TOC, TOC, TOC, TOC... - Conto Humorístico - Artur de Azevedo
TOC, TOC, TOC, TOC...
Artur de Azevedo
(1855 – 1908)
O
Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia
o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela
possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era
possível imaginar.
Chamava-se
Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em
que ambos moravam. Não iam a parte alguma.
Havia
uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha
sido mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e
fora, afinal, assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e
sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora
subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia,
naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto, não se lhe dava de
ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.
A
filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no
coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde,
caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento
respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma janeleira
vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.
Estava
o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o
Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha.
Ele, o Borges não sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do
nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa
de dois passageiros que a viram à janela e a conheciam.
O
Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos
elogios.
—
É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma
verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...
O
Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:
—
Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?
—
Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo
nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai,
não tem por onde se lhe pegue...
—
Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.
—Tu?...
Apesar de...?
—
Apesar de tudo!
—
Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!
—Por
quê?
—
Seria ridículo!
—
Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?
—
Ah! Por esse lado, não conheço outra que
mais o seja!
—
Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que
a peças em meu nome.
—
Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consultá-la, e só
depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O
mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.
—
Pois está dito!
No
mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu
chegasse às mãos de Idalina:
"Minha
senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de
família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não
tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho o necessário para
constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente; portanto,
rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O
obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante
do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou."
A
resposta não se fez esperar:
"Uma
vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao
celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos
que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha
domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por mim."
À
vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o
Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.
No
domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os
recebeu de braços abertos.
—
Aqui tem — disse-lhe o Ventura — o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer
um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.
—
Queiram sentar-se — disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou:
—
Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me
o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em reposta. Mas fiquei surpreso,
surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não considera um
obstáculo a...
—
Não! — interrompeu o Borges. — E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso.
Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.
—
Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?
—
Já lhe disse que sim.
—
Bom; nesse caso, vou chamá-la.
E
erguendo a voz:
—
Idalina?
—
Papai? — respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos
de Borges como um hino de amor.
—
Vem cá, minha filha!
Não
se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o
namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou,
à primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!
Foi
tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava
aquela ausência de perna. Idalina caiu
sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.
—
Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? —perguntou o vidraceiro.
—
Eu referia-me à mãe de D. Idalina...
—
Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que
foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as
pérolas.
Mas
o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram
de subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela,
ajoelhou-se aos seus pés — quero dizer: ao seu pé —tomou-lhe as mãos ambas, e
beijou-as dizendo:
—
Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?
—
Ora, ainda bem! — exclamou o velho. — Case-se, e creia que leva uma mulher
completa, apesar de lhe faltar uma perna!
Casaram-se
e foram muito felizes. O pai tinha razão.
O
Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus
botões:
—
Idalina talvez não fosse tão boa, tão
carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as pernas...
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