NATAL, PALAVRA MÁGICA - Conto - Wessel Smitter

NATAL, PALAVRA MÁGICA

Wessel Smitter

(1892-1951)

Tradução de autor anônimo do séc. XX


Esta é a história de Hugh Glass, uma história verdadeira de indominável coragem; do poder da vontade contra obstáculos quase invencíveis e é, também, a história do Natal, da mágica força de uma simples palavra, que transformou no perdão a mais ardente sede de vingança.

No verão de 1823, o major Henry conduzia uma expedição, a oeste do rio Missouri, composta de uns 80 homens. No entardecer de um dia de julho, dois deles foram enviados para a frente, à escoteira, a fim de escolherem lugar para o acampamento, naquela noite. Ao lado de um regato, os dois batedores encontraram Hugh Glass, o caçador, horrivelmente mutilado. Um lado do seu rosto fora arrancado e, na perna esquerda, acima do joelho, o osso aparecia. Perto da corrente, via-se um urso pardo, morto.

A expedição deixara São Luís, na primavera, para apanhar ursos em armadilhas nas Montanhas Rochosas, repletas de índios. Glass, um gigante, na casa dos sessenta, era dos mais velhos. Dizia-se ser a sua força espantosa. Cabia-lhe, como caçador, manter o suprimento de carne do acampamento.

Naquela noite, dois homens permaneceram ao seu lado. Pela manhã, porém, a pergunta foi: o que fazer? O major Henry pediu dois voluntários para ficarem com a vítima, mas somente depois de oferecer a recompensa de quarenta dólares é que dois homens se apresentaram: James Bridger e Fitzgerald.

Quando a expedição desapareceu no horizonte, esperaram eles que o ferido morresse sem demora. No fim do primeiro dia, Glass estava ainda inconsciente, porém respirando. O segundo dia passou-se sem mudança. Assim, o terceiro e o quarto. Era um negócio entedioso esperar que o velho morresse. Cada dia que passava, maiores as possibilidades de serem descobertos pelos índios; cada dia que passava, aumentava a distância que os separava da doce segurança do acampamento.

No quinto dia, apanharam os pertences do velho, montaram nos seus cavalos e partiram. Uma semana mais tarde, reuniram-se ao grupo. Houve poucas perguntas. Ninguém mais contava em ver o caçador novamente.

Demos-lhe um enterro decente — mentiram — e empilhamos pedras sobre a sepultura para afastar os lobos.

Mais ou menos nessa ocasião, Hugh Glass recuperava a consciência, para se encontrar sozinho, queimando de febre e sede. Com desesperado esforço, arrastou-se até o regato e bebeu…

Uma amarelada cópia do “Missouri Intelligencer” conta a historia surpreendente da luta do homem contra a morte, do seu esforço titânico para voltar à civilização. O que o conservou vivo foi a determinarão, revestida de uma vontade de aço, de não morrer e vingar-se dos dois desalmados que — o seu espirito atilado percebeu — tinham sido deixados para ficarem ao seu lado e o haviam abandonado, carregando-lhe a espingarda e, até, a própria faca…

Perto da hoje pequena cidade de Cluster, em Montana, a expedição construíra um rústico forte e acampara para o inverno. Aqui e ali, na grande sala, viam-se galhos de pinheiro enfeitados de algodão e pedaços de pano vermelho. Num estrado de madeira, o improvisado presépio. Um francês-canadense dedilhava a rebeca, dando compasso aos pés dos homens no assoalho de tábuas. Subitamente, ouviu-se um ruído na porta. Um dos caçadores de armadilha ergueu-se para investigar.

A noite estava clara e imóvel. O homem abriu uma pequena vigia, e olhou para fora. O que viu foi uma figura esquálida, coberta com grande capote de pele de búfalo. Usava longas barbas e tinha medonha cicatriz numa das faces.

Hugs Glass! — gritou o caçador, assombrado.

É impossível — disse o major, que se aproximara. — Hugh Glass morreu há meses.

Abriu, a seguir, a porta, e o estranho deu um passo à frente, com um rifle nas mãos.

Mostre-me os biltres — disse ele. — Os dois que roubaram as minhas coisas e deixaram-me a morrer. Penosa foi a minha jornada, e aqui estou agora para tirar vingança!

Nem um homem se moveu quando Glass entrou na sala, engatilhando a arma. Todos viram que não era um fantasma.

Mostrem-me os biltres — repetiu ele. — Mostrem-me os dois que me deixaram miseravelmente a morrer!

Ninguém falou, mas todos os olhares convergiram para Fitzgerald. O outro não estava ali; fora enviado ao forte próximo com despachos.

Hugh Glass ergueu a espingarda.

Era aquele o momento para o qual vivera; que lhe dera forças para prosseguir, mês após mês. Sem desviar os olhos do homem, encolhido aterrorizado contra a parede, tirou uma pistola, que trazia no cinto, colocando-a sobre a grosseira mesa de madeira. Então, pela primeira vez, atentou nas decorações.

O que é isto? — perguntou. Estes enfeites?

Alguém pronunciou a simples palavra: “Natal”.

Glass abaixou a arma e olhou em torno, subitamente confuso.

Andei tanto — disse — para vingar-me… e é Natal! Planejei-o mil vezes. Foi o que me deu forças, quando teria sido tão fácil morrer… Mas não posso matar um cão, neste dia. Por tudo o que fizeram… pelo sofrimento, pela miséria que atiraram sobre mim… eu os perdoo.

Para Hugh Glass e para todos aqueles homens endurecidos, que testemunharam o dramático incidente no rústico forte, foi esse o Natal mais maravilhoso e memorável de suas vidas.


Fonte: Carioca/RJ, edição de 15/12/1949.


 

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