UM INCIDENTE NA VIDA DE MARIA STUART- Conto Histórico de Alexandre Dumas


UM INCIDENTE NA VIDA DE MARIA STUART
Alexandre Dumas
(1802 – 1870)

Logo depois dos primeiros dias de seu casamento, a rainha Maria da Escócia pôde julgar a que homem frívolo e inconsiderado havia, sobre aparências enganadoras, confiado a ventura de toda sua vida. Darnley era pior que mau: era fraco, irresoluto e assomado, de sorte que, não tendo a persistência e a dissimulação necessária para chegar a seu fim, queria fazê-lo por brutalidades ou surpresas. Naquela ocasião, o que ele ambicionava era alcançar a coroa matrimonial que Maria tinha concedido a Francisco II, porque, enquanto não fosse revestido dessa dignidade, que só Maria lhe podia conceder, ele não era realmente rei, mas somente marido da rainha. Ora, depois da experiência que ela havia feito de seu caráter, Maria estava resolvida a não ceder por pretexto algum a seus desejos.

Darnley, que, em sua eterna mobilidade, não podia compreender como os outros tinham uma resolução firme e determinada, procurou, não em Maria, mas nas pessoas que a rodeavam, a causa de sua recusa. Pareceu-lhe, então, que o homem mais interessado em que ele não obtivesse essa coroa matrimonial, objeto de todos os seus desejos, era Rizzio, que, tendo visto cair em torno de si todas as influências, e havendo conservado a sua, devia naturalmente temer ainda mais a de um marido do que a de um semi-irmão. Desde esse momento, portanto, considerou Rizzio como o único obstáculo que se opunha a que ele fosse verdadeiramente rei, e resolveu desfazer-se dele.

Não foi difícil a Darnley, nesta ocasião, achar uma simpatia assassina naqueles mesmos que rodeavam o trono. Os nobres não tinham visto, sem profunda inveja, um simples servidor, como era Rizzio, chegar ao emprego de secretário particular da rainha. Não haviam eles compreendido, ou fingirão não compreender, as causas reais deste favor, que era, a princípio, a superioridade incontestável de Rizzio sobre eles, superioridade tamanha, que Maria seria forçada, para achar o equivalente do que lhe ele oferecia, a procurar entre os homens mais letrados do clero católico, o que não deixaria de excitar contra ela todos os da religião reformada, que teriam visto nesta escolha da rainha uma nova prova de sua antipatia pelo culto novo. Todos, portanto, consideravam Rizzio como um aventureiro feliz, e não como num homem de mérito, deslocado por um erro de nascimento, e restituído à posição que lhe convinha por uma espécie de remorso da fortuna. Demais, queriam perder a rainha, e, enquanto existisse Rizzio, graças aos bons conselhos que este lhe dava, era isso quase impossível. Foi, portanto, decidida a morte do secretário.

Os dois principais cúmplices de todo este drama foram, depois de Darnley, seu primeiro instigador, James Douglas, conde de Morton, chanceler do reino, amigo íntimo e criatura de Murray, e lorde Ruthwen, tio do “rei”, senhor oriundo de uma das mais nobres famílias da Escócia, porém enfraquecido pela devassidão, e já pálido e febricitante de enfermidade mortal, que devia matá-lo dezoito meses depois desta época, isto é,  nos últimos dias de fevereiro de 1566.

Morton e Ruthwen logo reuniram suficiente número de cúmplices. Estes cúmplices eram o bastardo de Douglas, André Karrew e Lindsay. Auxiliaram-se mais, mas sem lhes dizer para quê, com 150 soldados, que tiveram ordem de estarem prontos todas as noites das 7 para as 8 horas.

