A LIÇÃO DE VIOLINO - Conto de E. T. A. Hoffmann
A LIÇÃO DE VIOLINO
E.
T. A. Hoffmann
(1776
– 1822)
Muito
jovem ainda, com dezesseis anos, estava eu em Berlim, onde me entregava ao
estudo de minha arte, com toda a alma, com todo o entusiasmo com que a natureza
me dotou. O mestre de capela, Haak, meu digno e rigorosíssimo professor,
mostrava-se cada vez mais satisfeito comigo. Gabava, constantemente, a nitidez
da minha arcada, e a pureza de minha afinação: bem depressa, admitiu-me ele a
tocar na orquestra da Ópera e nos concertos da câmara do rei. Aí vi muitas vezes
Haak conversar com Duport, Riter e outros grandes mestres, sobre as soirées musicais que dava o barão de B.
e que ele preparava com tanto cuidado e aptidão que o próprio rei não
desdenhava nelas tomar parte algumas vezes. Citavam sem cessar as magníficas composições
dos mestres antigos que, quase esquecidas, só eram ouvidas em casa do barão,
possuía a mais rara colecção de cadernos de músicas antigos e modernos. E
falavam da esplêndida hospitalidade que reinava em casa do barão e da incrível liberalidade
com que ele tratava os artistas. Acabaram por concordar que o barão podia, com
razão, ser chamado o astro que iluminava o mundo musical do Norte.
Estes
discursos excitaram-me a curiosidade, que ainda mais aumentava quando, no meio
das conversas, os mestres recriminavam-se mutuamente, e no correr desse
murmúrio, misterioso, que entre eles se levantava, eu distinguia o nome do
barão e percebia que as discussões versavam sobre estudos musicais. Nessas ocasiões,
parecia-me ver um sorriso sarcástico errar nos lábios de Duport. Meu mestre
era, sobretudo, o objeto dessas brincadeiras, de que fracamente se defendia,
até que, apoiando o violino no joelho para afiná-lo, dizia, rindo:
—
Apesar de tudo, é um homem encantador!
Não
me pude conter. Com risco de ser dissuadido um pouco rudemente, pedi ao mestre
da capela que me apresentasse ao barão, e que me levasse quando fosse à sua
casa. Haak mirou-me com os olhos muito abertos. Vi que a tempestade ia
explodir, mas, repentinamente, sua gravidade foi substituída por um sorriso
singular.
—Sim!
—disse — Talvez tenhas razão. Há muito que aprender com o barão. Falarei de ti
a ele, e julgo que não terá dúvida em receber-te, pois gosta muito de receber
os jovens artistas.
Alguns
dias depois de ter tocado com Haak alguns concertos dificílimos, tomou-me ele o
violino das mãos e disse-me:
—
Karl, hoje é o dia que precisas vestir teu terno dos dias de festa e tuas meias
de seda. Vem à minha casa. Iremos à casa do barão. Hoje haverá lá pouca gente e
a ocasião é propícia para te apresentar a ele.
O
coração bateu-me de alegria, pois esperava, sem mesmo saber por quê, tomar
conhecimento de qualquer coisa de inaudito, de extraordinário.
Fomos.
O
barão era um homem de estatura mediana, já um tanto velho, vestido ricamente à
francesa, com bordados de todas as cores. Veio logo a nós assim que entramos e
a apertou amigavelmente a mão de meu mestre. Nunca eu tinha sentido tanto respeito
verdadeiro, tão grande impressão por um homem de distinção. Nos traços do barão
lia-se uma grande expressão de bonomia e de bondade, ao passo que seus olhos
brilhavam com o fogo sombrio que indica logo o artista possuído por sua arte.
Toda a minha timidez de rapaz logo desapareceu.
—Como
vai, meu bom Haak? Tem trabalhado muito no meu concerto? — disse o barão com voz sonora e bem timbrada.
