O GRANDE MICHU - Conto - Émile Zola
O GRANDE MICHU
Émile Zola
(1840 – 1902)
Tradução de autor desconhecido do séc. XIX
I
No recreio das quatro horas, o Grande Michu chamou-me misteriosamente para um canto do páteo. Tomara ele um ar grave que me inspirou algum temor, pois o Grande Michu era um rapaz muito corpulento, de bíceps enormes, que, por coisa nenhuma, quisera eu ter no número dos meus desafectos.
— Ouve — disse-me ele, com a sua rude voz de campônio ainda mal limado. — Ouve. Queres acompanhar-nos?
— Sim — respondi imediatamente, sem hesitar, encantado com ideia de acompanhar o Grande Michu fosse no que fosse.
Então ele explicou-me que se tratava de uma conjuração. As confidências que me fez causaram-me uma deliciosa sensação. Igual nunca mais experimentei.
Afinal, assim entrava eu nas arriscadas aventuras da vida, ia ter um segredo a guardar, uma batalha a ferir. Sem dúvida, o medo sopeado que experimentava, com a ideia de comprometer-me por tal forma, entrava por metade nos acres prazeres do meu novo papel de cúmplice.
Por isso, enquanto o Grande Michu falava, eu contemplava-o com pasmo e admiração. Iniciou-me ele no mistério de um modo rude, como a um recruta em cuja energia sete uma confiança medíocre.
Entretanto, o frêmito de satisfação, ar de entusiástico transporte que por certo mostrei ao ouvi-lo, acabaram por incutir-lhe um melhor juízo a meu respeito. No momento em que a sineta tocava por segunda vez e quando íamos entrar em linha para voltarmos à sala de estudo, disse-me, baixinho:
— Então, está entendido. Tu nos acompanhas… Não terás medo. Não nos atraiçoarás?
—Oh, não! Hás de ver. Está jurado.
Encarou-me com os seus grandes olhos pardos, bem de frente, com a dignidade de um homem verdadeiramente maduro, e disse-me ainda:
— Se assim não praticares, tu sabes, não te baterei; mas direi por toda parte que és um traidor e ninguém mais falará contigo.
Recordo-me ainda da singular impressão que produziu em mim tal ameaça.
Ela deu-me uma coragem imensa.
—Ora! — disse comigo. — Bem podem dar-me de castigo dois mil versos a copiar. O diabo me leve se eu cometer uma traição.
Esperei com impaciência febril a hora do jantar. Era no refeitório que a revolta devia rebentar.
II
O latagão do Michu era do departamento do Var. Seu pai, um campônio que possuía alguns acres de terra, pegara em armas e mordera o seu cartucho em 1851 na insurreição provocada pelo golpe de estado. Deixado por morto na planície de Uchâne, ele conseguira esconder-se.
Quando de novo apareceu, não foi incomodado.
Somente, as autoridades do lugar, os figurões, os grandes e pequenos capitalistas, depois disso, não o apelidavam senão de “o bandido”.
Esse bandido, esse homem de bem analfabeto, mandou seu filho para o colégio de A… Sem dúvida, queria que o filho se tornasse sábio para a vitória da causa que ele não soubera defender senão com as armas na mão. No colégio, conhecíamos por alto esta história e por isso encarávamos o nosso camarada como um personagem deveras temível.
Além disto, o Grande Michu era muito mais velho que nós. Tinha perto de dezoito anos, conquanto muito atrasado nos estudos, e de classe inferior à nossa. Ninguém se animava, contudo, a debicá-lo. Era um desses espíritos retos que aprendem com dificuldade, que nada adivinham; mas, quando ele sabia alguma coisa, sabia a fundo e para sempre. Atlético, como que feito a machado, reinava como chefe nos recreios.
Sem embargo desta energia, era de uma extrema brandura. Uma única vez o vi fora de si: queria esganar um vigilante que nos ensinava que todos os republicanos eram ladrões e assassinos. Por um triz, não foi expulso do colégio nesta ocasião.
Só muito tempo depois, quando, em minhas recordações, tornei a ver o meu antigo camarada, é que pude compreender sua atitude mansa e forte. Muito cedo o seu pai devia ter-lhe inculcado as ideias da idade viril.
