A ORDENANÇA - Conto Trágico de Guy de Maupassant
A
ORDENANÇA
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
O
cemitério, cheio de oficiais, dava a ideia de um campo florido. Os quepes e os
calções vermelhos, os galões e os botões dourados, os sabres, os atacadores do estado-maior,
os passamanes dos caçadores e dos hussares passavam pelo meio dos túmulos,
cujas cruzes brancas ou pretas abriam os braços desolados — braços de ferro, de
mármore ou de madeira —sobre todo um povo que a morte fizera desaparecer.
Acabavam
de enterrar a mulher do coronel de Limousin, a qual se havia afogado dois dias
antes, quando se banhava.
Tudo
terminara, o clero já havia ido embora, mas o coronel, sustido por dois oficiais,
continuava de pé, em frente da cova, em cujo fundo ainda se via o ataúde de
madeira que ocultava, já decomposto, o corpo de sua jovem esposa.
Era
quase um ancião, um esgrouviado de bigodes brancos, que se casara havia três
anos com a filha de um camarada, o coronel Sartis que, morrendo, deixara-a ao
desamparo.
O
capitão e o lugar-tenente, que serviam de apoio ao seu chefe, procuravam
arrastá-lo dali. Ele resistia com olhos rasos de lágrimas ao convite.
—Não,
não; ainda um instante — obstinava-se em ficar acolá, com as pernas bambas, à
borda daquele buraco que aparecia sem fundo — um abismo onde lhe tinham caído o
coração e a vida, tudo que lhe restava sobre a terra.
De
repente, aproximou-se o general Ormont, deu o braço ao coronel e levou-o quase
à força:
—Vamos-nos
embora, meu velho camarada; queres ficar aqui?
Então
o coronel obedeceu e voltou para casa.
Logo
que abriu a porta do gabinete, avistou sobre a sua mesa de trabalho uma carta.
Virou-a e esteve a ponto de desfalecer de surpresa e de emoção. Reconhecera a
letra de sua mulher. E a carta apresentava o carimbo do correio com a data
daquele mesmo dia. Rasgou a envelope e leu:
“Meu
pai.
Permitia
que ainda o chame assim, como antigamente. Quando receber esta carta, eu já
estarei morta e enterrada. Talvez que me possa, então, perdoar.
Não
procurarei comovê-lo nem atenuar a minha falta. Quero apenas dizer com toda
sinceridade de uma mulher — que vai matar-se dentro de uma hora — a verdade
inteira e completa. Quando o senhor me desposou por generosidade, eu aceitei-o
por gratidão e amei-o com todo o meu coração de moça. Amei-o do mesmo modo que
ao pai, quase tanto; e um dia, enquanto sentada sobre os seus joelhos, o senhor
beijava-me, chamei-o de pai, sem que o percebesse. Foi um grito do coração,
institivo, espontâneo. Realmente, o
senhor para mim era um pai, nada mais de que um pai. O senhor, riu-se, dizendo
me: “Chama-me sempre assim, minha filha, que me dás prazer”.
Viemos
para esta cidade e —perdoe-me, meu pai — e me apaixonei. Oh, resisti muito
tempo, quase dois anos! Mas, depois, cedi. Tornei-me culpada, tornei-me uma
mulher perdida.
Quanto
a ele, o senhor não adivinhará quem é. Nesse ponto estou bem tranquila, porque
eram doze os oficiais que andavam sempre ao meu redor, fazendo-me a corte, e
aos quais o senhor apelidara de minhas doze constelações.
Meu
pai, não procure conhecê-lo, nem o odeie. Ele fez o que faria outro qualquer em
seu lugar. E, depois, eu tenho a certeza de que ele me amava com toda a sua
alma.
Mas,
ouça: um dia nós havíamos marcado um encontro na ilha das Marrecas, não sabe? Aquela
ilhota adiante do moinho.
Eu
tinha de chegar ali a nado e ele devia esperar-me entre as moitas e depois
ficar lá até a noite para não o verem partir. Acabava eu de encontra-lo, quando
os ramos entreabriram e apareceu-nos Philippe, a sua ordenança, que nos havia
surpreendido. Compreendi que estávamos perdidos e soltei um grito enorme. Então,
ele, o meu amigo, disse- me:
—Volte
nadando bem devagarinho, minha querida, e deixe-me a sós com este homem.