— Muito bem, veremos amanhã. Ah, este com certeza é o rapaz, o valente virtuose
de quem me falou?
Baixei
os olhos envergonhado. Senti que minhas faces ardiam quando Haak disse o meu
nome, fazendo elogios às minhas disposições e falando dos meus rápidos
progressos.
—
Então — disse o barão voltando-se para mim —, escolheste o violino para teu
instrumento, meu rapaz? Não cogitaste que o violino é o mais difícil de todos
os instrumentos? Não sabes que o violino, sob uma aparência simples, quase
insignificante, esconde o mais sedutor e voluptuoso tesouro de sons que se
possa imaginar, e que aquelas cordas e aquela madeira formam um todo
maravilhoso, que apenas se revela a um pequeníssimo número de homens eleitos do
céu? Tens bastante certeza de que o teu espirito penetrará no fundo daquele mistério?
Muitos outros têm pensado que acertaram na vocação escolhendo o violino, e toda
a vida não passam de arranhadores dignos de lástima. Não quero que aumentes o
já grande número desses infelizes, meu filho! Bom, vais tocar qualquer coisa, e
francamente te direi si deves ou não prosseguir. Talvez te aconteça o que
aconteceu a Carl Stamitz[1],
que sonhava com os milagres que mais tarde deveria fazer no violino. E eu, porém,
abri-lhe os olhos, e ele lançou imediatamente o violino ao fogo a atirou-se ao
contrabaixo — no que fez muito bem. Bem, estou pronto para ouvir-te, meu rapaz.
Fiquei
extremamente confuso com este singular discurso. As palavras do barão
produziram-me profunda impressão, e senti um horrível desânimo à ideia de que
tinha talvez empreendido uma tarefa para a qual talvez não tivesse nascido.
Todos se preparavam para tocar os três novos quartetos de Haydn[2],
então em grande voga. Meu mestre tirou o violino da caixa. Apenas, porém,
começou a afiná-lo e o barão exclamou, tapando as orelhas:
—
Haak! Haak! Peço-te, pelo amor de Deus, que não me incomodes com esses
horríveis acordes.
Ora,
o mestre da capela tinha um dos melhores, um maravilhoso violino, um magnífico
e autêntico Antonio Stradivarius[3]. E
nada o irritava mais do que ver alguém deixar de render homenagem ao seu
instrumento. Também não foi menor a minha surpresa vendo-o tornar a meter
tranquilamente o seu violino na caixa. Sem dúvida, ele sabia o que o barão ia
fazer, pois mal acabara de guardar o violino quando o fidalgo, que tinha saído
do salão, voltou trazendo, com grande precaução, nos braços, como quem carrega
um recém-nascido, uma longa caixa forrada de veludo carmesim com galões dourados.
— Quero fazer-vos honra, meu caro Haak — disse
ele. — O senhor hoje há de tocar no mais
antigo e mais belo dos meus violinos. É um Gramulo verdadeiro. Perto deste
mestre, o seu discipulo Stradivarius é um simples aprendiz. Tartini[4]
nunca quis tocar em outro violino senão no Gramulo. Concentre-se bem, a fim de
que o meu velho Gramulo consinta em dar todos os seus tesouros.
O
barão abriu a caixa, e vi aparecer um instrumento cuja forma denotava uma
grande ansiedade. Perto estava o arco mais singular do mundo, que, pela sua
estranha curvatura, mais parecia um bodoque do que um arco destinado a tirar
sons de um instrumento. O barão tirou o instrumento do escrínio com a maior
solenidade, e apresentou-o a meu mestre, que o tomou com não menores cerimônias.
