O FANTASMA - Conto de Emilia Pardo Bazán


 

O FANTASMA

Emilia Pardo Bazán

(1851 – 1921)

Tradução de Paulo Soriano

 

 

Quando eu fazia faculdade em Madri, todas as quintas-feiras comia na casa dos meus parentes distantes, os senhores de Cardona, que, desde o primeiro dia, me acolheram e trataram-me com sumo carinho. Marido e mulher formavam um contraste gritante: ele era robusto, sanguíneo, franco, alegre, partidário de soluções práticas; ela, pálida, nervosa, romântica, perseguidora do ideal. Ele se chamava Ramón; ela tinha o nome antiquado de Leonor. Para minha imaginação juvenil, aqueles dois seres representavam prosa e poesia.

Esmerava-se Leonor por me apresentar os pratos de que eu gostava, minhas guloseimas preferidas, e com as próprias mãos preparava-me, numa brunida cafeteira russa, o café mais forte e aromático que pode apetecer a um aficionado. Seus dedos longos e delgados me ofereceram a xícara de porcelana e, enquanto eu saboreava a deliciosa infusão, os olhos de Leonor, do mesmo tom escuro e quente do café, fixaram-se em mim de forma magnética. Parecia que eles queriam entrar em íntimo contato com minha alma.

Os senhores de Cardona eram ricos e estimados. Nada lhes faltava do quanto contribui para proporcionar a soma de ventura possível neste mundo. No entanto, dava-me a excogitar que aquele casamento entre pessoas de compleições morais e físicas tão diferentes não poderia ser ditoso.

Embora todos afirmassem que dom Ramón Cardona transbordava de bondade e sua esposa de decoro, para mim havia um mistério naquele lar. Será que as pupilas marrons me revelariam?

Aos poucos, quinta após quinta, fui adquirindo um interesse egoísta na solução do problema. Não é fácil, aos vinte anos, permanecer insensível a olhos tão expressivos, minha tranquilidade já começava a perturbar-se e minha vontade a fraquejar. Depois da refeição, o senhor de Cardona saía; ia ao Casino ou a alguma tertúlia, visto que era sociável, e Leonor e eu ficávamos, depois do jantar, a tocar piano, comentar as leituras, jogar xadrez ou a conversar. Às vezes, as vizinhas do segundo andar desciam para passar um tempo; outras vezes, ficávamos sozinhos até as onze horas, quando eu costumava sair, antes que fechassem as portas. E, com a estupidez de um garoto, achei muito estranho que dom Ramón Cardona não tivesse ciúmes de mim.

Numa das noites em que não desceram os vizinhos — uma noite cálida e estrelada de maio —, permitindo a varanda aberta entrar o e perfume das acácias para embriagar-me o coração, o diabo tentou-me mais fortemente, e resolvi declarar-me. Já balbuciava entrecortadas as palavras, não precisamente de paixão, mas de adesão, submissão e ternura, quando Leonor cortou-me, dizendo-me ter tanta certeza da minha leal amizade, que queria confiar-me algo muito grave, o terrível segredo da sua vida. Interrompi minhas confissões para ouvir as da senhora, e me foi pouco apetecível ouvir de seus lábios, trêmulos de vergonha, a narração de um episódio amoroso.

— Meu único pesar, meu único erro — murmurou, com angústia, dona Leonor — chama-se Marquês de Cazalla. Ele é, como todos sabem, um perdido e um espadachim. Tem em seu poder as minhas cartas, escritas em momentos de delírio. Para tê-las de volta, não sei o que daria.

E eu vi, à luz dos astros brilhantes, uma lágrima lenta deslizando daquelas pupilas escuras ...

Ao apartar-me de Leonor, já tomara a decisão de ver o marquês de Cazalla no dia seguinte. Minha petulância juvenil ditava tal resolução. O marquês, a quem passei o meu cartão, recebeu-me imediatamente em artístico fumoir e, às primeiras palavras relativas ao assunto que motivava a minha visita, encolheu os ombros e disse afavelmente:

— Não estou surpreso com o passo que você dá; mas rogo-lhe que acredite em mim e dou a minha palavra de honra de que o que vou lhe dizer é a pura verdade. Considero o caso da senhora Cardona o mais estranho que já me aconteceu. Não possuo e nunca possuí os documentos a que se refere aquela senhora, e jamais tive o prazer... porque prazer seria tratá-la... Repito que o afirmo com a minha palavra de honra!

