O SONHO DE UMA HORA - Conto de Kate Chopin
O SONHO DE UMA HORA
Kate
Chopin
(1850
– 1904)
Porque
a Sra. Mallard sofria do coração, foi com grande cuidado que lhe anunciaram,
tão delicadamente quanto possível, a morte do marido.
Foi
sua irmã Josephine quem lhe deu a notícia, com frases entrecortadas e veladas,
traduzidas em insinuações que deixavam entrever, aqui e ali, a verdade.
Richards, o amigo de seu marido, também a acompanhava. Quando a notícia do
acidente ferroviário foi recebida, era ele quem estava na redação do jornal, e
o nome de Brently encabeçava a lista de “mortos”. Teve tempo, apenas, de
confirmar, por meio de um segundo telegrama, a veracidade do fato, antes de
correr, pressuroso, à casa do falecido, para evitar que qualquer outro amigo
menos cuidadoso e menos delicado levasse à Sra. Mallard aquela triste notícia.
Esta
não ouviu a história como uma outra mulher o faria, tolhida pela paralisante
incapacidade de aceitar o seu significado. Ao contrário, explodiu em prantos
imediatamente, abandonando-se de inopino nos braços irmã. Quando o turbilhão de
tristeza amainou, ela seguiu, sozinha, para o quarto. Não queria que ninguém a
acompanhasse.
À
frente da janela aberta havia uma ampla e confortável poltrona, na qual
afundou, premida por um esgotamento físico que lhe afligia o corpo e parecia
penetrar-lhe a alma.
Na
praça que se abria diante de sua casa, ela podia ver o movimento das copas das
árvores, excitadas pela renovação trazida pela primavera. Sentia-se no ar a
deliciosa aragem chuvosa. Abaixo, na rua, um vendedor ambulante apregoava as
suas quinquilharias. Até ela chegavam, debilmente, as notas de uma canção que
alguém entoava ao longe, e os inúmeros pardais trilavam nos beirais.
Fragmentos
de um céu azul irrompiam aqui e ali por entre as nuvens que, em frente à
janela, no poente, se reuniam e se empilhavam em camadas sobrepostas.
Sentada,
com a cabeça jogada para trás e apoiada no encosto da poltrona, permanecia ela
num estado de imobilidade somente abalado por um soluço que às vezes lhe subia
à garganta, e a fazia estremecer como uma criança que chora até dormir, mas
continua a soluçar em seus sonhos.
Ela
era jovem, dotada de uma fisionomia bela e calma, cujas linhas revelavam
contenção e, mesmo, um certo vigor. Mas, agora, o seu olhar estava obnubilado,
distante, fixado num daqueles fragmentos de céu azul. Não era, contudo, um
olhar de reflexão; antes denotava uma suspensão na capacidade de pensar
racionalmente.
Sentia
que algo vinha a seu encontro e ela o esperava com temor. O que seria? Não
sabia: era algo muito sutil e insubstancial para ser nominado. Mas sentia-o
chegando, furtivamente, declinando do céu, alcançando-a por meio dos sons, dos
aromas e das cores que impregnavam a atmosfera.
Agora
o seu peito arfava agitadamente. Começava a reconhecer aquilo que chagava para
possuí-la, e lutava para repeli-lo com a força de sua vontade, mas esta era tão
impotente quanto as suas brancas e delicadas mãos. Quando capitulou, seus
lábios entreabertos deixaram escapar uma pequena palavra sussurrada. Então
disse, repetidamente:
—Livre,
livre, livre!
O
olhar vazio e a expressão de terror desaparecerem de seus olhos, que agora
estavam atentos e brilhantes. Seus pulsos latejavam celeremente e o fluir de
seu sangue aquecia e relaxava cada parte de seu corpo.
Não
parou para indagar se aquela sensação de alegria era ou não monstruosa. Uma
percepção clara e exaltada lhe permitia descartar as possibilidades como algo
sem importância. Ela sabia que iria chorar novamente quando visse aquelas mãos
carinhosas e gentis entrelaçadas na postura de morte; que o rosto que sempre a
contemplara com amor estria rígido, cinza e morto. Mas viu que, para além desse
momento de amargura, havia uma longa procissão de anos vindouros que seriam
somente seus. E lhes estendeu os braços, dando-lhes boas-vindas.
Naqueles
anos que viriam, não devotaria a sua vida a ninguém: viveria somente para si
mesma. Nenhuma outra poderosa vontade a subjugaria com esta cega persistência
com que homens e mulheres acreditam-se no direito de impor a própria vontade em
detrimento da de outra pessoa. Ponderou, naquele breve momento de iluminação,
que a intenção com que se praticava o ato — fosse esta amável ou cruel — não
lhe parecia mais ou menos criminosa.
Mesmo
assim, ela o amara — às vezes. Outras, não. Mas, o que importava? O que poderia
o amor, este mistério insolúvel, significar diante deste poder de autoafirmação
que, repentinamente, ela reconhecia como o impulso mais vigoroso de seu ser?
—Livre!
Corpo e alma livres! — ela sussurrava.
Josephine,
ajoelhada diante da porta fechada, com os lábios colados à fechadura,
implorava-lhe para entrar.
—Louise,
abra a porta! Abra a porta, eu imploro! Você vai ter um troço. O que está
fazendo, Louise? Pelo amor de Deus, abra a porta!
—Vá
embora! Não vou ter um troço.
Não
iria: ela tragava o elixir da vida que lhe chegava da janela aberta.
Sua
imaginação corria a rédeas soltas através daqueles dias que estariam por vir:
dias de primavera, dias de verão e toda espécie de dias, que seriam apenas
seus. Fez uma breve oração para que a sua vida fosse longa. E pensar que, ainda
ontem, sentia arrepios diante da perspectiva de que sua vida poderia alongar-se
demasiado.
Ela
se levantou e abriu a porta para as importunações da irmã. Havia um triunfo
febril em seus olhos. Sem que o soubesse, comportava-se como uma deusa da
Vitória. Louise alçou a irmã pela cintura e juntas desceram as escadas.
Embaixo, Richards esperava por elas.
Alguém
tentava abrir a porta com uma chave. Brently Mallard entrou, um pouco
empoeirado pela viagem, carregando elegantemente a mala de mão e um
guarda-chuvas. Estivera distante da cena do acidente e nem sabia que um
desastre havia acontecido. Permaneceu de pé, surpreendido pelo agudo grito de
Josephine e pelo rápido movimento que Richards fez para impedir que a mulher do
amigo o visse.
Quando
os médicos chegaram, disseram que ela havia morrido de um ataque cardíaco — da alegria que mata.
Versão em português: Paulo Soriano.
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