O FRATRICIDA - Conto de Gabriele D’Annnuzio
O FRATRICIDA
Gabriele
D’Annunzio
(1863
– 1938)
Mal
percebeu o ruído das muletas, Lucas abriu desmesuradamente os olhos, turvos e
ardentes, voltando-os para a porta onde seu irmão devia aparecer.
Todo
o seu rosto, emagrecido pelo sofrimento, devorado pela febre, semeado de
borbulhas avermelhadas, tomou, repentinamente, um ar de dureza, quase de furor.
Agarrou
convulsamente as mãos da mãe, gritando com voz brusca e rouca:
—Expulse-o!
Expulse-o! Eu não quero vê-lo! Ouve? Eu não quero vê-lo nunca mais, nunca mais! Ouve?
As
palavras estrangulavam-se em sua garganta. Sufocado por um acesso de tosse,
apertou nervosamente as mãos da mãe. E, sobre seu peito, a camisa agitava-se,
entreabrindo-se a cada esforço. Tinha a boca inchada e, no queixo, as borbulhas
secas formavam uma crosta que a cada momento se fendiam e sangravam.
A
mãe tentava acalmá-lo:
—Não, não, meu filho. Não o verá mais. Farei o que quer.
Vou expulsá-lo. Vou expulsá-lo. A casa é sua, meu filho, toda sua. Compreende?
Lucas
tossia-lhe no rosto.
—Agora,
imediatamente! — repetia ele com uma insistência feroz, levantando-se do leito
e empurrando a mãe para a porta.
—
Sim, meu filho. Agora, imediatamente.
Daniel
apareceu no limiar, apoiando-se nas muletas. Era um pobre idiota, com uma
grande e pesada cabeça. Tinha os cabelos tão louros que pareciam brancos. Os
olhos, doces como os de um cordeiro, eram azuis e protegidos por grandes cílios
claros.
Entrou
sem nada dizer: uma paralisia o tinha privado da voz. Mas percebeu os olhos do
doente, fixos nele, com uma energia cruel. E parou no meio do quarto, apoiado
nas muletas, irresoluto, não ousando dar mais um só passo. Na perna direita,
encolhida e torcida, percebia-se um ligeiro tremor.
Lucas
disse à mãe:
—
O que vem fazer aqui este estropiado? Expulse-o! Quero que o expulse! Ouve? Imediatamente!
Daniel
compreendeu e olhou a madrasta que já se levantava. Olhou-a com olhos tão suplicantes
que ela não teve coragem de maltratá-lo.
Então,
segurando uma das muletas sob um braço, fez com a mão livre um gesto de
desespero e dirigiu para o guarda-pão colocado em um canto um olhar voraz.
Este olhar queria dizer: "Tenho fome".
—Não,
não! Não lhe dê nada! — gritou Lucas, agitando-se na cama e impondo à mãe seu
odioso capricho. — Nada! Ponha-o fora!
Daniel
deixara cair sobre o peito sua enorme cabeça. Tremia e tinha os olhos cheios de
lágrimas. Quando a madrasta lhe pôs a mão no ombro e o empurrou para a porta,
prorrompeu ele em soluços, mas não se revoltou. Ouviu que fechavam a porta à
chave e ficou no patamar, soluçando. Era um soluço continuo e violento.
Lucas
disse à mãe, com um gesto colérico:
—Você
não o escuta? Ele faz de propósito para que eu piore.
O
soluço fraternal se prolongava, entrecortado, de instante a instante, por um
rugido esquisito, triste como o gemido de um animal que vai morrer.
—Mas escute! Depressa! Atire-o pela escada
abaixo!
A
mulher levantou-se de um salto, correu à porta e levantou sobre o mundo as mãos
rudes habituadas a bater e a maltratar.
Lucas,
apoiado nos cotovelos, repetia:
—Mais!
Mais!
Sob
as pancadas, Daniel calou-se. Desceu para a rua, contendo as lÁgrimas. Estava
esfaimado, pois havia já quase dois dias nada comia. Apenas tinha força para
arrastar suas muletas.
Um
bando de garotos passou: corriam atrás de um papagaio que subia dando
cabeçadas. Alguns o atropelaram gritando:
—Oh,
estropiado!
Outros
o escarneciam:
—Vamos
a galope, belo corcel!
Outros,
aludindo à sua enorme cabeça, perguntavam, com ironia:
—Por
quanto a libra de miolos, zambeta?
Um
outro, mais cruel, fez-lhe cair uma muleta e fugiu. O mudo cambaleou e,
depois, com imensa dificuldade, apanhou a muleta e pôs-se a caminhar. Os gritos
e as risotas perderam-se do lado da ribeira. O papagaio, semelhante a um pássaro
dos países encantados, subia ao céu, suavemente róseo. No cais, grupos de
soldados cantavam em coro. Era a bela estação, depois da festa de Páscoa.
Daniel,
que sentia a fome roer-lhe as entranhas, resolveu: "Vou pedir
esmolas".
