André, onde o
batismo de Nosso Senhor Jesus Cristo se acha representado era tamanho natural.
É uma obra que me custou muito caro.
O arcanjo pôs o púlpito e a pia de água benta sobre
o hospital no prato que, apesar de tudo, não baixava.
Nicolau Nerli começou a sentir sua testa inundada
por um gélido suor.
—Messer
arcanjo — perguntou —, estais certo de que vossas balanças pesam bem?
São Miguel respondeu, sorridente, que ainda que, não
fossem construídas conforme o modelo das balanças que usam os lombardos de
Paris ou os cambistas de Veneza, nem por isso deixavam de ser precisas.
—É possível — suspirou Nicolau Nerli, angustiado —,
que minha cúpula, meu púlpito, meu hospital, com todas suas camas, não pesem
mais do que um fiapo de palha, do que uma pena de pássaro?
—Assim, o
vês, Nicolau — disse o arcanjo. — O peso de tuas iniquidades é muito maior que
o de tuas piedosas obras.
—Neste caso, irei para o Inferno! — disse o
florentino. Seus dentes batiam de pavor.
—Paciência, Nicolau Nerli! — retorquiu o pesador
celeste. — Paciência! Não acabamos ainda. Falta uma coisa.
E o bem-aventurado Miguel apanhou os pães de centeio
que o rico havia atirado na véspera aos pobres, colocou-os no prato das boas
obras, que prontamente desceu enquanto o outro subia. Os dois pratos ficaram na
mesma altura: o fiel da balança não oscilava nem para a direita nem para a
esquerda, indicando a igualdade perfeita dos dois pesos.
O banqueiro não dava crédito aos seus olhos.
O glorioso arcanjo lhe disse:
—Tu o vês, Nicolau Nerli: não serves nem para o Céu
nem para o Inferno. Tu o vês. Volta à Florença. Continua repartindo pela tua
cidade pães, como os que deu tua mão esta noite, sem que ninguém o veja, e te
salvarás, porque não é bastante que o céu se abra para o ladrão que se
arrepende e para a prostituta que chora. A misericórdia de Deus é infinita! É capaz
de salvar um rico! Sê tu o rico digno de salvar-se. Continua repartindo pães
que pesam muito em minhas balanças. Vai-te.
Nicolau Nerli despertou, em seu leito, resolvido a
seguir os conselhos do arcanjo e a repartir o pão entre os pobres para entrar
no reino dos céus.
Durante os três anos que viveu ainda na terra, depois
de sua primeira morte, mostrou-se piedoso com os desditados e deu muitas
esmolas.
Fonte:
“Carioca”, edição de 4 de setembro de 1947.
Tradução
de autor desconhecido do séc. XX.
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