Quanto ao arco, disse o barão, batendo amigavelmente no ombro de Haak:
—Não
vos darei, pois seríeis incapaz de manejá-lo satisfatoriamente. Afinal, nunca
chegareis à verdadeira perfeição! Este arco — disse o barão, levantando-o e
contemplando-o com o olhar brilhante de entusiasmo — só serviria ao grande e imortal
Tartini. A não ser ele, só existem no mundo dois de seus discípulos capazes de
tirar os sons doces e melodiosos que produz este arco. Um desses discípulos é
Nardini[5],
que é hoje um velho de setenta anos e que não tem mais potência musical nem
força d’alma. O outro, bem sabeis, meus senhores, sou eu. Sou, portanto, o
único em que sobrevive a arte de tocar violino, e não poupo esforços nem zelo
para propagar a arte de que Tartini foi o criador. Comecemos, meus senhores.
Os
quartetos de Haydn foram, como é de esperar, tocados com a máxima perfeição.
O
barão ouvia sentado, atento, com os olhos fechados e balançando o corpo sobre a
cadeira. De repente, levantou-se, aproximou-se dos executantes, lançou um olhar
para a partitura e franziu as sobrancelhas. Depois, deu um passo atrás e recuou
vagarosamente para a sua poltrona, onde sentou-se de novo, e, apoiando a cabeça
nas mãos, começou a bufar, a gemer e a murmurar surdamente.
—Alto!
— exclamou repentinamente, quando se executava uma passagem em adágio, rica de
melodia e canto. —Parem! Por Deus! Isso é melodia de Tartini pura. Os senhores,
porém, não a compreenderam bem. Repitam mais uma vez, eu vos peço.
Os
mestres sorriram e repetiram a passagem, com grandes e melodiosas arcadas. O barão
gemia e chorava como uma criança. Quando acabaram o quarteto, o barão exclamou:
—
Um homem divino, este Haydn! Sabe ir direito à alma. Quanto a escrever para
violino, nem por isto. Talvez nem mesmo tivesse nunca pensado nisto, pois se assim
fosse, teria escrito da única maneira verdadeira, como Tartini, e os senhores,
nesse caso, nunca o poderiam executar!
Chegou
a minha vez de tocar algumas variações, que Haak colocou diante de mim. O barão
pôs-se bem junto de mim, com o olhar nas notas. É fácil imaginar a minha
atrapalhação quando comecei a tocar com tão rude crítico a meu lado. Bem cedo,
porém, um vigoroso alegro restituiu-me
a calma. Esqueci completamente o barão, e movi-me em toda a extensão do círculo
de minhas faculdades, de que dispus então livremente. Quando acabei, o barão
bateu-me amigavelmente no ombro e disse, sorrindo:
—
Podes te dedicar ao violino, meu-filho. Não estás muito seguro na arcada nem na
dedilhação, mas isto é, sem dúvida, por falta de um bom mestre.
Fomos
para a mesa, que estava servida num compartimento vizinho. A profusão que nela
reinava chegava a tocar às raias da prodigalidade. A conversa, cada vez mais
animada, versou quase exclusivamente sobre música. Os mestres fizeram honras à
mesa, e o barão manifestou opiniões que denotavam conhecimentos preciosos, juízos
que indicavam ser ele não um simples amador ou virtuose, mas um artista distinto,
refinado, cheio de gosto e de fino espirito. Impressionou-me sobremodo os
retratos de violinistas, que nos descreveu um por um. Vou coordenar algumas
recordações nesse sentido:
—
Corelli[6] —
disse o barão — abre o caminho. Suas composições só podem ser executadas pela
maneira de Tartini, e é fácil provar como ele reconheceu a grandeza do papel do
seu instrumento. Pugnani[7] é
um violino passável. Tem tom e muita inteligência, mas a sua maneira é
demasiado mole em certas appogiaturas.
Que dizer de Gemianini[8]!