III
O Grande Michu dava-se bem no colégio, o que não deixava de admirar-nos. Seu único suplício, de que ele não ousava falar, era a fome. O Grande Michu estava sempre com fome.
Não me lembro de ter visto apetite igual. Ele, tão altivo, chegava, entretanto, algumas vezes a fazer papéis humilhantes para arrancar um pedaço de pão, um almoço ou uma merenda qualquer. Criado ao ar livre, na fralda das montanhas, sofria mais cruelmente do que nós com a exiguidade das rações colegiais.
Este era um dos nossos assuntos de conversa no pátio, encostados ao muro, a cuja sombra nos abrigávamos. Nós outros éramos gente delicada.
Lembro-me especialmente de um certo bacalhau preparado com molho pardo e de um certo feijão com molho branco que se tinham tornado objeto de uma maldição geral.
Nos dias em que tais pratos vinham à mesa, tínhamos assunto para intermináveis objurgatórias. O Grande Michu, por espírito de solidariedade, nos acompanhava, gritando conosco, conquanto fosse capaz de engolir, de bom grado, as seis rações da mesa à que se sentava.
A queixa maior do Miguelão vinha somente da quantidade dos haveres e não da sua qualidade. O acaso, como para exasperá-lo, havia-o colocado na extremidade da mesa ao lado do vigilante, rapaz franzino e de fraca figura, que nos deixava fumar quando nos levava a passear. Pelo regulamento, os vigilantes tinham direito a duas rações. Por isso, quando nos davam linguiças, valia a pena ver o Grande Michu olhar às furtadelas para os dois pedaços de linguiça que se estendiam, emparelhadas, no prato do pequeno vigilante.
— Tenho duas vezes mais corpo que ele — disse-me, um dia, o Grande Michu — e ele que tem duas vezes mais comida do que eu, lambendo assim mesmo os pratos, e nunca achando que seja demais!
IV
Ora, os cabeças tinham sentado e resolvido, afinal, que devíamos revoltar-nos contra o bacalhau em molho momo pardo e o feijão com molho branco.
Como era natural, os conspiradores ofereceram ao Grande Michu a chefatura da insurreição. O plano desses senhores era de uma simplicidade heroica. Bastaria, pensavam eles, pôr o seu apetite em greve, e recusar toda a comida, até que o provisor declarasse solenemente que o jantar seria melhorado. A aprovação deste plano pelo Grande Michu é um dos mais belos rasgos de abnegação do movimento sedicioso com o heroísmo tranquilo dos antigos romanos que se sacrificavam pela causa pública.
Pensem um momento! Custava-lhe bem pouco fazer desaparecer no estômago o bacalhau e o feijão. Só o que desejava era que lhe dessem bastante, que lhe dessem a fartar! E, no entanto, para cúmulo, pediam que ele jejuasse.
Confessou-me, mais tarde, que essa virtude republicana, que seu pai lhe ensinara, a solidariedade, a dedicação do indivíduo aos interesses da comunidade, jamais fora sujeita a uma prova mais dura.
Naquela noite, no refeitório — era um dia de bacalhau com olho pardo —, a greve rompeu com uma unanimidade realmente bela. Só era permitido comer pão. Chegavam os pratos de comida, não os tocávamos; comíamos o nosso pão seco sem mais nada.
E fazíamos isto gravemente, sem cochicharmos, como era nosso habitual costume. Os pequenos eram os únicos que riam.
O Grande Michu esteve sublime. Naquela primeira noite, nem pão quis comer. Apoiara os cotovelos sobre a mesa e olhava com soberano desdém o pequeno vigilante que comia ou, antes, que devorava sua ração.
Entretanto, mandaram chamar o provisor, que entrou no refeitório como um furacão. Apostrofou-nos asperamente, perguntando-nos o que tínhamos a dizer do jantar, que provou e que achou delicioso.
Então levantou-se o Grande Michu:
— Sr. provisor —disse ele —, o bacalhau está podre, não conseguimos digeri-lo.