Pelo mesmo tempo, recebeu Rizzio muitos avisos, que lhe diziam que se acautelasse, por estar a sua vida ameaçada, e que desconfiasse principalmente de certo bastardo. Rizzio respondeu que, desde muito tempo, havia feito o sacrifício de sua vida à sua posição, e que sabia muito bem que um homem nascido em tão baixa condição, como era a sua, não se elevava impunemente ao ponto a que havia chegado; que, quanto ao bastardo de que lhe falavam, e que ele acreditava ser o conde de Murray, saberia, enquanto vivesse, conservá-lo tão longe de si e da rainha, que julgava que nem um nem outro houvesse motivo de recear.

Rizzio permaneceu, portanto, senão seguro, indiferente ao menos, e isto enquanto seus inimigos, já de acordo sobre seu assassinato, não discutiam mais senão sobre o modo por que deviam matá-lo. Morton, fiel às tradições de seu antepassado, Douglas, queria que, como os validos de Jaime II na ponte de Lauder, Rizzio fosse preso, julgado e enforcado, o que, em sua qualidade de chanceler do reino, assegurava não dever sofrer tardança alguma. Mas Darnley, que, além de outras culpas que imputava a Rizzio, suspeitava, também, e muito injustamente, segundo todas as probabilidades, comércio adúltero entre ele e a rainha, insistiu que fosse assassinado à vista de Maria, inquietando-se pouco com os acidentes que, em uma mulher com sete meses de gravidez, podiam resultar de tal espetáculo.

Alguns dias depois, os nobres receberam o aviso de que Rizzio devia, no dia seguinte, que era 9 de março, cear com a rainha, com a condessa de Argyle, Maria Seyton, e algumas outras damas. Maria dava, efetivamente, de tempos em tempos, algumas ceias particulares, nas quais deixava de lado todo o aparato da realeza. Sentia-se feliz quando podia, a exemplo de seu pai, Jaime V, gozar alguns instantes dessa liberdade tão grata aos que são constantemente encadeados pela regra da etiqueta! Estas ceias compunham-se ordinariamente de mulheres, e Rizzio só era admitido a elas graças a seu talento de música. Os conjurados não tinham, portanto, que recear outra resistência do que a da vítima, e era sabido que, em presença da rainha, Rizzio, fazendo justiça à baixeza de seu nascimento, não usava espada nem punhal.

A 9 de março, pelas 6 horas da tarde, os 150 soldados foram introduzidos no castelo pelo próprio “rei”, que se deu a conhecer à sentinela de uma das portas, e levou-os para um pátio interno, para o qual davam as janelas do gabinete de Maria Stuart. Chegado ali, arranjaram-se por baixo de um alpendre grande, a fim de não serem vistos, o que não deixaria de acontecer sem esta precaução, estando o parque, como estava, coberto de neve.

Tomada esta primeira disposição, Darnley foi ter com os senhores que o esperavam numa sala baixa e, fazendo-os subir por uma escada em caracol, levou-os para a câmara onde dormia a rainha, que era junto do gabinete em que estavam ceando os convivas, e da qual podia-se ouvir tudo que eles diziam. Depois deixou-os, no escuro, recomendando-lhes que não entrassem enquanto não ouvissem gritar: “A mim, Douglas!”.  Deu volta por um corredor e, abrindo uma porta secreta, entrou no gabinete e foi encostar-se às costas da poltrona em que estava sentada a rainha.

As três pessoas que estavam com as costas viradas para essa porta, e que eram Maria Stuart, Maria Seyton e Rizzio, não virão a entrada do “rei”; mas as três, que estavam defronte, ficarão imóveis e mudas logo que o viram aparecer. A rainha, vendo-as mudar de porte, pensou que alguma coisa estranha se passava por detrás e, voltando-se com vivacidade, viu Darnley cem o sorriso nos lábios, porém tão horrivelmente pálido que logo previu que se devia passar alguma coisa terrível. Nesse momento, e quando ela ia interrogá-lo a respeito de sua presença inesperada, ouviram-se passos pesados e arrastados na sala vizinha, que se aproximavam da tapeçaria, a qual, levantando-se lentamente, deixou ver lorde Ruthwen, armado de ponto em branco, pálido como um fantasma, e tendo na mão uma espada nua.

