GIANNI E A ÉGUA - Conto Humorístico de Giovanni Boccaccio


 

GIANNI E A ÉGUA

Giovanni Boccaccio

(1313 – 1375)

Tradução de Paulo Soriano


No ano passado, havia em Barletta um padre, chamado Dom Gianni di Barolo, que, pároco de uma igreja pobre, para prover o próprio sustento, começou a carregar mercadorias com uma égua, de cá para lá, pelas feiras de Apulia, a comprar e a vender. Assim andando, travou estreita amizade com um homem chamado Pietro da Tresanti, que exercia o mesmo ofício com um jumento. Em sinal de afeição e amizade, conforme o costume apulense, chamava-o sempre de compadre Pietro. E todas as vezes que o compadre chegava a Barletta, levava-o à sua igreja, e ali o hospedava e o recebia com todas as honras possíveis.

Compadre Pietro, a seu turno, sendo paupérrimo, tinha uma pequena cabana em Tresanti, suficiente apenas para ele, sua jovem e bela mulher e seu jumento. Todas as vezes que Dom Gianni aparecia em Tresanti, Pietro o levava à sua casa e, como podia, em honra à hospitalidade que recebia em Barletta, fazia as honras de casa. Mas, no que diz respeito à hospedagem, não dispondo o compadre Pietro senão de uma pequena cama na qual dormia com a sua linda mulher, não podia fazer as honras como gostaria. Tendo, porém, o compadre Pedro um estábulo, onde abrigava o jumento, lá recolhia a égua de dom Gianni, e junto a ela deitava-se o visitante sobre um punhado de palha.

A mulher, sabendo o quão honrosamente o padre acolhia o marido em Barletta, houvera, muitas vezes, quando o padre chegava, manifestado o intento de retirar-se à casa de uma vizinha, chamada Zita Carapresa di Giudice Leo, para que o padre dormisse com o seu marido na cama. Disse isto várias vezes ao padre, mas este nunca aceitou. Numa destas ocasiões, disse-lhe ele:

Comadre Gemmata, não te preocupes comigo, que estou bem. Quando me apraz, eu transformo esta égua numa linda moça e fico com ela. Depois, quando quero, transformo-a novamente em égua. Por isto, não me quero separar dela.

A jovem ficou maravilhada com que o padre lhe dizia, e acreditou. Depois, contou ao marido o que ouvira, acrescentando:

Se o padre é tão íntimo de ti, como dizes, por que não pedes a ele que te ensine o encantamento? Assim, tu poderias me transformar em égua e fazer o teu negócio com o jumento e com a égua, com o que ganharíamos em dobro. E quando voltássemos à casa, tu me converterias, novamente, em mulher, e eu voltaria a ser como sou.

Compadre Pietro, que era bem simplório, acreditou no encantamento e seguiu o conselho da mulher. E então, da melhor maneira que podia, começou a solicitar a Dom Gianni que lhe ensinasse o feitiço. Dom Gianni esforçou-se muito para tirar aquela ideia da cabeça do amigo. Todavia, não o conseguindo, disse:

Já que assim queres, amanhã acordaremos, como de costume, antes que amanheça e, então, ensinarei a ti como se faz o encantamento. É verdade que o mais difícil, em todo o processo, como hás de ver, é aplicar o rabo.

Porque grande era o desejo com que esperavam ver-se cumprir o encantamento, o compadre Pietro e a comadre Gemmata quase não dormiram à noite. Por isto, levantaram-se quando se aproximava o dia e chamaram Dom Gianni. O padre, levantando-se em mangas de camisa, seguiu ao pequeno quarto do compadre Pietro e disse:

Por mais ninguém no mundo, senão a vós, eu faria isto. Por isto, já que o encantamento vos apraz, eu o farei. É verdade que vós tereis de fazer o que eu vos digo, se realmente quereis que o feitiço tenha êxito.

Eles disseram que fariam o que ele mandasse. Então, pegando um lume, Dom Gianni o pôs na não do compadre Pietro e disse:

Vê bem o que eu irei fazer e cuida de memorizar bem o que eu pronunciarei. E, se não queres pôr tudo a perder, evita pronunciar uma única palavra, seja o que for que tu venhas a ouvir ou ver. E implora a Deus para que a cauda fique mui bem presa!

O compadre Pietro, segurando o lume, disse que assim o faria. Depois, Dom Gianni ordenou que a comadre Gemmata se despisse, ficando como a sua mãe a trouxe ao mundo. Então fez com que ela ficasse com as mãos e os pés no chão, da maneira como ficam as éguas, advertindo-a, igualmente, de que não dissesse nada, acontecesse o que acontecesse. E, começando a tocar-lhe com as mãos, o rosto e a cabeça, pôs-se a dizer:

Que seja esta uma bela cabeça de égua.

E, tocando-lhe o cabelo, disse:

Que esta seja uma bela crina de égua.

Em seguida, tocando-lhe os braços, disse:

Que estas sejam belas patas dianteiras de égua.

Depois, tocando-lhe os seios — e, encontrando-os duros e redondos, fez despertar quem não havia sido chamado —, disse:

Que estas sejam belas tetas de égua.

E o mesmo fez com as costas, o ventre, as ancas, as coxas e as pernas. E, não restando mais nada a fazer, a não ser aplicar o rabo, o padre levantou a camisa. E, segurando a estaca com a qual plantava homens, rapidamente enfiou-a no sulco feito justamente para isto, dizendo:

E que seja este um belo rabo de égua.

O Compadre Pietro, que contemplara, atentamente, até então, todas estas coisas, quando viu esta última proeza, e não gostando nada do que viu, disse:

Oh, Dom Gianni, cauda eu não quero! Cauda eu não quero!

Já sobreviera o úmido radical1, do qual começam a vingar todas as plantas, quando Dom Gianni, retirando o que metera, disse:

Ai, compadre Pietro! O que fizeste? Eu não te disse que não dissesses uma palavra sequer, mesmo diante do que quer que tenhas visto? A égua estava a ponto de ser concluída, mas, falando, tu puseste tudo a perder. Agora, foi-se a oportunidade de transformar tua mulher em égua!

O compadre Pietro disse:

Assim está bem. Rabo, eu não queria. Por que não me disseste: “Põe tu mesmo o rabo?”. Além disso, tu estavas a pregar o rabo baixo demais!

Dom Gianni disse:

Porque, sendo a primeira vez que aplicavas um rabo, tu não saberias fazê-lo tão bem quanto eu.

Ouvindo tais palavras, a jovem levantou-se, e, de boa-fé, disse a seu marido:

Ah, que besta tu és! Por que puseste tudo a perder, tanto para mim, quanto par ti? Quantas éguas tu já viste sem rabo? Bem sabe Deus que tu és pobre, mas justo seria se fosses muito mais ainda!

Já não mais havendo, portanto, qualquer meio para convolar a jovem em égua, por causa das palavras ditas pelo compadre Pietro, ela, desgostosa e melancólica, voltou a se vestir. O compadre Pietro retornou, como de costume, ao seu antigo ofício, auxiliado pelo jumento de sempre. E foi à feira de Bionto com Dom Gianni, mas nunca mais lhe pediu novamente aquele favor.



Ilustração: Gravuras de autor desconhecido do século XV (edição veneziana do Decamerone, de 1492).

Nota:

1 No pensamento científico medieval, o úmido radical era o princípio da vida física dos seres vivos. Daí a jocosa equiparação ao líquido seminal. 

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