UM SEGREDO DE MOÇA - Conto - Julia Kavanagh

UM SEGREDO DE MOÇA

Julia Kavanagh

(1824 – 1877)

Tradução de autor desconhecido do séc. XIX



Havia muito que minha prima me pedia que fosse vê-la. Afinal, aceitei, mas com algum pesar. Tratava-se de ir passar algumas semanas com a Sra. Le Tellier numa propriedade que ela possuía nos confins da Normandia, e onde eu nunca unha ido.

Senti uma espécie de tristeza em deixar o meio tranquilo em que, vai em vinte anos, gozo de um viver tão doce. Uma mulher que não se casou, que não tem os laços da fama, depressa envelhece na solidão. Foi o que eu percebi quando tive que me pôr a caminho, e confesso que sempre me arrependi da viagem a que devo a única aventura romanesca da minha vida.

Parti com um tempo medonho: chuva toda a manhã. Ainda chovia quando chegamos, já tarde, à estação de…, onde me esperava a carruagem da Sra. Le Tellier. A estrada que conduzia à propriedade de minha prima atravessava vastas planícies de aspecto sombrio e triste. A chuva tinha parado, mas os últimos raios do pálido e tépido sol de outono espreguiçaram-se nas grandes poças d’água em que um enxame de andorinhas resvalava no seu voo rápido e vertiginoso. O cavalo ia a passo, tal era o o mau estado do caminho. O cocheiro assobiava uma ária monótona, e eu, olhando ao redor, com tristeza, já sentia saudades do meu quarto, e dos meus livros, e da minha vida tão pacífica e doce. Achava naquela campina não sei que aparência desoladora e tristonha.

O Sol ocultava-se no ocaso e os primeiros planos na paisagem entravam na sombra. O crepúsculo, avançando pela planície, parecia fazer recuar a luz até ao limite do horizonte. Bem depressa, houve apenas de iluminado o fundo do quadro. Nesse espaço embaciado e pardacento, vi passar um bando de camponeses que voltavam lentamente do mercado. A água verde e parada dum grande charco espelhava aquelas pacíficas figuras e algumas nuvens que deslisavam no céu chuvoso da tarde. Era outono em toda a sua tristeza.

Chegamos enfim à casa de minha prima. Era uma habitação à antiga, bastante vasta, mas sombria. Apertou-se-me o coração ao aspecto das grandes salas e das janelas estreitas que vi logo ao entrar. Pareceu-me que ali qualquer podia, sem dificuldade, aborrecer-se a fartar. Mas não tive tempo de me demorar nesse pensamento aflitivo: ouvi passos e a voz da minha parente que acorria para me abraçar.

Aquela boa Sra. Le Tellier era, na verdade, a melhor alma do mundo. Acolheu-me com uma alegria verdadeira, na qual, entretanto, julguei entrever certa tristeza. A sua fortuna era próspera, a sua saúde excelente; adivinhei que Maria Blanchet, jovem sobrinha órfã, de cuja educação se encarregara e por quem tinha grande afeição, devia dar-lhe algum cuidado. Ao passo que me instalava no meu quarto — que triste quarto, meu Deus, apesar de ser o melhor da casa! — perguntei por ela.

Foi ver uma amiga doente, uma pobre menina que está a morrer duma doença de coração. Não pode tardar.

Como vai ela?

Perfeitamente — respondeu a Sra Le Tellier. Mas ficou sombria, como se me tivesse dado alguma notícia má.

Tem-se dito que as solteiras são curiosas. Não sei se é certo, mas não creio. Contentei-me em dizer à minha prima:

Por que se não casa ela?

Aí está o ponto! Maria é bonita como um anjo, boa quanto se pode ser; a minha fortuna é dela; pretendentes não faltam, mas Maria recusa-os uns após outros, e está com vinte e quatro anos

Não será alguma inclinação oculta?

Nem pense em tal. Eu dei-lhe completa liberdade. “Casa-te com quem quiseres”, disse-lhe eu. “Unicamente, como não quero separar-me de ti, que não seja militar”. Ora, por felicidade, nenhum se apresentou.

Talvez seja uma vocação religiosa que ela não se atreve a declarar.

Não, não é. Também tive essa lembrança. Falei-lhe e ela respondeu-me, sorrindo, que nunca tinha pensado no convento. Não, não é o casamento que lhe repugna, são os maridos. Que pena que eu tive do Sr. de Ménars! Nunca vi homem mais distinto. Tem apenas trinta anos, uma bonita fortuna, espírito superior, todas as qualidades amáveis e sólidas que podem assegurar a felicidade duma mulher e, acrescente a isto, uma grande simpatia por ela.

E Maria não o aceitou! — exclamei eu, admirada. — É incrível. Esse Sr. de Ménars, encontrei-o em Paris; é encantador.

Pois ela recusou-o duas vezes — respondeu a Sra. Le Tellier, suspirando. — E ele, à vista disso, casou-se. Agora, está acabado.

Minha cara prima, não percebo palavra.

