O PEQUENINO - Conto Trágico de Guy de Maupassant
O PEQUENINO
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
O
senhor Lemonnier ficara viúvo e com um filhinho. Amara loucamente sua mulher,
com amor exaltado e terno, sem nenhum desfalecimento, durante todo o tempo em
que haviam vivido juntos. Era um bom homem, na verdadeira acepção da palavra;
simples, muito simples, sincero, sem desconfiança ou malícia.
Sentindo-se
apaixonado por uma vizinha pobre, pediu-a em casamento e desposou-a. Tinha uma
loja de fazendas cujo comércio era muito próspero. Não ganhava mal e não tardou
em ser atendido pela moça. Ela tornou-o feliz. Ele não via outra coisa no
mundo, não pensando senão nela, olhando-a sem cessar com uns olhos de adorador
ajoelhado. Durante as refeições, chegava a cometer mil desastres para não
desviar o seu olhar daquele rosto querido, chegando a deitar o vinho no prato e
a água no saleiro, pondo-se em seguida a rir como uma criança, repetindo:
—Amo-te
muito, vês; e isso faz-me cometer asneiras aos montões.
Ela
sorria, com ar calmo e resignado, depois desviava os olhos, como se incomodada
pela adoração de seu marido, e tratava de o fazer falar fosse sobre o que fosse.
Mas ele tomava-lhe a mão por cima da mesa e conservava-a na sua, murmurando:
—Joaninha,
minha querida Joaninha!
Ela
acabava por se impacientar e por dizer:
—Vamos,
avia-te! Tem juízo. Come e deixa-me comer.
Ele
soltava um suspiro e cortava um pouco de pão, que mastigava, em seguida,
lentamente.
Durante
cinco anos, não tiveram filhos. Depois, de repente, ela apareceu gravida. Foi
uma alegria doida. Ele não a deixou durante todo o tempo da gravidez. E de tal
modo que a sua criada, uma criada velha que o tinha criado e que levantava a
voz na casa, o punha por vezes para fora e lhe fechava a porta para o forçar a
ir tomar ar.
Ele
ligara-se em intima amizade com um homem novo, que conhecera sua mulher desde a
infância e que era subchefe de secção na prefeitura. O senhor Duretour jantava
três vezes por semana em casa do senhor Lemonnier, levava flores à esposa deste
e por vezes a oferta de uma frisa. E, muitas vezes, à sobremesa, aquele bom
Lemonnier enternecido exclamava, voltando-se para sua mulher.
—
Com uma companheira como tu e um amigo como ele, é-se perfeitamente feliz no
mundo.
Ela
morreu de parto. Ele quis morrer também, mas aquela criança que nascera deu-lhe
coragem. um pequenino ser crispado que vagia.
Ele
amava-o com um amor apaixonado e doloroso, com um amor doente, onde ficara a
saudade da esposa e onde sobrevivia alguma coisa da sua adoração pela sua
querida morta. Era a carne de sua mulher, o seu ser continuando-se, como uma
quintessência dela. Aquela criança era a sua própria vida num outro corpo: a mãe
desaparecera para que ele existisse...
E
o pai beijava o pequenito com frenesi. Mas aquela criança também tinha
assassinado; ela tomara-lhe, roubara-lhe aquela existência adorada de que se
nutrira, de que bebera, em parte, a vida.
E
o senhor Lemonnier depunha o seu filho no berço e sentava-se perto dele para o
contemplar. Ficava ali horas e horas, olhando-o, pensando em mil coisas tristes
e saudosas. Depois, como o pequeno dormisse, debruçava-se para o seu rosto e
chorava sobre as suas rendas.
*
O
pequeno cresceu. O pai não podia passar um só instante sem a sua presença;
fazia-o andar em redor dele; passeava-o; ele próprio o vestia, o lavava e lhe
dava de comer. O seu amigo, o senhor Duretour, parecia estimar também o garoto
e beijava-o com grandes transportes, com os frenesis de ternura que têm os
pais. Fazia-o saltar em seus braços, fazia-o dançar durante horas a cavalo numa
das suas pernas, e de repente, deitando-o sobre os joelhos, levantava-lhe as
roupinhas curtas e beijava-lhe as rosquinhas de carne nas coxas ou nos joelhos
gorduchos. O senhor Lemonnier, encantado, murmurava:
—
Como é lindinho! Como é lindinho!
