A ADIVINHA - Conto de Frédéric Boutet
A ADIVINHA
Frédéric
Boutet
(1874
– 1941)
Mme.
Lazzarra, adivinha famosa, a incomparável vidente, achava-se em casa, muito
tranquilamente, tomando o seu café com leite. Bateram à porta. Glória, a
criada, a quem uma pele azeitonada e grandes olhos negros permitem passar por
cigana, embora tenha nascido em Clichy, foi atender. Voltou para explicar que
era "um moço bem vestido", que não vinha para uma consulta, mas que
insistia em ser atendido.
Mme.
Lazzarra, um pouco intrigada, recebeu o moço depois de uma espera de vinte
minutos, que empregou a colocar-se sob suas armas.
Como
dissera que não vinha para uma consulta, recebeu-o na sala de jantar e, logo de
início, o visitante ,que era um homem de trinta e cinco a trinta e oito anos,
tomou a palavra.
—
Madame, desculpo-me por vir assim, mas eis a razão de minha visita: deve, esta
tarde, receber duas moças que lhe marcaram hora por carta...
—O
segredo profissional... — disse Mme. Lazzarra.
—Precisamente,
é o segredo profissional que invoco, pedindo-lhe para observar a mais perfeita
discrição sobre o que lhe vou dizer. Aliás, o seu próprio interesse o exige. A
senhora recebe, creio, cinquenta luíses pela consulta, tanto quanto um médico
célebre. Pois bem, venho oferecer-lhe, além dos cinquenta luíses que receberá
de cada uma das moças, cem francos por cada uma delas, com a condição de que
lhes faça as profecias que lhe vou indicar.
—Cavalheiro
— disse Mme. Lazzarra, a dignidade da ciência...
—Nada
disso. Não percamos tempo, peço-lhe. A senhora é uma mulher notavelmente
inteligente. Não se cria uma reputação de pitonisa como a que tem, no meio de
nossa vida prática moderna, dos automóveis, dos aeroplanos, e da política, sem
ser uma mulher notavelmente inteligente... E vai compreender. As duas moças que
vai receber daqui há pouco são: uma a minha mulher; a outra, a sua melhor
amiga. Ora, desejo conquistar a melhor amiga de minha mulher. Compreende?
—É vergonhoso — disse Mme. Lazzarra,
falsamente indignada.
—De
modo algum; ela é muito bonita. Minha mulher é morena, bela, imponente, fria,
reservada. Sua melhor amiga — chama-se Irene — é loura, rosada, sorridente, impressionável,
nervosa, tímida... Como conheço a extraordinária influência que pode ter sobre
as mulheres o ambiente impressionante de suas predições, e como lhe darei sobre
as duas detalhes e informações que lhe permitirão surpreendê-las, quero que
diga à nossa melhor amiga tudo o que puder em meu benefício. Compreende, não é?
Pequena alma incompreendida, ternura pouco apreciada, direito à felicidade,
necessidade do amor regenerador, destino irrevogável que impele para a paixão
soberana, que a espreita, para o coração de fogo que se consome por ela (sou
eu, a paixão soberana e o coração de fogo). Insista principalmente sobre o
destino irrevogável que a arrasta para o amor. Não diga o meu nome,
naturalmente. Indique-me vagamente, e será bastante. Ela compreenderá. Faço-lhe
uma corte cerrada, mas, sem dizer um não definitivo, ela hesita, tem
escrúpulos... Destrua esses escrúpulos, essas hesitações, pinte o ardor de meus
sentimentos e afirme-lhe que está destinada ao amor todo poderoso que iluminará
a monotonia de sua vida... Estamos combinados?
—A
sua atitude é tão extraordinária — disse Mme. Lazzarra que já tomara a sua
decisão —, que pode ser encarada como a manifestação de forças extraterrestres,
que regem os destinos humanos. Obedecerei, portanto. Que devo dizer à moça
morena?
—
Oh! Tudo o que quiser, no gênero calmo. Fale-lhe sobre o perigo do mínimo flerte,
por causa de meu ciúme feroz. E depois, dê-lhe um grande prazer. Diga-lhe que a
adoro, que ela tem um marido modelo, uma pérola de virtude que só ama a ela,
mesmo quando os seus negócios o ocupam muito. Isso a tranquilizará. Ficarei
ainda mais livre e preciso de um pouco de liberdade.
Tirou
da carteira duas notas de cem francos e ofereceu-as discretamente a Mme. Lazzarra,
que as tomou mais discretamente ainda, deu as informações prometidas sobre a
vida das duas moças, prometeu à pitonisa fazer-lhe uma forte publicidade e
despediu-se, encantado.
Mme.
Lazzarra, não menos encantada devido ao lucro notável, fez os preparativos para
a consulta e foi almoçar confortavelmente. Mas um acidente terrível, e que
quase tinha consequências fatais, perturbou a sua quietude. O seu cãozinho de
estimação Guland, que era muito voraz, engoliu um osso de coelho, que se
atravessou na garganta, e quase morreu. Foi trágico. Mme. Lazzarra procurava
tirar o osso da garganta do cão sufocado, enquanto Glória se desesperava...
