A VIÚVA E O SAPATEIRO - Conto de Mário Terrabatava



A VIÚVA E O SAPATEIRO
Mário Terrabatava
(Conto inspirado numa antiga narrativa medieval.)

Em minha terra, se um homem sem prole masculina morre ab intestato — ou seja, sem deixar testamento —, seus bens, porque não expressamente destinados aos familiares supérstites, são arrecadados pelo e para o tesouro real, ainda que o defunto tenha filhas e a sua esposa esteja viva.  Mulher e filhas, graças ao descaso da  Divina Providência e à Imprevidência do desgraçado varão, estão condenadas à indigência ou à prostituição (se não  a ambas, a depender da idade da viúva), acaso não tenham parentes vivos e generosos — o que é mui raro; menos a parentela, mais a generosidade — que lhes garantam um  miserável sustento. E tudo é assim porque os agentes do tesouro são inclementes e, se lhes não é exibida prontamente uma certidão autêntica, de inteiro teor, do testamento, arrancam das mulheres o último dos últimos vinténs, quando não algo mais. Algo menos metálico e mais lúbrico.

Não posso dizer que o bom escriturário das docas fosse um homem negligente, mas tenho certeza de que era avaro e muito supersticioso. Acreditava que, em chamando o tabelião para lhe redigir um testamento, estaria antecipando a própria morte. Para a sua vetusta e mais que sábia sabedoria, herdada dos mais respeitáveis doutores em presságios e sortilégios, ou em incontestes coisas afins, ditar um ato de última vontade a um notário era o mais tenebroso dos agouros. Sem dúvida, apanharia, no dia seguinte, uma irremissível influenza. Ou se veria às turras com a calma e disciplinada indulgência de um agente piedoso da Santa Inquisição.

Ao morrer, o escriturário deixava uma vinha, cuja produção lhe proporcionava uma satisfatória quantia à época da vindima, além de uns bons escudos de ouro, acumulados há vários decênios, em mãos de honrados e honestos banqueiros florentinos. O vinhedo era bom, mas aquelas notas promissórias, sempre frescas e cheirosas, constituíam a parte mais expressiva de sua pequena e respeitável fortuna. E todos, em minha terra, do mendigo postado à porta da igreja tenebrosa ao impoluto alcaide-mor, sabiam perfeitamente disto. E muito mais.

Quando o escriturário morreu, a viúva — de cujo ventre nunca brotara uma criatura viva sequer — percebeu que a miséria invadia, impiedosamente, sem pedir licença, os seus marmóreos umbrais. Mas porque era ardilosa, a boa senhora não se inquietou. Ordenou às suas criadas que trancafiassem o cadáver do marido no quarto contíguo àquele em que morrera, e que chamassem, com premência, o vizinho sapateiro. Sim, o abominável sapateiro! A fortuna do marido não haveria de engordar os tesouros do rei, que de tal fazenda mui bem prescindia, mas que jamais seria insuficiente ou desprezível no custeio de maravilhosos banquetes ofertados aos obsequiosos e fleumáticos cortesãos, homens de excelente linhagem e pérfida índole. Entrementes, ela — a legítima esposa, a lastimosa viúva de um bom e conclamado sovina — morreria de fome e de frio, sem ter nem mesmo uma pedra limosa em que reclinar a cabeça. Ah, isso não!

As criadas cumpriram a missão, sem indagar por que a sua ama, mal expirara o marido, mandava chamar, com tal urgência, um antigo desafeto.  E a origem da altercação estava em um motivo deveras trivial. Ao contrário de seu marido, que, apesar de sovina, era um bom cristão, o sapateiro era um homem dado ao pecado da luxúria e aos excessos da carne, e, por conta da incrível semelhança que havia entre o sapateiro e seu marido, não raras vezes os esposos traídos intentaram matar aquele que era o seu. Justamente, para a sua vergonha, o seu! Sim, aquele inocente forreta — como já disse, um bom cristão —sempre levava a culpa por fazer perecer a castidade das puras donzelas e por instigar a dolente infidelidade feminina. Mas aquela incrível similitude, que no passado tanto angustiara e causara dissabores à proba viúva, agora poderia ser a salvação.

Chegado o pobre sapateiro, disse-lhe a mulher:

— Morreu agora o meu marido, que tanto a ti se assemelha, e acabo de chamar um tabelião, que não há de tardar. Apressa-te. Põe as roupas usuais de meu marido, mete-te por sob os seus lençóis, faz cara de doente intranquilo. Aliás, de agonizante. Muito agonizante.  Então, mui rapidamente, para que não haja suspeitas, ditarás o testamento, que é curto e breve: “deixo tudo para minha fiel esposa Filomena.”

— E o que ganho com toda esta pantomima?

— Ora, é um trabalho breve e suave, este que eu te encomendo de muito bom grado e generosidade. Não durará, à penumbra do anoitecer, mais que uns poucos minutos, se tantos. Para ti, nada mais cômodo que te passares pelo meu defunto, coisa à qual — eu que o diga! — já estás mui bem habituado. Se fizeres tudo o que te digo, eu te darei duas moedas de ouro flamengas, cunhadas em Antuérpia, e que te valem mais que um ano de trabalho duro.

O sapateiro, sem grande esforço, anuiu.

Veio o notário, carrancudo e altivo como sempre, trazendo um imenso livro embolorado, pena e tinteiro.

Fingindo-se muito enfermo, disse o sapateiro ao tabelião:

—Deixo tudo à minha fiel esposa Filomena.

O notário, sem pestanejar e com muita pressa — afinal, era domingo, e a sua amante, àquelas horas, já devia estar bem perfumada —, rabiscou o que lhe fora dito, sem erguer a vista ou hesitar na fluidez de sua indefectível escrita oficial.  A viúva exultou. Mas empalideceu, quando ouviu o que, em continuação, improvisou o ardiloso sapateiro:

— Exceto as notas promissórias. Estas eu as deixo Francesco di Ser Pietro Romano, meu bom amigo, a quem muito devo, e que é o meu fiel vizinho sapateiro.

O sapateiro fez uma careta horripilante, engasgou, arregalou e revolveu horrivelmente os olhos monstruosos e agônicos e, numa convulsão grotesca, que lhe fez encrespar as garras e repuxar os lábios, finalmente — e com as graças de Deus — expirou.  O notário coroou a escritura com a sua floreada e austera assinatura, bateu com força e impaciência o livro empoeirado (o que fez a viúva contrafeita espirrar várias vezes) e partiu, pomposamente, arrastando consigo a dignidade do cargo, sem dizer palavra.

Decerto que a viúva teve ímpetos de esgoelar o sapateiro ali mesmo, mas se conteve. Afinal, para um ardil, somente outro maior.

Hoje, a astuta viúva é falecida, mas nada lhe faltou enquanto viveu. E, hoje, eu — eu mesmo, que fui um dia um pobre sapateiro de província— sou agora (e serei doravante) um próspero mercador (graças ao inesperado capital),  que se regala com lautos manjares reais, oferecidos em troca de generosos favores absconsos. Alguns destes jantares mui deliciosos foram furtados às vinhas deixadas por uma viúva, uma alma magnânima e sagaz, que teve a infelicidade de morrer sem prole masculina, e desfrutou da amarga sina de desposar um marido que temia fazer um simples e trivial testamento.


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