E
o senhor Duretour apertava o pequeno nos braços e fazia-lhe cócegas no pescoço
com os bigodes.
Só
Celeste, a velha criada, não parecia experimentar a mínima ternura pelo
pequeno. Enfastiava-se com as suas travessuras, parecia exasperar-se com a meiguice
que os dois homens lhe faziam, e exclamava:
—Pode-se
lá criar uma criança de semelhante modo! Hão de fazer dele um macaco!
Passaram
tempos e João fez nove anos. Sabia apenas ler, tanto o haviam estragado com
mimos, e só fazia o que se lhe metia na cabeça. Tinha vontades tenazes,
resistências teimosas, cóleras furiosas. O pai cedia sempre, concordava com
tudo. O senhor Duretour comprava e levava pacotes de brinquedos para o pequeno
e entulhava-o de bolos e bombons.
Celeste,
então, ia aos ares, gritava:
—
É uma vergonha, senhor! Uma vergonha! O senhor faz a desgraça desta criança. A
desgraça dela, entende? Mas é preciso que isto acabe o quanto antes. Sim, e há
de acabar. É o que lhe digo eu, que lhe prometo eu. Verá que não está já por
muito!
O
senhor Lemonnier respondia, sorrindo:
—
Que queres tu, minha filha? Eu gosto tanto dele, que não lhe posso resistir. Será
preciso que tu tomes o teu partido; faze o que quiseres.
João
era fraco, um tanto doente. O médico classificou de anemia. Receitou ferro,
carne em sangue e sopa gorda. Ora, o pequeno só gostava de bolos e recusava
toda outra qualquer comida. E o pai, desesperado, abarrotava-o de pasteis de
creme e de bombons de chocolate. Uma noite, como se pusessem à mesa em tête a tête, Celeste trouxe a terrina
com uma segurança e um ar de autoridade que não tinha de ordinário. Destapou-a
bruscamente, mergulhou a concha no meio, e declarou:
—
Ora, aqui está um caldo como ainda lhes não tinha feito. É preciso que o menino
coma, desta vez.
O
senhor Lamonnier, espantado, baixou a cabeça. Viu que a coisa caminhava mal.
Celeste
tomou o prato do patrão, encheu-o e pôs na frente.
Ele
provou logo a sopa e disse:
—Com
efeito, está excelente. Então a criada pegou o prato do pequeno e deitou nele
uma concha cheia de sopa. Depois recuou dois passos e esperou.
João
cheirou e repeliu o prato, fazendo um gesto de enjoo. Celeste fez-se pálida,
aproximou-se bruscamente e, agarrando na colher, meteu-a à força, completamente
cheia, na boca entreaberta da criança.
O
pequeno engasgou-se, tossiu, vomitou, escarrou e, berrando, empunhou com as
duas mãos o copo, que atirou à criada. Ela recebeu a pancada em pleno ventre.
Então, exasperada, tomou sob o seu braço a cabeça do traquinas e principiou a fazer-lhe
penetrar colheradas de sopa nas goelas. Ele vomitava, à medida que ela o
obrigava a engolir o caldo. Torcia-se, sufocava, agitava as mãos no ar,
vermelho, como se fosse morrer sufocado.
O
pai ficou a princípio por tal forma surpreendido que não fez sequer um
movimento: depois, de repente, atirou-se com uma raiva de louco furioso,
agarrou a criada pelas goelas e atirou-a de encontro à parede, balbuciando:
—Fora!...
Fora!... Fora já! Fora daqui, sua bruta!
Mas
ela, num safanão, repeliu-o e, desgrenhada, com a touca para as costas, os
olhos ardentes, gritou:
—Que
quer o senhor fazer? Quer-me bater porque obriguei esta criança a comer, esta
criança que o senhor quer matar com gulodices?
Ele
repetia, tremendo da cabeça aos pés:
—Fora
daqui, já lhe disse, sua bruta!...
