MADAME TÉOFILA - Conto de Théophile Gautier
MADAME
TEÓFILA
Théophile
Gautier
(1811
– 1872)
Tradução
de Olavo Bilac (1865 – 1918) e Manuel
Bonfim (1868 – 1932)
Madame Teófila era uma gata avermelhada, de
peito branco, nariz cor-de-rosa e olhos azuis,
assim chamada porque vivia comigo numa perfeita intimidade, dormindo aos
pés da minha cama, fazendo a sesta no encosto da minha poltrona enquanto eu
escrevia, acompanhando-me ao jardim nos meus passeios, assistindo às minhas
refeições e interceptando, muitas vezes, o bocado que eu ia levar à boca.
Uma
vez, um dos meus amigos, afastando-se por alguns dias, confiou-me um papagaio,
para que eu o guardasse enquanto durasse a sua ausência. O pássaro, sentindo-se
deslocado, subira até o alto do poleiro, e circunvagava em torno, com ar
desconfiado, aqueles olhos semelhantes a tachas de latão, encarquilhando as
membranas brancas que lhe servem de pálpebras. Madame Teófila nunca vira em
toda a vida um papagaio; e esse animal, novo para ela, causava-lhe evidente
surpresa. Imóvel, tão imóvel como um gato embalsamado do Egito nas suas faixas,
mirava o pássaro, reunindo com um ar de meditação profunda todos os
conhecimentos de história natural que pudera colher nos seus passeios sobre o
telhado, no quintal e no jardim.
A
sombra de seus pensamentos passava-lhe pelas pupilas móveis, e nelas pude ler
este resumo do seu exame: “Decididamente, é um pinto verde”.
Firme
nesta conclusão, a gata saltou da mesa onde estabelecera o seu observatório, e
foi agachar-se a um canto da sala, com o ventre por terra, os cotovelos para a
frente, a cabeça baixa, o dorso estirado, como a pantera negra do quadro de
Gérome, espreitando as gazelas que vão beber no lago.
O
papagaio seguia os movimentos da gata com a inquietação febril; eriçava as
penas, mexia com a corrente, passava o bico pelo bordo do vaso das comidas.
Instintivamente, via ele na gata um inimigo, meditando e planejando alguma
peça. Quanto aos olhos da gata, fixos sobre o pássaro com uma intensidade
fascinadora, diziam, numa linguagem que o papagaio muito bem compreendia: ”Não
obstante ser verde, este pinto deve ser bom para comer!”
Eu
seguia com interesse esta cena, pronto a intervir quando fosse preciso. Madame
Teófila aproximou-se insensivelmente: as narinas róseas tremiam-lhe; e
semicerrava os olhos, estendia e contraía as garras.
Calafrios
corriam-lhe o dorso, como a um gastrônomo que caminha para uma mesa bem
servida; deleitava-se com a ideia do repasto suculento e raro que ia fazer.
Aquele manjar exótico aguçava-lhe o apetite.
De
repente, seu dorso se encurvou como um arco retesado, e, de um salto, ela foi
cair prestemente sobre a gaiola. O papagaio, vendo o perigo, com uma voz baixa,
grave e profunda como a de um filósofo, gritou: “Já almoçaste, Jacquot?”
Esta
frase causou um indizível terror à gata, que imediatamente saltou para trás.
Uma fanfarra de clarins, um monte de pratos despedaçando-se, o estampido de uma
espingarda nos ouvidos, não lhe teriam causado mais vertiginoso medo. Todas as
suas ideias ornitológicas esboroavam-se.
— Quê? Manjar do rei? — continuou o papagaio.
A
fisionomia da gata exprimia claramente: “Não é um pinto, é um homem; ele fala!”
“Quando
eu bebo um pouco mais, no botequim tudo dança”, cantou o pássaro com estrondos
de voz ensurdecedores, como se houvesse compreendido que a sua palavra era o
seu melhor meio de defesa. A gata lançou-lhe um olhar cheio de interrogações,
e, não recebendo resposta satisfatória, foi estender-se na cama, de onde não
saiu todo o resto do dia.
As
pessoas que não têm o hábito de tratar com os animais pensarão talvez que estou
emprestando intenções à ave e ao quadrúpede. Mas não fiz mais do que traduzir
fielmente suas ideias em linguagem humana...
No
dia seguinte, Madame Teófila, um pouco serenada, ensaiou um novo ataque e foi
repelida pelo mesmo processo. Deu-se por satisfeita e aceitou o pássaro como
homem.
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