O MISTÉRIO DO SANGUE - Conto - Anatole France
O MISTÉRIO DO SANGUE
Anatole
France
(1844
– 1924)
A
cidade de Siena estava como o doente que debalde busca uma boa posição na cama
e acredita, ao se virar, iludir a dor. Várias vezes mudara o governo da
república, que passou dos cônsules para as assembleias burguesas e que,
primeiro confiado aos nobres, foi a seguir exercido pelos cambistas, os
tecelões, os boticários, os peleiros, os negociantes de seda e todas as pessoas
dedicadas às artes superiores. Mas tendo esses burgueses se revelado fracos e
gananciosos, o povo os expulsou por sua vez e entregou o poder aos pequenos
artífices. No ano de 1368 da gloriosa Encarnação do Filho de Deus, o governo
foi composto de quatorze magistrados escolhidos entre os barreteiros, os
magarefes, os serralheiros, os sapateiros e os pedreiros, que formaram o grande
conselho chamado o Monte dos Reformadores. Eram plebeus rudes como a Loba de
bronze, emblema da cidade, que amavam com um amor filial e terrível. Mas o
povo, que os havia estabelecido sobre a república, deixara subsistir acima
deles os Doze, pertencentes à classe dos banqueiros e dos ricos mercadores.
Estes conspiravam com os nobres, à instigação .do imperador, para vender a
cidade ao papa.
O
césar alemão era a alma do conluio; prometia mercenários para garantir o êxito.
Era grande a sua pressa para a conclusão do negócio, calculando que com o preço
da venda poderia reaver a coroa de Carlos Magno empenhada por seiscentos e
vinte florins aos banqueiros de Florença. Entretanto, os do Monte dos
Reformadores, que compunham o governo, seguravam firme, a chibata do comando e
velavam pela salvação da república. Esses artesãos, magistrados de um povo
livre, haviam interditado ao imperador, entrado nos seus muros, o pão, a água,
o sal e o fogo; haviam-no expulsado gemente e trêmulo, e condenavam os
conspiradores à pena capital. Guardiões da cidade fundada pelo antigo Remo imitavam
a severidade dos primeiros cônsules de Roma. Mas a sua cidade, vestida de ouro
e seda, deslizava-lhes entre as mãos como uma cortesã lasciva e pérfida. E a
inquietude os tornava impiedosos.
No
ano de 1370, souberam que um gentil-homem de Perusa, Nicolas Tuldo, havia sido enviado
pelo papa afim de induzir os sienenses a entregar, de acordo com o imperador, a
cidade ao Santo Padre. Esse senhor estava na flor da mocidade e da beleza e
aprendera entre as fidalgas essa arte de agradar e seduzir, que exercia agora
no palácio dos Salembeni e nas lojas dos cambistas. E, embora fosse um tanto
leviano e superficial, ganhava para a causa do papa muitos burgueses e alguns
artesãos. Informados dessas intrigas, os magistrados do Monte dos Reformadores
fizeram-no comparecer perante o seu sereníssimo conselho e, tendo-o interrogado
sob o estandarte da república, onde se vê um leão que se arremessa,
declararam-no culpado de atentar contra a liberdade da república.
Ele
não respondeu a esses sapateiros e magarefes senão com um sorriso desdenhoso.
Mas quando ouviu a sentença de morte, caiu num profundo assombro e
conduziram-no como adormecido para a prisão. Mas logo que foi encarcerado,
voltou a si do estupor e lastimou a sorte com todo ardor de um sangue jovem e
de uma alma impetuosa; as imagens das suas voluptuosidades, armas, mulheres,
cavalos, desfilavam-lhe diante dos olhos e, ao pensar que jamais os
desfrutaria, foi arrebatado por um tão furioso desespero que bateu os punhos e
a cabeça contra as paredes da sua enxovia, soltando lamentos e uivos que se
ouviam por toda a redondeza até nas
casas dos burgueses e nas barracas dos tecelões. Acudindo aos seus gritos, o
carcereiro encontrou-o coberto de sangue e escuma.
Nicola
Tuldo não cessou de urrar durante três dias e três noites.