— Ora essa! — berrou o franzino vigilante sem dar tempo ao provisor para responder. — Nas outras noites, você tem comido sozinho quase todo o prato.
O Grande Michou tornou-se rubro.
Naquela noite, limitaram-se a mandar-nos dormir, dizendo-nos que, no dia seguinte, provavelmente teríamos refletido.
V
No dia seguinte e naquele que lhe sucedeu, Grande Michu esteve terrível. As palavras do vigilante haviam-no ferido no coração. Ele nos conteve e disse que seríamos uns cobardes se cedêssemos. Tomara como ponto de honra provar que, quando queria, não comia.
Foi um verdadeiro mártir. Nós outros, seus companheiros, escondíamos todos, em nossas escrivaninhas, chocolate, latas de doce e até salame, que nos ajudavam a não comer completamente seco o pão com que recheávamos os bolsos. O Grande Michu, que não tinha um só parente a cidade e que, aliás, recusava qualquer gulodice, ficou estritamente reduzido aos pedaços de pão que pôde achar.
No terceiro dia da greve, tendo declarado o provisor que, já que os alunos teimavam em não tocar nos pratos, ia mandar suspender a distribuição de pão, a revolta rebentou por ocasião do almoço. Era um dia de feijão com molho branco.
O Grande Michu, cuja fome atroz devia perturbar-lhe a cabeça, levantou-se de repente. Agarrou o prato do vigilante, que comia a bom comer para zombar de nós, ou desafiar-nos o apetite, e atirou-o no meio do refeitório, entoando a Marselhesa com sua voz volumosa. Foi como um grande sopro, uma poderosa corrente que nos pôs todos de pé. Os pratos, os copos, as garrafas dançaram uma quadrilha infernal e os vigilantes, passando por cima dos cacos, deram pressa em abandonar-nos o refeitório. O nosso frangote vigilante, quando fugia, recebeu nas costas um prato de feijão, cujo molho arranjou-lhe um lindo cabeção branco.
Entretanto, urgia fortificar-se a praça. O Grande Michu foi aclamado general. Mandou que levássemos e amontoássemos as mesas de encontro às portas. Recordo-me que todos tínhamos nas mãos as nossas facas de mesa. E a Marselhesa troava sempre A revolta tomara ares de revolução. Pareceu-nos que tinham ido chamar a polícia. Bastaram essas três horas de berreiro para nos acalmar.
Havia no fundo do refeitório duas grandes janelas que davam para o pátio. Os mais timoratos, espantados pela longa impunidade em que nos deixavam, abriram sorrateiramente uma das janelas e foram se esgueirando. Pouco a pouco, os outros alunos os foram imitando. Em breve, o Grande Michu não teve mais do que uma dezena de revoltosos junto a si. Então, com voz áspera, lhes disse:
—Vão ter com os outros. Basta um culpado.
Depois, dirigindo-se a mim, acrescentou:
—Desligo-te do juramento que fizeste, ouviste?
Quando os soldados arrombaram uma das portas, acharam o Grande Michu, sozinho, sentado sossegadamente à cabeceira de uma das mesas, rodeado de louça quebrada. Na mesma noite, foi ele expulso do colégio e remetido a seu pai. Quanto a nós, pouco lucramos com a revolta. Por algumas semanas, deixaram de servir-nos bacalhau e feijão. Depois, reapareceram, porém, disfarçados: o bacalhau preparado com molho branco e o feijão com... molho pardo.
VI
Muitos anos depois, tornei a encontrar o Grande Michu.
Não pudera continuar os estudos. Por sua vez, cultivava as terras que seu pai lhe deixara quando morreu.
—Eu teria sido um péssimo advogado ou um mau médico — disse-me ele. —
Minha cabeça era por demais dura. Melhor é que seja lavrador. Desta vida entendo eu... Sem embargo disto, fizeram-me vocês uma boa! Eu gostava tanto do bacalhau e do feijão!
Fonte: “Annuario da Provincia do Rio Grande do Sul para o Ano de 1889”/RS, Ed. Gundlach & Cia Livreiros, Porto Alegre, 1888.
Fizeram-se breves adaptações textuais.
Ilustração: Wilhelm Schütze (1840-1898).
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