O RELÓGIO - Narrativa Clássica - Charles Baudelaire
O RELÓGIO
Charles Baudelaire
Tradução de Paulo Soriano
Os
chineses consultam as horas nos olhos dos gatos.
Certa
feita, um missionário, caminhando pelos arredores de Nanjing, percebeu que
havia esquecido o relógio e perguntou a um menino que horas seriam.
A
princípio, o filho do Império Celestial hesitou. Depois, mudando de ideia,
respondeu:
—
Digo-lhe já.
Momentos
depois, ele reapareceu, segurando nos braços um gato muito grande e, olhando-o,
como dizem, “no branco dos olhos”, afirmou, sem hesitar:
—
Não é ainda meio-dia.
E
era verdade.
No
meu caso, se me achego à bela Felina, que tem um nome tão apropriado — e que é,
ao mesmo tempo, a honra do seu sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do
meu espírito, seja de noite ou de dia, em plena luz ou em sombra opaca —, no
fundo dos seus adoráveis olhos eu vejo sempre claramente o tempo, um tempo sempre
igual, uma hora vasta e solene, grande como o espaço, sem divisões de minutos
ou segundos — uma hora imóvel, que não é marcada nos relógios, mas que é leve
como um suspiro e rápida como um olhar.
E
se algum indesejável estranho viesse me incomodar, enquanto o meu olhar repousasse sobre aquele delicioso mostrador, se algum Gênio atrevido e intolerante, se
algum Demônio sinistro viesse e me dissesse: “O que você vê aí com tanta
concentração? O que você procura nos olhos desse ser? Você vê o tempo, mortal pródigo
e preguiçoso?”, eu responderia, sem hesitar: “Sim, vejo que horas são: são a Eternidade!"
.
Este
não é, senhora, um madrigal verdadeiramente meritório e tão enfático quanto
você mesma? Na verdade, eu tive tanto prazer em bordar esta pretensiosa galanteria
que não lhe pedirei nada em troca.
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