A CONSOLADORA - Conto - Catulle Mendes

A CONSOLADORA

Catulle Mendes

(1841 – 1909)

Tradução de Esmeralda

(Séc. XIX)



A cabeça pendida nas mãos e peito convulsionado pelos soluços, ele estava sentado à cabeceira do leito da agonizante. Ela, com os olhos semicerrados apresentava a rígida palidez dos cadáveres. Alta, branca, fria, deitada de costas com os cabelos soltos, a moribunda assemelhava-se a uma estátua estendida sobre o sarcófago de uma rainha.

Oh! Não te aflijas, meu querido — balbuciou a agonizante com a voz quase extinta. —Para que sofres tanto? Perdes-me, mas também eu te deixo, e não choro. É que eu sou uma pobre mulher ignorante: sou cristã. Sei que vou adormecer para dentro em pouco acordar. E quando surgir o eterno dia, encontrar-te-ei a meu lado como nas outras manhãs. Mesmo antes de Deus, hei de ver-te primeiro a ti. Desejo que partilhes esta inefável crença. Enxuga as tuas lágrimas, sorri. Dá-me um beijo: restituí-lo-ei amanhã.

Ele não respondeu. Os soluços sufocavam-no. A agonizante prosseguiu, através do estertor:

Só uma única coisa poderia perturbar a minha alma e cortar de horríveis pesadelos o meu remorso de não te haver tornado tão feliz na terra como tu merecias sê-lo. O menor desgosto saria o meu eterno desespero. Fala, pois — oh, meu querido! —, fala ainda uma vez, tu, cuja voz eu não tornarei a ouvir na terra. É verdade que abençoaste a existência desde as horas das minhas primeiras confissões, e que eu nunca te fiz sofrer?

Ele ergueu a fronte e murmurou por entre lágrimas:

Tu foste o encanto, a consolação do amor! Tu trouxeste à minha vida o paraíso em que acreditas. Não há sorriso que eu não te deva, e estas são as primeiras lágrimas que por ti choro. As outras mulheres, mesmo as mais perfeitas, têm indiferenças, crueldades, caprichos. Frequentemente desviam os olhos e o pensamento daqueles que escolheram; os mais amados sentem muitas vezes o vácuo em tono de si. Eu senti sempre na atmosfera que respirava a suavidade de tuas carícias! E não me recordo de ter desejado, desde que és minha mulher, um dia imediato diferente daquele que o precedeu.


*


Ao ouvi-lo, porém, uma sombra de melancolia obscurecia o rosto da moribunda.

Ela bem sabia que aquelas palavras não exprimiam toda a verdade. No seu júbilo, penetrara o espinho que dilacerara o coração do apaixonado esposo.

Antes de pertencer-lhe, ela amara, quando ainda era uma criança, outro homem, e o segundo marido, ferido no meio de todos os encantos pela certeza de ter ocupado no coração de sua mulher um lugar que o outro ocupara, de não ter sido o primeiro a beijar esses adorados lábios, nunca se resignara à sua amarga felicidade.

Não raro, odiara essa ventura que não fora só dele.

Entre todos os ciúmes, o ciúme do passado é o mais terrível, porque é fértil em estéreis angústias: podeis matar aquele que rouba vossa esposa; podeis feri-la; há na satisfação do ódio a compensação do desespero. Mas contra aquele que vos antecedeu, a quem ela deu o direito da posse —desaparecido, morto —, contra aquela que se deu outrora, não faltando por isso а nenhum dos seus deveres, que fazer?

Depara-se-vos o irremediável; porque de que serviria estrangular um transeunte cujo nome, pronunciado de repente, vos fez estremecer, ou violar uma sepultura para mutilar um cadáver?

Nem mesmo Deus poderia destruir o que já está feito.

Nas palavras, nos beijos de amor, vibra sempre o eco de outros beijos, dados, correspondidos, oferecidos, a quem? A alguém, a um rival misterioso, sempre presente, ainda que impalpável.

Uma ideia fixa acompanha-nos sempre e em todos os instantes; pensa-se que ela amou antes de nos amar, que experimentou por outro os mesmos desejos, as mesmas ternuras, que estremeceu de júbilo ao som de uns passos, que não eram os nossos, que palpitou de louca paixão, a que fomos estranhos: terrível, espantosa e incomparável dor!…

E era essa dor que a moribunda sabia que seu marido sofrera mais do que qualquer outro.