Quando o ouvi tocar pela última vez, há trinta anos, em Paris, deu-me a
impressão de um sonâmbulo gesticulando em sonhos. Ouvi-lo era um outro sonho
penoso: era só um tempo rubato infindável e sem estilo. Maldito
seja o tal tempo rubato, que perde os
melhores violinos! Toquei-lhe as minhas sonatas, e ele reconheceu o seu erro e
quis tomar lições minhas, no que de bom grado consenti. Estava, porém, já muito
velho para perder os maus hábitos, pois tinha setenta e um anos. Deus que perdoe
a Giardini[9] na
eternidade! Mas foi ele o primeiro a comer o fruto da arvore da ciência, e fez,
de todos os violinistas que lhe seguiram, pecadores impenitentes. Foi o
primeiro dos extravagantes. Só cuidava da mão esquerda e dos dedos saltitantes,
sem cuidar que a alma do canto está na mão direita, cujas diferentes pulsações
se escapam como se fossem as do nosso coração. Desejaria para cada um desses
extravagantes um Jommelli[10]
em pé a seu lado, para acordá-los do pesadelo por meio de um vigoroso assobio,
como efetivamente o fez o bravo Jommelli de uma feita a Giardini, que tinha
estragado em sua presença uma passagem magnifica. Quanto a Lully[11],
é um louco mais bem-acabado ainda: um esquisitão, um verdadeiro funâmbulo.
Seria incapaz de tocar um adágio, e compraz-se em tocar cabriolas ridículas
para armar efeito aos ignorantes. Digo bem alto: comigo e com Nardini irá
extinguir-se a arte de tocar violino. O jovem Vioti[12] é
um excelente artista, cheio de boas disposições. Deve-me tudo o que sabe, pois
é um dos meus mais assíduos discípulos. Mas não posso fazer tudo! Não tem
perseverança, não tem paciência! Fugiu da minha escola. Espero tirar mais
resultado de Kreutzer[13]:
aproveitou minhas lições e saberá pô-las em pratica quando voltar para Paris. O
meu concerto, esse que Haak estuda comigo, ele toca-o menos mal. Contudo,
falta-lhe pulso para servir-se de meu arco. Quanto a Giarnowicki, é um fátuo,
um ignorante, que teve a audácia de criticar Tartini, o mestre dos mestres, e
que debocha as minhas lições. Há ainda esse rapazinho, Rode[14],
que promete instruir-se escutando-me, e que poderá bem vir a ser um dia senhor
do arco. É mais ou menos da tua idade, meu rapaz — disse ele, voltando- se para
mim. — É mais grave e mais refletido. Tu me pareces um pouco estouvado. Bom,
mas isso passa. Quanto ao senhor, meu caro Haak, tenho fundadas esperanças. Desde
que está sob a minha direção, tem feito sensível mudança. Continue a perseverar
com zelo e não perca um instante sequer. O senhor sabe muito bem que não brinco
com estas coisas.
Fiquei
maravilhado com tudo o que ouvi. Com impaciência, esperei o momento de falar
com meu mestre e perguntar-lhe se realmente o barão era o primeiro violino da
época, e se, na verdade, ele, meu mestre, tomava lições do barão. Perguntei-lhe
se seria bom pedir também conselho ao barão. A todas as minhas perguntas sobre
o valor e o talento musical do barão, meu mestre foi de um silencio
impenetrável, dizendo apenas que eu faria muito bem em seguir o seu exemplo.
Disse-me também que tinha achado de seu dever tomar lições com o barão, e que
eu faria muito bem em ir também um dia suplicar-lhe a honra de algumas lições.
Não me escapou, porém, em todo esse discurso, o sorriso singular que brincava
constantemente nos lábios do mestre da capela.
Quando,
uma manhã, fui humildemente apresentar ao barão a minha pretensão, quando lhe
disse que o amor mais ardente e mais entusiasta pela minha arte me animava, o
seu olhar, a princípio fixo e surpreso, tomou insensivelmente uma expressão de
doce benevolência.
