NÉVOAS DO PASSADO - Conto - Graça Aranha




 

Graça Aranha

(1868 – 1931)

 

Não faltei aos velhos hábitos indo ontem à tarde ao gabinete de meu marido subtraí-lo à leitura, e absorver-me no discreto conforto daquele retiro. O meu lugar de contemplação é em frente à mesa de trabalho. Do outro lado ele apoiava com majestade a cabeça ao busto de uma Juno maravilhosa. Esta aproximação orgulhava-me e às minhas pupilas amantes, sem ciúmes, Paulo semelhava um deus antigo. Apascentei meus olhos, de todo imersos, na suave profundeza dos seus. Nossas posturas eram opostas, mas nossas almas se reclinaram uma para outra, e, sussurrando, fomos entretecendo como em fios de brando e macio cabelo de mulher, doce e infinda conversação. A noite de inverno, a noite longa, vinha rapidamente avançando, estendendo-nos em silencio seus braços, cheios de ternura misteriosa. Uma volúpia casta, sutil...

Passos miúdos e velozes sacudiram-nos deste vaporoso adormecimento. Invadiu o aposento a figura gentil de Glória, em desordem. Trazia as faces vivas e acesas, tremia o seu narizinho branco; os cabelos em debandada e pela testa um suor gelado. Caiu-me nos braços vibrando, abafada:

 — Mamãe!

Estreitei-a, aflita e estupefata, e, olhando-a sem ver, recolhi seu corpo, ansiosa, muda; morta. Meu marido achegou-se a nós. Tomou-me uma das mãos, beijou a criança.

 — Sosseguem.

A esta palavra, dita varonilmente, vieram-me as lagrimas, como uma reação de alento. Glória enterrou mais a cabeça no meu colo. A sua criada chegara ao gabinete. A comoção, agitando-a também, lhe desafivelou a loquacidade. Explicou a agonia da criança, reconstituindo com largos gestos e grandes vozes, quase numa algazarra, a cena torturante, o episódio da rua. Passeavam ambas, quando uns estrangeiros mendigos acercaram-se delas pedindo esmola. Algumas mulheres do bando solicitaram com mãos descarnadas as joias da menina. Uma mais ousada lhe osculou o rosto, enquanto forçava a pulseira. O filho arrancou o laço de fita, correndo pela calçada numa gargalhada de triunfo. Emília defendera Glória repelindo o grupo com o chapéu de sol, mas à sua energia tonta correspondia uma vozeria desbragada. Se não fosse a intervenção de dois senhores, que passavam descuidados, a luta não se terminaria logo. Mal puderam escapar, partiram desvairadas para a casa, no meio de uma fúria de imprecações bárbaras.

Finda a narração, segurei Glória pela cabeça; beijei sofregamente os seus amortecidos olhos de sonâmbula. Meu marido, para diminuir mela o natural e invencível horror aos pobres, tentou colorir o acontecimento sorrindo daqueles sustos. A criança encarou-nos indecisa. O medo lhe dava o justo sentimento do real, e tornava as nossas palavras vans.

Procurei distraí-la e desviar para coisas alegres e diversas a sua atenção. Já aos cinco anos uma precoce e mórbida fantasia era-lhe doença d'alma. A invenção faltava-me; as ideias fugiam-me. Como um recurso de infeliz salvação, lancei a vista para um álbum de quadros e costumes populares europeus. Abri ao acaso e deparei com a fotografia de um casal de famintos. Glória estremeceu. Virei num relance a página. Ironia fulminante perseguia-me. Outro espetáculo lúgubre, um instantâneo representando uma luta de mineiros ébrios em um antro. Rancorosa, larguei o álbum, oprimida de angústias. Olhei para toda parte. Os objetos exteriores não me inspiravam. Fiquei abatida. Desalentada, como uma moribunda, lancei-me ao argumento que nunca me traiu. Beijos, que foram então arquejantes!

A grande calma do crepúsculo aquietava, como num remanso, as nossas perturbações.

Paulo recobrara a sua atitude de leitor silencioso. Desviando um do outro o olhar revelador, hipnotizávamo-nos em cismas fundas. Só a menina de vez em quando tremia segurando-me. A mim não sobrava regaço para ocultá-la e abrigá-la mais. Diligenciei envolvê-la com os braços, com a cabeça pendida sobre a sua, com o dorso voltado sobre o seu.

—Tenho medo, mamãe!

Depois um soluço histérico, outro, mais outro. Sucedeu uma modorra que se interrompia pelo crispar de suas garrazinhas aferradas aos meus pulso.

Quis adormecê-la inutilmente. Os seus sentidos saíam do pesadelo numa dolorida expressão de custo e de fadiga. Levantou a cabeça, fitou-me comum sorriso leve, melancólico, todo ele traduzindo uma mansa agonia, rudimentar, inconsciente, a indizível tristeza das almas rudes, primitivas ou infantis. Moveu os lábios como quem ia falar, e eu esperava em súbita transformação de alívio a sua voz.