Durante a sua vida, poderia distraí-lo — curá-lo era impossível —, consolá-lo à força de sincero amor e constante dedicação. Mas, quando ela deixasse de existir, quando lhe não fosse permitido suavizar-lhe as mágoas com as suas carícias, provar-lhe, pelo adorável excesso da sua paixão, que nunca ela amara tanto, então os rancores do passado acordariam mais violentos do que nunca e nenhuma voz os faria recuar. Sempre que ele evocasse a lembrança da querida morta, levantar-se-ia o espectro do outro. O seu ciúme, sem nenhum lenitivo, possuí-lo-ia completamente, furiosamente! E tudo o abandonaria, na sua dolorosa viuvez, exceto a visão do passado!

Enquanto assim pensava e ele chorava, alguém entrou. Era o padre, chamado à pressa.

Piedosa, a moribunda persignou-se com mão trêmula.

Deixa-me por um instante, meu amigo — murmurou ela. — Quero ficar só com Deus.

Ele levantou-se.

Só te peço que não te afastes para muito longe. Preciso saber que estás perto de min. Vai para aquele quarto e não feches a porta. Se eu me sentir pior, chamar-te-ei, para que tu recebas o meu último suspiro.

Ele retirou-se, cobrindo a cara com as mãos.


*


Meu padre — disse ela com voz extinta e imperceptível —, se à hora das supremas confissões uma miserável pecadora, ainda perturbada por um interesse humano, mentisse ao Deus de caridade e dede justiça, esse Deus seria implacável para ela, não é assim?

Decerto, minha filha — volveu o sacerdote.

A agonizante estremeceu sob os lençóis brancos que a cobriam como uma mortalha.

A sua execrável mentira não poderia obter nenhuma misericórdia?

Nenhuma, minha filha — confirmou o padre.

A doente empalideceu tanto que o padre abreviou a confissão, temendo que a morte viesse interrompê-la. Ela principiou acusando-se das leves faltas da sua piedosa e imaculada existência. O padre sorria, deleitando-se com a pureza dessa alma que ia voar para o seio de Deus. De súbito, porém, e depois de olhar para a porta entreaberta, a moribunda, fazendo um supremo esforço, sentou-se na cama, e disse, elevando a voz:

Devo confessar-lhe, meu padre, um pecado antigo, que não confessei, nem mesmo no tribunal da penitência. Nunca amei o meu primeiro marido. Eu era uma criança quando me casaram: consenti em ser sua mulher, perturbada pela esperança do himeneu, que atrai todas as meninas. Mas nunca, nunca amei esse homem — juro-o, pelo Deus que e ouve! No dia imediato ao nosso casamento, fugi, aterrada das suas carícias, da sua presença, das suas palavras, de tudo que nele me repugnava e afastava. Súplicas, ameaças, tudo foi inútil. Afigurava-se-me que, se ele me tornasse a tocar, eu morreria instantaneamente de desgosto e de horror. E, durante os três anos que durou a nossa união, vivi sempre só e pura como uma virgem. É este o pecado de que me acuso, meu padre. Mas, ai de mim! Não me arrependo. Sim, mesmo nesta hora em que vou comparecer na presença de Deus, experimento um jubilo inefável ao lembrar-me que me reservei para o verdadeiro esposo da minha alma, para aquele que, na eternidade...

Não concluiu a frase. Sacudida por uma convulsão, caiu pesadamente no travesseiro, batendo com os pés nas costas do leito. Foi sobre una morta que o padre depôs a absolvição.

Ouviu-se um grito, o marido empurrou a porta e veio rojar-se aos pés do leito.

Lívido, desvairado, louco de dor, o infeliz contemplava o cadáver da esposa, mas nos seus olhos cheios de lágrimas transluzia a serenidade do êxtase, e era assim que ele olhava para a querida morta, adormecida na beatitude de um indefinível sorriso.




Fontes: “Illustração Portugueza”/PT, edição de 16 de fevereiro de 1885 e “Jornal do Commercio”/SC, edições de 28 e 29 de abril de 1885.

Ilustração: Cornelis de Vos (1584 – 1651).

 

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