Parti,
porém, tão comovida que estive quase a afogar-me e entrei em casa esperando
alguma coisa de espantoso.
Uma
bora depois, Philippe cochichava- me no corredor do salão onde passei por ele:
—Estou
às ordens da senhora, se tem alguma carta a entregar me.
Compreendi
então que ele se vendera e que o meu amigo o comprara.
Confiei-lhe
algumas cartas — com efeito, todas as minhas cartas mesmo — e ele as levava e
trazia-me as respostas.
Isso
durou cerca de dois anos.
Nos
tínhamos tanta confiança nele quanto o senhor mesmo.
Aqui
está o que sucedeu, meu pai.
Um
dia em que havia ido à ilha a nado, mas dessa vez sozinha, encontrei a sua
ordenança. Aquele homem estava mesmo à minha espera e preveniu-me de que nos
denunciaria ao senhor e entregar-lhe-ia umas cartas que ele conservara,
roubadas, se eu não me entregasse aos seus desejos.
Oh,
meu pai, eu tive medo, um medo covarde, indigno. Medo principalmente do senhor
que, sendo sempre tão bondoso para comigo, era por mim enganado. Medo por ele,
ainda porque o senhor matá-lo-ia. Medo, também, por mim... O que sei eu? Eu
estava louca, perdida e pensei comprar ainda uma vez aquele miserável que também
me amava... que vergonha!
Nós,
as mulheres, somos tão fracas que perdemos o senso mais facilmente que os
senhores. Depois, quando se cai, vai-se rolando sempre para baixo, cada vez
mais. Porventura sei eu ainda hoje o que fiz? Compreendi somente que um de vós
— o senhor e o meu amigo — e eu tínhamos de morrer e me entreguei àquele bruto.
Bem
vê, meu pai, que não tento escusar-me.
Então,
oh! Então, aconteceu o, que eu previra: ele assenhoreou-se de mim quantas vezes quis,
por meio do terror. E foi também meu amante, como o outro, todos os dias. Não é
abominável? E que castigo merece isso, meu pai?
Pensei,
enfim, de mim para mim, que era preciso morrer. Enquanto vivesse, não poderia
confessar-lhe um tal crime; morta, atrevo-me a tudo. Só me restava, pois, a
morte. Nada mais seria capaz de lavar-me tão manchada como eu me sentia. Não
tinha mais o direito de amar nem de ser amada. Parecia-me que bastava apertar a
mão de alguém para sujá-la.
Dentro
em pouco vou tomar dar o meu mergulho e não voltarei mais.
Esta
carta para o senhor deverá seguir por intermédio do meu amante. Ele a receberá
após a minha morte e, sem saber de nada, fará com que lhe chegue às mãos,
cumprindo, assim, a minha última vontade. E o senhor deverá lê-la quando voltar
do cemitério.
Adeus,
meu pai! Não tenho mais nada a dizer-lhe. Faça o que entender e perdoe-me”.
O
coronel enxugou a fronte coberta de suor. Recobrara de súbito o seu sangue-frio,
o seu velho sangue-frio dos dias de combates.
Fez
soar a campainha.
Acudiu
um criado.
—Chame
Philippe — disse ele.
Depois,
abriu a gaveta da mesa.
Quase
imediatamente entrou o homem, um soldado alto, de bigodes ruivos, feições
malignas e olhar velhaco.
O
coronel olhou-o frente a frente.
—Tu
vais já dizer-me o nome do amante de minha mulher.
—Mas,
meu coronel...
O
oficial tirou o revólver da gaveta entreaberta.
—Vamos,
e depressa. Tu bens sabes que não estou brincando.
—Pois
bem... meu coronel... é o capitão Saint-Albert.
Mal
pronunciara esse nome, brilhou-lhe um clarão de diante dos olhos e ele caiu de
bruços com a testa varada por uma bala.
Fontes: “A Província”
(PE), edição de 3 de setembro de 1905. “A República” (PR), edição de 23 de
setembro de 1905.
Tradução de autor
desconhecido do século XX. Fizeram-se breves adaptações textuais.
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