 — Ah! Nós também fomos como eles, hein, mamãe? —murmurou brandamente.

Não percebi toda a extensão do seu pensamento, mas o pouco que compreendi fez-me terror. Paulo deixou cair o livro, e enfiou olhos agudos em nós.

—Sim mamãe, há muito tempo, longe, noutra terra. Nós andávamos na rua toda hora, dormíamos na rua, você me carregava quando eu não podia mais, papai me dava tanto...

A sua fisionomia transfigurava-se com esta recordação, e em êxtase, voltada para a janela parecia buscar dias passados. Nós gelávamos.

 Você se lembra quando a gente não tinha que comer e ia pedindo dinheiro? Você me beliscava para eu chorar e me empurrava dentro das lojas para pedir comida.

— Glória, disse meu marido, que tolices são essas, não fales nisso.

A menina moveu para ele o rosto. Quedou-se um momento calada, obedecendo à intimação. Dei um grande suspiro. Mas daí a pouco como que irresistivelmente:

 — Ah! Que frio fazia lá! Aqui não se treme, não cai neve. Porque, mamãe ?... Você se lembra daquele chapéu que você tirou do menino na rua e me deu? Ih! Correram atras de nós, não foi, mamãe? Mas nós nos escondemos naquela casa escura e eu fiquei com o chapéu bonito...

 — Glória, Glória!  —tive forças de exclamar.

Paulo levantou-se convulso. Tomou-a ao colo e mostrou-lhe uma estampa, que tirou precipitadamente do armário.

 — Que bonito!

Não se conteve a criança.

—Me dá, papai?

—Dou se não disseres mais tolices.

Ela pagou-lhe com um beijo. Voltaria à realidade o seu espirito, adelgaçadas as nevoas que o tolhiam? Meu marido deixou-a no chão com a gravura. A criança, porém, pouco se demorou em admirá-la. Voltou a mim e viu-me chorando.

—Mamãe, não chora. Você tem tanto dinheiro! Você não apanha... Não é, papai?

Fazia-se escuro. O criado tardava em acender o lustre. No completo repouso da casa, à sombra das grandes arvores do jardim que abafavam os últimos clarões da luz, a figura e as palavras de Glória, como a imagem e a voz de um passado horrível, que ressurgia em meio da felicidade, tinham ares de monstros. E eu notava, despeitada, que Paulo gozava um absurdo e requintado prazer intelectual naquelas tenebrosas visões da criança... Que ainda me restava conhecer.

— Você não era assim, mamãe como agora, boa para mim. Eu não tinha boneca, não tinha criada nem caminha! Andava suja. Não era? E você não tinha vestido bonito, não tinha moeda, não tinha anel. Ah!... Tinha uma pulseira, que o moço lhe deu... Papai ficou zangado, você apanhou, mamãe...

Caí sobre o sofá como morta. Creio divisei um fio de lagrima no rosto de meu marido.

— O moço dormiu lá, querido papai foi preso pelos soldados. Me dava dinheiro, dizia que eu era filha dele, mas eu queria era meu pai... Papai voltou... você disse que ele era tonto... aquela mulher contou tudo...

Levantando os braços num imenso esforço de quem suspende algemas, esbocei no espaço gestos inúteis para tapar aquela boca maldita e inocente.

— Mamãe também mordeu na rua a mão da menina para tirar o anel. Eu vi. Pensa que eu não vi? Agora a gente não tira mais de ninguém. Papai é que tira na cidade para dar para nós passearmos no carro. Eu vou mandar dizer a John, lá na chácara, que amanhã cedo quero andar no tílburi de papai. Você vai passear de carro? Então eu vou com você...

— Meu marido, mudo companheiro de suplício, parecia querer comunicar-me alguma observação.

— Papai, cadê o homem que você quis matar com aquela faca?...

De repente voltou-se para mim...

—Amanhã vou com o vestido cor de rosa? Levo a boneca grande, a Dulce, sim?

Ereto, murmurando umas desculpas, o criado penetrou no gabinete para acender o gás.

—Emília, Emília, amanhã... — partiu Glória gritando em direção ao seu quarto.

Abracei-me a Paulo como a um rochedo. Agarrados um ao outro, fulminados pela mesma sensação olhávamos correr a criança. A nossa caridade amorosa colhia frutos amargos. Ha dois anos num grande desespero de infecundidade, abrimos o coração aquela filha de uns mendigos espanhóis. E agora de suas células obscuras e implacáveis surgia diante de nós, como um castigo, uma existência de outros, um passado alheio. [1]

 

Fonte: Revista Brasileira (RJ), tomo décimo, Rio de Janeiro, 1897.

 



[1]Conto originalmente publicado sob o pseudônimo de Flávia do Amaral.

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