Fizeram
disso um relatório para o Monte dos Reformadores. Os membros do sereníssimo
governo, depois de atender aos casos mais urgentes, examinaram o do infeliz
condenado. Leone Rancati, tijoleiro do seu Estado, disse:
—Este homem deve pagar com a cabeça o seu
crime contra a república de Siena; e ninguém pode resgatá-lo desse débito, sem
usurpar os sagrados direitos da cidade, nossa mãe. É preciso que ele morra. Mas
a sua alma pertence a Deus que a criou e não convém que, por nossa culpa, ele
morra no desespero e no pecado. Asseguremos-lhes, pois, sua salvação eterna por
todos os meios em nosso poder.
Mateino
Renzano, o padeiro, que era notável pela sabedoria, levantou-se por seu turno e
disse:
—Falaste
bem, Leone Rancati. Eis por que convém enviar ao condenado Catarina, a filha do
pisoeiro.
Esse
parecer foi aprovado por todo o governo, que resolveu convidar Catarina a
visitar Nicolau Tuldo na sua prisão.
Naquele
tempo, Catarina, filha de Giacomo, o pisoeiro, perfumava com as suas virtudes a
cidade de Siena. Residia numa célula na casa paterna e usava o hábito das
Irmãos da Penitência. Cingia sob o vestido de lã branca uma cadeia de ferro, e
flagelava-se diariamente durante uma hora. Depois, mostrando os braços cobertos
de chagas, dizia: "Eis ai as minhas rosas!" Cultivava no seu quarto
lírios e violetas com que fazia guirlandas para os altares da Virgem e dos
Santos. E durante esse tempo cantava hinos em língua vulgar em louvor de Jesus
e de Maria. Nesses tristes anos em que a cidade de Siena era uma hospedaria de
dor e uma casa de alegria, Catarina visitava os prisioneiros e dizia às prostitutas:
"Minhas irmãs, eu quisera ocultar-vos nas chagas amorosas do Salvador!".
E uma virgem tão pura, inflamada de uma tal caridade, não poderia desabrochar e
florir senão em Siena que, sob as suas máculas e entre os seus crimes,
permanecia sendo a cidade da Santa Virgem.
Avisada
pelos magistrados, Catarina dirigiu-se à prisão pública na manhã do dia em que
Nicolau Tuldo devia morrer. Encontrou-o estendido sobre o chão de pedras do
cárcere, blasfemando em grandes gritos. Aí, erguendo o véu branco que o
bem-aventurado Senhor, pessoalmente, descendo do Paraíso, lhe pusera sobre a
cabeça, descobriu ao prisioneiro um rosto de beleza celeste. Como ele o
encarasse, assombrado, ela inclinou-se sobre ele para enxugar-lhe a baba que
escorria da boca.
Nicolau
Tuldo, voltando para ela os olhos ainda ferozes, lhe disse:
—Afasta-te!
Odeio-te porque és de Siena, que me mata. Oh, Siena, verdadeira loba que
mergulha as presas vis na garganta de um nobre de Perusa! Ó, loba sórdida, ó
cadela imunda e selvagem!
Catarina
respondeu-lhe:
—Irmão,
que significa uma cidade, que são todas as cidades da terra, ao pé da de Deus e
dos anjos? Eu sou Catarina e venho convidar-te para as núpcias eternas.
A
doçura dessa voz e a limpidez desse rosto derramaram de súbito a paz e a luz na
alma de Nicolau Tuldo.
Recordou-se
dos seus dias de inocência e chorou como uma criança.
O
sol, erguendo-se sobre os Apeninos, branquejava a prisão com os seus primeiros
raios.
Catarina
disse:
—Eis
a manhã! De pé para as núpcias eternas, meu irmão, de pé!
E,
ajudando-o a levantar-se, conduziu-o à capela, onde Fra Cattaneo lhe ouviu a
confissão.
Logo
a seguir, Nicolau Tuldo assistiu devotamente à santa missa e recebeu o corpo de
Jesus. Depois, voltou-se para Catarina e disse-lhe:
—Fica
comigo; não me abandones e assim me sentirei bem e morrerei contente.