—
Meu rapaz — disse-me ele, dirigindo-te a
mim —, ao único violinista que sobreviveu aos grandes mestres, provas que tens
em ti um verdadeiro coração de artista. Teria muito boa vontade em aceder ao
teu desejo, mas o tempo... Como arranjar tempo? Haak, teu mestre, me dá muito o
que fazer, e, depois, tenho esse rapaz, Durand, que quer apresentar-se em público,
e que se certificou de que não poderia fazê-lo sem primeiro tomar as minhas
explicações. Ah! Espera! Entre o almoço e o jantar, ou antes, durante o almoço.
Sim, tenho então uma hora disponível.
Meu rapaz, procura-me ao meio dia justo, todos os dias. Tocaremos até uma hora.
Depois vem Durand.
É
fácil imaginar que no dia seguinte corri à casa do barão com o coração cheio de
esperança. Ele não me permitiu tirar um único som do violino que tinha levado.
Meteu-me nas mãos um gótico instrumento de Antonio Amati[15].
Nunca me tinha servido de um tal instrumento. Encantou-me o tom celeste que se
elevava das cordas. Perdi-me em passagens ousadas, deixei a torrente harmoniosa
levantar-se e marulhar em borbotões, como uma vaga furiosa, para depois
deslizar suavemente como uma cascata murmurante. Parece que excedi a mim
próprio: naquele momento, sob a influência daquela situação tão nova, toquei
melhor do que em todo o resto de minha vida. O barão sacudiu a cabeça com ar
descontente, e quando acabei o pedaço, exclamou:
—
Meu rapaz, é preciso que esqueças tudo isso. Antes de mais nada, tu seguras no
arco muito mal — e mostrou-me a maneira de pegar no arco, segundo Tartini. A
princípio, pensei que não poderia tirar um som com semelhante maneira de pegar
no arco, mas, com surpresa, mal repeti as passagens que tinha executado,
verifiquei a extrema facilidade e as vantagens de tal método.
—Vamos.
Vamos começar a lição — disse o barão. — Produz um som, meu rapaz, e sustenta-o
o mais que puderes. Poupa o arco! O arco é para o violinista o que o folego é
para o cantor.
Fiz
o que ele me disse, e não pude deixar de me alegrar vendo que conseguia
produzir um tom vigoroso, que levei do pianíssimo ao fortíssimo e fiz depois
descer lentamente, a longos golpes de arco, em bela gradação.
—
Repara bem, meu caro —exclamou ele —, tu podes dar pulos à moda, fazer
dedilhações saltitantes, mas és incapaz de sustentar um som como convém. Vamos
lá. Vou mostrar-te o que se pode fazer com um violino.
Dizendo
estas palavras, o barão pegou o violino e colocou o arco bem perto do cavalete.
Oh, não encontro termos com que possa verdadeiramente exprimir o que ouvi atônito,
assombrado. O arco, tremelicando, fustigou a corda, que assobiou, rinchou,
gemeu e miou de modo a exasperar os nervos mais calmos. Dir-se-ia que uma
mulher velha, com o nariz comprimido pelos óculos, procurava cantarolar uma
antiga canção. Ao mesmo tempo, os olhos do barão se voltavam para o céu, com
evidentes provas de um divino êxtase, e quando, afinal, acabou de arrastar o
maldito arco sobre as cordas, ele exclamou com os olhos cintilantes de prazer e
de profunda emoção:
—
Eis aí o que é um tom; eis o que se chama arrancar um som!
Nunca
em minha vida me encontrei em situação igual. O riso louco que me estrangulava
a garganta desvanecia-se ao aspecto daquele velho venerando, cuja fisionomia
achava-se iluminada pelo entusiasmo. Depois, essa cena assumiu para mim um caráter
extravagante diabólico. O coração batia-me com violência, e eu estava em estado
de não poder pronunciar uma única palavra, tal era a verdadeira paralisia que
aquela indizível impressão me tinha causado à glote.
—
Então, meu filho, vejo que isto te penetrou até o coração — disse ele. Nunca
desconfiaste que se pudesse tirar tamanha potência de voz desses pedaços de
tábuas com quatro magras cordas! Vamos! aproxima-te. Vem tomar um pouco de
vinho para te restabeleceres.