Então,
sufocada de cólera, ela cresceu para a frente e, com os seus olhos juntos aos
olhos dele, disse, com a voz trêmula:
—Ah!... O senhor julga... o senhor julga que pode
tratar-me assim, a mim, a mim? Isso é que não! E por quê, por quem?... Por esse
ranhoso que não é seu... Não... Não é seu!... Não é seu e não é seu!... Toda a
gente o sabe, com mil raios! Exceto o senhor... Pergunte ao merceeiro, ao
carvoeiro, ao padeiro, a todos, a todos...
Ela
tartamudeava, estrangulada pela cólera. Depois calou-se, olhando-o.
Ele
não bulia, lívido, os braços pendidos.
Ao
fim de alguns segundos, balbuciou em voz sumida, trêmula, em que palpitava uma
comoção formidável:
—
Que dizes tu?... Que dizes tu?... O que é que tu dizes?...
Ela
ficava calada, assustada com a expressão do rosto dele. Ele deu ainda um passo,
repetindo:
—Tu
dizes... O que é que tu dizes?
Então,
ela respondeu numa voz já acalmada:
—Eu
digo o que sei, e então?... O que toda a gente sabe.
Ele
levantou as mãos e, atirando-se a ela num transporte bestial, fez por atirá-la
à terra. Mas ela era forte e, embora fosse velha, e era ágil também.
Esgueirou-se-lhe dos braços e, correndo em redor da mesa, tornou-se de repente
furiosa e redobrou:
—
Olhe para ele, olhe bem para ele. Como o senhor é tolo! Veja se ele não é
perfeitamente o retrato do senhor Duretour. Veja aquele nariz, veja aqueles
olhos; tem-nos assim, por acaso, o senhor? E o nariz? E os cabelos? Parece-me
bem que ela também os não tinha assim! Já lhe disse que toda a gente o sabe,
toda a gente, exceto o senhor! Anda na boca do mundo! É a risota de toda a
cidade! Olhe para ele...
E
a criada passou por diante da porta, abriu-a e desapareceu. João, espantado,
ficara imóvel, em frente do seu prato sopa.
*
Ao
cabo de uma hora, ela voltou, muito devagar, para ver. O pequeno, depois de ter
devorado os bolos, a compoteira de creme e a das peras passadas, comia a esse
tempo um boião de doce com a sua colher de sopa.
O
pai tinha saído.
Celeste
pegou o pequeno, beijou-o e, a passos mudos, levou-o para o quarto. Depois,
deitou-o. E voltou à sala de jantar, levantou a mesa, arranjou tudo, muito
inquieta.
Não
se ouvia ruído nenhum em casa, mesmo nenhum. Foi colar o ouvido à porta do
quarto do patrão. Não se fazia ali o menor movimento. Aplicou o olhar ao buraco
da fechadura. Ele escrevia e parecia tranquilo.
Então
voltou a sentar-se, na cozinha, para estar pronta para o que desse e viesse, porque
ela esperava qualquer coisa. Deixou-se dormir sobre uma cadeira e só despertou
já dia.
Tratou
do governo da casa, segundo o seu costume de todas as manhãs. Varreu, espanou e, por volta das oito horas,
preparou o café do senhor Lemonnier.
Mas
não se atrevia a levá-lo ao patrão, calculando como iria ser recebida. E
esperava que ele tocasse. Mas ele não tocou. Deram nove, deram dez horas.
Celeste,
assustada, preparou a bandeja e dirigiu-se para o quarto com o coração
palpitante.
Diante
da porta parou, escutou. Não bulia nada. Bateu; ninguém respondeu. Então,
chamando a si toda a sua coragem, abriu e entrou. Depois, soltando um grito
terrível, deixou cair a bandeja que tinha nas mãos.
O
senhor Lemounier estava pendente, no meio do quarto, de uma corda amarrada ao
gancho do teto. Tinha a língua deitada de fora, pavorosamente. A chinela do pé
direito jazia por terra. A do pé esquerdo estava calçada. Uma cadeira que fora
derrubada rolara até o leito.
Celeste,
como doida, fugiu gritando.
Os
vizinhos acudiram todos. O médico constatou que a morte remontava à meia-noite.
Sobre a mesa do suicida achava-se uma carta endereçada ao senhor Duretour. Essa
carta continha apenas a linha seguinte:
"Deixo-lhe e confio-lhe o pequeno”.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “Careta”, edição
de 14 de janeiro de 1914.
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