O DECRETO IMPERIAL - Conto - Kalaych


 

O DECRETO IMPERIAL

Kalaych

(Início do sec. XX)

 

Um dia — faz muitos anos —, enquanto o vento frio do Norte soprava entre as persianas do palácio da Cidade Proibida, sibilava por entre as decorações de laça e as pilastras de mármore e fazia ressoarem as campânulas de porcelana do teto, reuniu-se, na sala das audiências imperiais, o conselho de ministros.

O vento, embora soprasse rijamente lá fora, não conseguia penetrar o interior da Grande Corte do Esplendor, porque pesados e riquíssimos brocardos e veludos fechavam as passagens e frinchas. O fumo erguia-se quase verticalmente dos tripés misturando-se, no alto, com as emanações de cinquenta braseiros de porcelana.

O salão estava repleto de dignitários: manchus de cara feroz, chinos de compridos rabichos e, aos lados de ampla cortina, guerreiros da primeira das Oito Bandeiras, metidos em armaduras lavradas.

Súbito, o Filho do Céu apareceu. E todos caíram de joelhos, tocando o chão com a testa, ao mesmo tempo que se ouviam exclamações deste quilate: "Presença Celeste... Augusta sublimidade... Serenidade Eterna"...

 O imperador, mal se sentou no trono, exclamou:

— Chegou aos Nossos Ouvidos murmurações de que as grandes cidades dos bárbaros de pele branca são iluminadas por milhares de luzes, à noite, quando as sombras do céu descem sobre a terra. Ta-Ti-Po! — chamou, dirigindo-se ao Grande Chanceler e este, ouvindo seu nome, aproximou-se pressuroso do primeiro degrau do trono, olhos pregados ao solo (era pecado encarar o Filho do Céu). — Ta-Ti-Po, apanha no nosso tesouro um milhão de taéis e que as ruas de Pequim sejam iluminadas como se sol continuasse brilhando à noite.

—A cidade será iluminada! — respondeu o Grande Chancelar. E fazendo o gesto do ritual deixou a sala das audiências imperiais.

Na antecâmara, o Grande Chanceler pôs sua capa de seda e arminho e, sem reparar nas genuflexões dos servos e cortezões, dirigiu-se à sua sala de despachos. Ali o esperava seu secretário.

— Chama o Grande Eunuco! — ordenou.

E, apanhando seu cachimbo, principiou a fumar. Quando expelia a segunda baforada de fumo, apareceu uma montanha de carne gordurosa: era o Grande Chefe dos Eunucos.

— Grande Chefe dos Eunucos — começou o Grande Chanceler —, preciso é que saibas que o Filho do Céu (seja de dez mil anos seu reinado!) resolveu, com a bondade de seu coração, dar-me quinhentos mil taéis para que as ruas de Pequim resplandeçam à noite tanto quanto de dia. Sejam, pois, iluminadas imediatamente as ruas!

— Ouvir é obedecer —respondeu a montanha de banha, saudando conforme o ritual e saindo.

O Grande Eunuco atravessou a Cidade Proibida e regressou ao seu pavilhão. E disse ao seu secretário:

— Chama Tao-Tai!

Esperou muito tempo. O Governador Militar residia na cidade externa e o secretário precisava andar por muitas ruas e abrir muitas portas para chegar à presença de Tao-Tai. Chegou finalmente o Governador Militar.

— O Augusto Imperador — disse-lhe o Grande Eunuco — resolveu, por sua magnanimidade jamais desmentida nem desmentível, gastar duzentos e cinquenta mil taéis para que as rua, de Pequim sejam iluminados à noite. Disponha tudo para que se cumpra o sublime desejo de sua não menos sublime Majestade.

— O Filho do Céu não resolve senão coisas justas — respondeu o Governador Militar.  —Nossa cidade será a maior do mundo. Vou já cumprir as ordens do Filho do Céu.

O Governador Militar voltou imediatamente ao seu quartel e mandou chamar o Chefe dos Funcionários. Quando este chegou, após febril carreira, disse-lhe:

— O Filho do Céu, excelência, resolveu inverter cem mil taéis para que Pequim seja iluminada à noite. Faça o necessário para cumprimento do altíssimo desejo da Augusta Serenidade!

— Correrei a obedecer!  — foi a resposta do Chefe dos Funcionários.

E o Chefe dos Funcionários correu à repartição do Chefe dos Vigilantes. Entrou e, sem responder sequer às saudações dos subalternos, que se inclinavam até ao solo, ordenou ao Chefe dos Vigilantes:

— O Filho do Céu deu cinquenta mil taéis para que Pequim seja iluminada à noite. Disponha tudo imediatamente para o cumprimento do desejo de Sua Majestade Sereníssima.

Enorme a surpresa da população de Pequim quando, no dia seguinte. apareceu, afixado em todas as esquinas o seguinte édito:

 

"A Serena Sublimidade, o Filho do Céu, o Augusto Imperador, o Soberano do Império do Meio, o Senhor dos Países Bárbaros, o amo de seus vassalos e tributários decretou que as ruas de Pequim sejam iluminadas desde as primeiras horas da noite até a madrugada. Todo chefe de família, todo artesão, todo comerciante acenderá, pois, uma lanterna à porta de sua casa, oficina e tenda.

Quem se atrever a provocar os desgostos e amarguras do Filho do Céu pagará com a vida semelhante ousadia."

Houve protestos dos mais exaltados; porém, os mais modera dos encarregaram-se de abafá-los.

*

E assim, na noite seguinte, o Imperador, olhando através das janelas do sétimo andar de seu palácio de porcelana, construído sobre a Colina artificial dos jardins imperiais, pôde ver a cidade iluminada por milhões de cintilações devoradoras da obscuridade.

Entretanto, o Filho do Céu, a Sublime Serenidade, nunca soube como foi invertido o milhão de taéis retirados das arcas imperiais para aquele fim.

 

Fonte: “Carioca”/RJ, edição de dezembro de 1935.

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