Os
sinos puseram-se a bimbalhar, anunciando a morte do criminoso.
Catarina
respondeu:
—Irmão,
esperar-te-ei no lugar da justiça.
Então,
Nicolau Tuldo sorriu e disse:
—Quê!
A doçura da minha alma esperar-me-á no lugar santo da justiça!
Catarina
meditou e orou dizendo:
—Meu
Deus, enviaste-lhe uma grande luz, pois ele chama de santo o lugar da justiça.
Nicolau
Tuldo disse ainda:
—
Sim, caminharei animado e alegre. Tarda-me, como se eu tivesse de esperar mil
anos, chegar lá onde a reencontrarei.
—Às
núpcias, às núpcias eternas! — repetiu Catarina saindo da prisão.
Serviram
ao condenado um pouco de pão e de vinho; deram-lhe um manto negro; depois foi
conduzido através dos caminhos ladeirentos, ao som de trombetas, entre os
guardas da cidade, sob o estandarte da república. As ruas estavam, cheias de
curiosos e as mulheres levantavam nos braços os filhinhos mostrando o homem que
ia morrer.
Nicolau
Tuldo, entretanto, pensava em Catarina, e os seus lábios, tão cheios de
amargor, entreabriam-se docemente como para beijar a imagem da santa.
Depois
de haver subido durante algum tempo a rude calçada de tijolos, o cortejo
atingiu uma das alturas que dominam a cidade e o condenado viu subitamente, com
os seus olhos que em breve se extinguiriam, os tetos, os zimbórios, os
campanários, as torres de Siena e, ao longe, os muros que seguiam o pendor das
colinas. E teve saudade da cidade natal, da sua ridente Perusa, cingida de
jardins, onde as águas correntes cantam entre frutos e flores. Lembrou-se do
terraço que domina o vale do Trasimeno, onde o olhar bebe o dia com delícia.
E
o arrependimento da sua vida afligiu-lhe de novo o coração. Suspirou:
— Ó minha cidade natal!... Ó... a casa dos
meus pais!...
Depois
o pensamento de Catarina lhe voltou à alma e a fez transbordar de alegria e
paz.
Por
fim, alcançaram a praça do mercado, onde, a cada sábado, os camponeses de
Camiano e de Granayola expunham à venda os limões, as uvas, os figos, as maçãs
e lançavam às donas de casa alegres pregãos misturados de ditos picantes. Era
aí que estava erguido o cadafalso.
Nicolau
Tuldo viu aí Catarina, orando ajoelhada, com a cabeça sobre o cepo.
Subiu
os degraus com uma alegria impaciente.
À
sua chegada, Catarina ergueu-se e volveu-se para ele com o ar da esposa que se
une ao esposo; ela própria quis descobrir-lhe o pescoço e colocar o amigo sobre
o cepo como sobre um leito nupcial.
Depois
se ajoelhou ao lado dele. Quando ele disse três vezes com fervor: "Jesus,
Catarina!", o carrasco brandiu a sua espada e a virgem recebeu nas mãos a
cabeça decepada.
Então
pareceu-lhe que todo o sangue da vítima se difundia nela e enchia-lhe as veias
com uma onda doce como o leite ainda quente; um odor delicioso fez-lhe pulsar
as narinas; nos seus olhos inundados perpassavam sombras de anjos. Entre
assombrada e enlevada, tombou molemente no abismo das delícias celestes.
Duas
mulheres da ordem terceira de São Domingos, que estavam junto do cadafalso,
vendo-a estendida e imóvel, apressaram-lhe em reerguê-la e ampará-la. Voltando
a si a santa falou-hes:
—
Vi o céu!
Como
uma das mulheres se preparava para lavar com uma esponja o sangue que cobria o
vestido da virgem, Catarina deteve-a vivamente:
— Não — disse —, não me subtraia esse sangue; não
tirem a minha púrpura e os meus perfumes.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: A Noite
Ilustrada, edição de 19/01/1943.
Imagem: Carlo Dolci (1616
— 1686).
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