A resposta era tão inverossímil que, apesar do tom de absoluta sinceridade do marquês, fiz-lhe uma carranca cética, talvez até insolente.

—Vejo que não acredita em mim — acrescentou, então, o marquês. —Não me dou por ofendido. Já o esperava. Você pode duvidar da minha palavra; mas nem você nem ninguém tem o direito de supor que sou um homem que evita, por meio de subterfúgios, um caso pessoal. Se o que você procura é uma contenda, tem-me à sua disposição. Rogo-lhe apenas que, antes de resolver esta questão de um modo ou de outro, consulte... o Sr. Cardona. Eu disse ao senhor. Não olhe para mim com esses olhos assustados... Ouça-me até o fim. Dona Leonor Cardona — que, segundo a opinião, geral é uma senhora honradíssima — deve ter sofrido um pesadelo e sonhado que tínhamos relações, que nos víamos, que ela me tinha escrito etc. Sob o influxo de um ilusório remorso, ela contou tudo ao marido... isto é, nada...; mas tudo para ela; e o marido veio aqui como você, só que mais bravo, naturalmente, a pedir-me contas, a querer beber meu sangue. Se eu não o tivesse bastante frio, o assassinato de Cardona estaria pesando em minha consciência neste momento... ou ele teria me matado (não digo que isto não pudesse acontecer). Por sorte, não me aturdi, e perguntei a Cardona sobre as épocas em que a sua esposa afirmava que nossas entrevistas criminosas teriam ocorrido; pude demonstrar, de maneira confiável, que, na ocasião, eu me encontrava em Paris, Sevilha e Londres. Com igual facilidade, provei a inexatidão de outros dados aduzidos pela Dona Leonor. Assim é que o senhor Cardona, muito confuso e espantado, teve que sair pedindo-me desculpas. Se você me perguntar como explico um acontecimento tão extraordinário, direi que acredito que essa senhora, que depois procurei conhecer (pela memória da minha mãe, juro-lhe que antes, nem de vista!), sofre de alguma enfermidade moral, e teve uma visão. Digamos que um espectro de amor apareceu a ela... E esse espectro — sabe-se lá por quê! — assumiu minha forma. E nada mais... Não fique tão surpreso. Daqui a dez anos, depois de conhecer algumas mulheres, você vai se acostumar a não se admirar com quase nada.

Saí da casa do marquês com um estado de espírito indefinível. Embora não houvesse como desmenti-lo, a descrença persistia. Impressionado, contudo, com as firmes e categóricas afirmações do dândi, dediquei-me, desde então, não a cortejar Leonor, mas a observar Cardona. Procurei falar-lhe muito, deixar fluir a sua espontaneidade, e fui extraindo, fio por fio, conversas sobre a fidelidade conjugal, os perigos que um erro pode originar, as alucinações que às vezes sofremos, os estragos causados ​​pela fantasia... Por fim, um dia, como que inadvertidamente, deixei deslizar no diálogo o nome do Marquês de Cazalla e uma alusão às suas conquistas ... E então Cardona, olhando-me cara a cara, com um gesto entre o zombeteiro e o sério, perguntou:

— O quê? Já o mandaram para lá também? Pobre Leonor, é claro que não tem cura!

Não precisei mais para confessar os meus esforços e Cardona, sorrindo, embora com a sua sonora voz ligeiramente alterada, disse:

—É bom que saiba você que, quando fui à casa do Marquês de Cazalla, já tinha certas suspeitas quanto às alucinações de Leonor, das quais, mais tarde, logrei plena convicção. Embora eu não pareça ciumento, e dir-se-ia mesmo que me perco por confiar, sempre vigiei Leonor, porque a amo muito, e em momento algum ela poderia ter cometido, sem que eu me inteirasse, os crimes dos quais se acusava. Compreendi que era tudo uma fantasmagoria, um sonho, e me resignei à hipótese de uma falta imaginária... Quem sabe se esse fantasma de paixão e arrependimento serve de escudo contra a realidade! O que te garanto é que Leonor, vivendo eu, nunca mais sairá da região dos fantasmas... E não falemos mais nisso na vida!

Aproveitei o aviso e, a partir daí, evitei ficar a sós com a Leonor, e até mesmo fixar o meu olhar em seus olhos escuros, nublados pela quimera.

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