O
forno do padeiro impregnava o ar primaveril de um delicioso cheiro de pão
fresco. Um homem, todo de branco, passou, tendo à cabeça uma grande prancha, onde
se alinhava uma porção de pãezinhos dourados, ainda fumegantes. Dois cães
seguiam-no, o focinho para o ar, agitando a cauda.
Daniel
pensou desfalecer de inanição. Dizia:
"Preciso
pedir esmolas; do contrário, morrerei de fome".
O
crepúsculo caía lentamente. O céu, o, diáfano, estava semeado de papagaios que
se balouçavam, voltando para a terra. Os sinos espalhavam, na atmosfera sonora,
um murmúrio profundo e continuo.
Daniel
refletiu: "Vou postar-me à porta da igreja".
E
para lá se dirigiu.
A
igreja estava aberta. Ao fundo, o altar, iluminado por uma infinidade de
pequeninas chamas oscilantes, assemelhava-se a uma constelação.
Pela
porta vinha um perfume muito suave de incenso e de benjoim. Por momentos, o órgão
fez ouvir uma melodia.
Subitamente,
Daniel sentiu novas lágrimas velarem-lhe os olhos; e, no seu coraçãozinho, pronunciou
esta ardente oração: "Oh Senhor! Oh, meu Deus! Socorrei-me!"
O
órgão, ferido por um acorde, fez vibrar as pilastras, como se fossem
instrumentos. Depois animou-se em notas alegres. Ouviu-se a voz dos cantores.
Os devotos e devotas, dois a dois, três a três, entravam por uma única porta.
Daniel não ousara ainda estender a mão. Perto dele um mendigo murmurou:
—A
caridade, pelo amor de Deus!
Então,
o mudo teve vergonha.
Ele
viu a madrasta entrar na igreja, envolvida num grande manto preto. E pensou:
"Se eu fosse à casa durante a sua ausência?"
A
tortura da fome era tão imperiosa que o não deixou pensar mais. Corria com as
suas muletas à procura do pão. No caminho, uma mulherzinha gritou, rindo:
—
Ó, estropiado! Você quer, então, ganhar o grande prêmio?!
Num
fechar de olhos ele chegou a casa, esbaforido, palpitante. Subiu as escadas sem
ruído, tomando precauções extraordinárias. Tateando, procurou a chave numa cavidade da parede onde
a madrasta a colocava habitualmente quando saía. Achou-a, e, antes de abrir
espiou pela fechadura. Lucas, na cama, parecia dormir.
Daniel
imaginou: "Se eu pudesse apanhar o pão sem despertá-lo!"
E
ele deu volta à chave, docemente, contendo a respiração, com receio de acordar
Lucas com as palpitações de seu coração. Estas palpitações pareciam-lhe encher
toda a casa de um barulho ensurdecedor.
"E
se ele acorda?" — pensou Daniel, sentindo correr-lhe um arrepio pela
espinha, quando viu que a porta se abria.
Mas
a fome o tornava audaz. Entrou, colocando no chão as muletas, sem perder o
irmão de vista.
"E
se ele acorda?"
O irmão, deitado de costas, tinha no sono a
respiração difícil. De quando em quando, saía-lhe dos lábios uma espécie de
assobio ligeiro. Sobre a mesa, a única vela acesa projetava, na parede, grandes
sombras móveis.
Chegando
perto do guarda-pão, Daniel, para vencer sua perturbação, .parou e olhou o
irmão. Depois, ao mesmo tempo em que se apoiava sobre as muletas, esforçava-se
para levantar a tampa. Ouviu-se um estalido seco.
Lucas,
sobressaltado, abriu os olhos, e, vendo o que fazia seu irmão, pôs-se a gritar,
agitando os braços como um possesso:
—Ah, ladrão! Ah, ladrão! Socorro!
Mas
o furor sufocava-o. E, enquanto Daniel, curvado sobre o guarda-pão, cego pela
fome, procurava, com mão trêmula, um pedaço de pão, Lucas saltou da cama e
atirou-se sobre ele para o impedir de continuar.
—Ladrão! Ladrão! — gritava furioso.
Enraivecido,
deixou cair a pesada tampa sobre o pescoço de Daniel, que se debateu
desesperadamente, como uma vítima apanhada numa armadilha. Mas Lucas subjugava
com firmeza os esforços do cativo. Ele perdera toda a consciência do que fazia.
E calcava com todo o seu peso como para decapitar seu irmão. A tampa estalava,
enterrando-se na carne viva da nuca, e esmagava as artérias do pescoço, e moía
as veias e os nervos, até que, enfim, um corpo inerte caiu do guarda-pão, um
corpo que não dava mais sinal de vida.
Então,
à vista do aleijado assassinado, uma pavorosa loucura invadiu a alma do
fratricida. Duas ou três vezes, cambaleando, ele atravessou o quarto, que os
clarões da vela enchiam de pavor, apanhou nervosamente as cobertas, envolveu-se
nelas dos pés à cabeça, sem descobrir nem mesmo o rosto, depois escondeu-se
debaixo da cama. No silencio, seus dentes rangiam como uma lima sobre o ferro.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “Vida Policial”
(RJ), edição de 4 de abril de 1925.
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