E não percebia, em verdade. Maria, que nesse momento chegara, e se lançou nos meus braços com efusão, não me parecia, no entanto, destinada ao celibato. Era uma loura de rosto terno e risonho, e olhos azuis e ingênuos. Tinha vinte e quatro anos, que pareciam apenas dezoito. As feições encantadoras tinham ainda toda a graça risonha e ingênua da mocidade; nada mais sedutor e mais doce que o seu sorriso. Compreendi que o Sr. de Ménars tivesse ficado apaixonado duma moça tão gentil. Mas não podia explicar, a mim mesma, que ela tivesse duas vezes recusado um homem ainda jovem, rico, distinto e deveras enamorado.

Eu tinha visto nascer aquela criança. Julguei, pois, que podia interrogá-la. Minha prima tinha estado a observar-nos. Descêramos juntas ao salão principal e aí estávamos sós. Maria, sentada no vão duma janela, olhava pensativa para as nuvens que fugiam. Em que pensava ela?

Maria — disse-lhe eu, sem mais preâmbulo —, porque é que você não quer casar?

Maria respondeu-me simplesmente:

Mas, prima, não desejo eu outra coisa.

E então? Por que continua você a chamar-se Maria Blanchet, como dantes?

Ah! — respondeu ela com um sorriso zombeteiro. — É que estou à espera.

Quis ver se a fazia sair desta evasiva. Mas Maria refugiara-se na “espera”' como num forte inexpugnável, e foi em vão que tentei confessá-la. Por mais que fizesse, escapava-me sempre.

Minha prima voltou, mudamos de conversa. Confesso que já me estava aborrecendo mortalmente. A monotonia daquele interior provincial não quadrava comigo. Um temporal horrível desencadeou-se depois do jantar e fez diversão. A Sra. Le Tellier ficou de tal maneira perturbada que foi meter-se na cama. Retirei-me para o meu quarto e tentei ler, apesar dos relâmpagos; mas estava preocupada e não tardou que deixasse cair o livro sobre os joelhos. A trovoada afastava-se, ribombando.

Tinha havido esquecimento em fechar as portas da minha janela e, através da vidraça, via ramalharem as grandes árvores do jardim, ao passo que a Lua parecia correr doidamente por cima das nuvens. Era belo, mas triste.

Uma leve pancada à porta do quarto fez-me estremecer. Levantei-me e fui abrir. Era Maria; estava muito pálida e tinha na mão uma carta aberta.

Minha prima — disse-me ela com a voz palpitante de emoção —, venho pedir-lhe um grande favor. A minha pobre Constança, que ia melhor ainda há poucas horas, está a morrer e deseja ver-me ainda esta noite. É a mãe dela quem me escreve e me pede que a contente. Faz-me o favor de me acompanhar? O castelo de Mersan é a uma légua daqui. Minha tia não quer que eu vá só e a nossa pobre Francisca está doente demais para sair, mesmo de carruagem.

Quanto me custou a dissimular o doloroso receio que me inspirava aquele pedido. Se eu sou só, ai de mim! É que os mais queridos entes me têm deixado, uns após outros. A minha vida está cheia dessas sombras queridas. A recordação é-me sempre doce, mas não tudo, quanto me lembra a hora magoada do derradeiro adeus. O pensamento de estar ao pé dum leito de agonia constringe-me o coração. Esse duelo terrível, em que a força, a mocidade e a vida são sempre vencidas, entristece todo o meu ser; mas tive bastante império sobre mim própria para não deixar ver o que sentia. Dei-me, pois, pressa em aceder aos desejos de Maria e partimos logo.

Esta viagem lúgubre encheu-me de tristeza. A conversação de Maria não era de dar alegria. Desatou a chorar quando entramos na carruagem e, quando se acalmou um pouco dessa primeira dor, não me falou senão de Constança de Mersan.

É um anjo — disse-me ela. —Se pudesse curar-se, entrava para as Carmelitas. Ah, se a vocação religiosa fosse coisa que se desse, eu já seria uma santa em algum convento. Constança é admiravelmente bela, teria casado com o Sr de. Ménars por obediência e porque os pais desejavam muito esse casamento, mas uma cela era toda a sua ambição.

E como é que a sua amiga não chegou a casar com o Sr. de Ménars?

Custa a crer, minha prima! — disse Maria com vivacidade. —Todo o mundo falhava nesse casamento, o Sr. de Ménars dançava sempre com ela e, de repente, soube-se que era com outra que ele queria casar.

E essa outra era Maria Blanchet?

Maria ficou um instante enleada e, depois, respondeu-me secamente:

Pois sim, é verdade; mas imagine em que disposições ele me vinha encontrar. Como podia eu perdoar-lhe o abandono da minha querida Constança!

Mas se ele não a amava, filha?

Devia amá-la — redarguiu Maria com fogo.

Minha filha, quando um homem de honra se retira, e o Sr de Ménars tem uma reputação excedente, tem às vezes boas razões de o fazer.

A prima acusa Constança! — exclamou Maria, indignada.

Nem por sombras. É um anjo, como você —disse. — Mas, se o Sr. de Ménars não gosta de anjos, que se lhe há de fazer?

Maria calou-se. Adivinhei que ela ficara amuada. A mocidade é assim. As suas amizades, como os seus ódios, têm sempre alguma coisa de apaixonado e absoluto.


Fonte: A Crônica/RJ, 8 de julho de 1879.


 

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