Enfim, salvaram Guland. Mme. Lazzarra, então, se sentiu mal, de modo que foi
preciso grande abundância de vinagre pelo rosto e álcool para beber, a fim de
recuperar os sentidos. E ainda estava sob a influência combinada da emoção e do
álcool quando chegou a hora da consulta.
A morena Andrée e a loura Irene, vestidas com
simplicidade, e um pouco impressionadas, bateram à porta de Mme. Lazzarra. A
porta se abriu silenciosamente. Vislumbraram, na penumbra do vestíbulo, um
rosto pálido com vastos cabelos entremeados de ornamentos de cobre e com
grandes olhos esgazeados. Era Glória, vestida com um longo manto violáceo. Essa
pessoa bizarra mandou-as entrar para uma grande sala decorada de tapeçarias
sombrias e cujas cortinas fechadas interceptavam a luz do dia, porque Mme.
Lazzarra era afeita à escola da feitiçaria romântica. Três luzes vermelhas
brilhavam fracamente num dos ângulos e um defumador, num tripé, exalava uma
nuvem espessa e aromática.
As
duas mulheres, com o coração batendo, esperaram sem falar. Uma porta, no fundo,
se abriu. Glória deslizou como um espectro nos tapetes macios.
—Uma
das senhoras, uma só, murmurou.
Tomou
Andrée pela mão e levou-a ao gabinete de consulta. Era uma sala inteiramente
forrada de pano negro ornado com os signos do zodíaco e com figuras
desconhecidas, prateadas. Do teto pendia uma lâmpada verde. No chão, estava
desenhado um grande círculo branco no tapete preto, e, no meio do círculo, Mme.
Lazzarra estava de pé sob a lâmpada verde, sua volumosa pessoa envolta numa
túnica vermelha, riscada de sinais cabalísticos. Uma faixa encarnada envolvia
sua cabeça e fazia parecer mais lívida sua face gorda, que careteava sob a
influência do demônio.
—Venha
para o círculo! Venha para o círculo! — ordenou com voz surda.
A
moça obedeceu, impelida por Glória, que desapareceu. A vidente segurou com a
mão esquerda a de Andrée e com a direita um pequeno gancho com um cabo de
madeira e dois dentes de aço.
—
Ouça o que ouvir, veja seja o que for — recomendou Mme. Lazzarra — não diga
nada, não se mexa. Está em perfeita segurança. Começo a conjuração:
"Conjuro-te,
Lúcifer, pelo nome do inefável Deus On, Alfa e Omega, Eloy, Eloim, Va, Sadey,
Lux Rex, e te conjuro e esconjuro pelos nomes que estão declarados nas letras
V. C. X., e pelos nomes de Sol, Agia, Riffasoris, Oriston, Amul, Soter,
Perchiram, Simulaton, Perpi e pelos muitos altos nomes de Galli, Euga, Ingadum,
Obu, Englabis..."
Mme.
Lazzarra pronunciava vertiginosamente a sua conjuração, sapateava, apertava
nervosamente a mão de Andrée, agitava o gancho, e, de repente, mergulhou os
dentes na chama da lâmpada verde.
—Ele
vem, ele vem! Está aqui! — gritou. — Que deseja saber? O passado, o futuro? Ouça!...
Um
quarto de hora depois, Andrée, um pouco pálida, saiu do antro da sibila, onde a
loura Irene a substituiu, trêmula. Quando as duas se encontraram na rua, trocaram
as impressões.
—Ela
é surpreendente, declarou Irene... Disse-me tudo. Eu estava espantada... Sabe
toda a minha vida... É maravilhoso... Por isso vou seguir os seus conselhos...
Não são muito agradáveis — acrescentou a moça com um pequeno suspiro de lástima.
—Mas não faz mal. Vou segui-los. Teria medo de não o fazer... Depois, é o meu
destino, devo obedecer...
—
Eu também fiquei estupefata. — murou Andrée. E eu também vou seguir os
conselhos que ela me deu... Era muito tola, na verdade — concluiu em tom de
resolução, concentrada. — Eu também tenho direito à felicidade!
De
modo que a loura Irene se tornou um pedaço de gelo para todos, salvo para o
marido, em quem descobriu oceanos de amor e minas do mais terrível ciúme,
enquanto que Andrée procurava entre os amigos da casa o coração de fogo que a
adorava e o encontrou facilmente, como se pode imaginar.
Porque
Mme. Lazarra, perturbada pelo acidente de Guland, se lembrara das predições que
devia fazer às consultantes, mas as tinha confundido, tomando a loura por
esposa do homem que a procurara e a morena pela amiga da mulher, e fazendo suas
predições nessas bases.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: Carioca, n. 537,
de 19 de janeiro de 1946.
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