 —Que quereis, mylord? — exclamou a rainha. — E o que vindes aqui fazer armado? Estais delirante, e devo lastimar-vos ou perdoar-vos?

Mas Ruthwen, sem responder, estendeu o braço armado para Rizzio com a lentidão de um espectro. Depois, com voz surda, disse:

—O que venho aqui fazer, senhora? Venho procurar este homem!

—Este homem! — exclamou a rainha, tomando posição por diante de Rizzio. —Este homem! E que quereis fazer?

Giustizia! Giustizia!  — bradou Rizzio, pondo-se de joelho por detrás de Maria e pegando-lhe na orla do vestido.

—A mim, Douglas! — exclamou o “rei”.

No mesmo instante, Morton, Karrew, o bastardo de Douglas e Lindsay precipitaram-se no gabinete com tanta violência que derrubaram a mesa para chegar mais depressa a Rizzio que, esperando que o respeito devido à rainha o protegeria, se conservava sempre por detrás dela.

Maria fazia frente aos assassinos com tranquilidade e majestade supremas, mas eles tinham avançado demasiado e não podiam recuar. Então André Karrew, pondo-lhe o punhal no peito, ameaçou-a de feri-la se não se retirasse.

No mesmo momento, Darnley, agarrando-a pelo corpo, levantou-a com violência e sem atenção alguma por sua gravidez, enquanto o bastardo de Douglas cumpria a predição fatal, arrancava o punhal que estava suspenso ao peito do “rei” e com ele feria Rizzio.

A este primeiro golpe, caiu o infeliz, dando um grito. Mas, levantando-se logo, arrastou-se sobre os joelhos para o lado da rainha, que não cessava de gritar, debatendo-se: “Graça! perdão!” . Mas, antes que ele pudesse chegar aonde ela estava, todos caíram sobre ele e, enquanto uns feriam, os outros, arrastando-o pelos pés para fora do gabinete, deixaram no assoalho esse longo traço de sangue que ainda hoje se vê. Depois, quando chegarão à câmara lateral, cada qual, mutuamente animando-se, quis dar seu golpe, de sorte que se contaram no cadáver 56 feridas, das quais mais de 20 eram mortais.

Durante este tempo, Darnley segurava sempre a rainha que, julgando que Rizzio ainda não estava morto, não cessava de gritar “graça!”, até que finalmente reapareceu Ruthwen, mais pálido ainda do que a primeira vez, e tão fraco que, sem poder falar, sentou-se  em uma poltrona, respondendo às perguntas de Darnley por um gesto de cabeça, e mostrando-lhe seu punhal ensanguentado , o qual metia na bainha. Então Darnley deixou Maria, que deu dois passos para Ruthwen, e disse-lhe:

 —De pé, mylord! De pé! Ninguém se senta em presença da rainha sem permissão. De pé! E sai daqui.

 —Não é por insolência que me sento, mas por fraqueza — respondeu Ruthwen. — Pois que hoje, a serviço de vosso marido e para bem da Escócia, fiz mais exercício do que me permite o meu médico.

Mylord — tornou a rainha —, talvez nunca me possa vingar, porque sou apenas uma mulher. Mas este que aqui está — disse ela batendo no seio com a energia que não pertencia a uma mulher — ou não terá o nome de meu filho, ou vingará sua mãe.

Ditas estas palavras, ela desapareceu, fechando a porta com violência. Nessa noite foi enterrado Rizzio, sem pompa e sem rumor, na porta da igreja mais próxima.

Tradução de autor desconhecido.
Fonte: Museo Universal, edição de 21 de novembro de 1840.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O AMIGO DEVOTADO - Conto de Oscar Wilde

O CONTO DE ALIBECH E FREI RÚSTICO - Conto Humorístico de Giovanni Boccaccio

O SONHO DE UMA HORA - Conto de Kate Chopin

O COLAR DE DIAMANTES - Conto Cruel de Guy de Maupassant