Ao
dizer estas palavras, encheu-me um copo de Madeira, que tive de engolir
juntamente com um biscoito que ele apanhou em cima da mesa.
—Bem,
por hoje chega — disse ele. Vai, meu filho, e volta amanhã. — Olha, toma lá
isto.
Dizendo
estas palavras, o barão entregou-me um pequenino embrulho de papel, no qual
encontrei um belo ducado holandês. Extraordinariamente surpreendido com o caso,
corri à casa de meu mestre, a quem contei tudo o que se passara.
Por
única resposta, começou ele a rir-se às gargalhadas.
—
Já ficas sabendo quem é o barão e o que são as suas lições — disse ele. — Tratou-te
como a um principiante, e só te deu um ducado por lição. Quando fizeres
progressos, aumentar-te-á os honorários. Por mim, estou atualmente recebendo um
luís[16],
e Durand recebe, creio, dois ducados.
Não
pude deixar de censurá-lo pela mistificação feita ao velho e bondoso fidalgo,
extorquindo-lhe assim os belos ducados.
—
Fica sabendo — disse-me meu mestre — que a maior felicidade para o barão neste
mundo é dar lições de violino, e que, se eu ou os outros não as recebêssemos, ele
nos desacreditaria no mundo musical, onde exerce uma verdadeira autoridade infalível.
Fica também sabendo que, exceção feita da execução, ele é um homem que
verdadeiramente entende de teoria, e que suas reflexões são muito judiciosas.
Só poderás lucrar com as suas lições. Visita-o, pois, assiduamente, e, sem
ligares muita importância a uma ou outra tolice que ele disser, trata de
aproveitar os lampejos de senso e de razão que ele apresenta sempre que trata
da filosofia da arte.
Segui
o conselho de meu mestre. Mais de uma vez tive de fazer um esforço
verdadeiramente sobre-humano para conter uma tempestade de gargalhadas que
estourava quase sempre que o barão tomava o seu impagável arco, que passeava
extravagantemente por cima das cordas do seu violino, pretendendo assim tocar
inimitavelmente um dos admiráveis solos de Tartini, e que só ele no mundo seria
capaz de executar tal música. Logo, porém, que depúnhamos os violinos, e que o
barão começava a expor as suas ideias musicais, que profundamente enriqueciam os
meus conhecimentos artísticos, sentia o peito arfar de entusiasmo pela arte
divina sobre a qual ele discorria de modo verdadeiramente notável. Em tais ocasiões,
sentia um verdadeiro afeto e gratidão pelo velho e erudito fidalgo. Depois,
quando nos seus concertos eu obtinha aplausos, o barão sorria com orgulho e
dizia:
—
A mim é que este moço deve o seu talento. A mim, aluno de Tartini!
Com
grande proveito continuei a ouvir as Lições do barão e a guardar os seus belos
ducados...
Fonte: O Malho, edições
de 22 e 30 de julho de 1927.
Tradução de autor
desconhecido do século XX.
Ilustração de Jan
Kupecky(1667-1740).
[1]
Carl Stamitz (1745 – 1801), compositor tcheco, introduziu o clarinete na
orquestra de Mannheim em 1785.
[2]
Joseph Haydn (1732 – 1809), compositor austríaco, um dos grandes nomes da
escola clássica.
[3]
Antonio Stradivari (1644 – 1737), luthier italiano, discípulo de Nicola Amati.
[4]
Giuseppe Tartini (1692 – 1770), compositor e violinista italiano, autor do
famoso “Trilo do Diabo”.
[5]
Pietro Nardini (1722 – 1793), compositor e violinista italiano do período
barroco.
[6]
Arcangelo Corelli (1653 – 1713), compositor, maestro e violinista italiano.
[7]
Gaetano Pugnani (1731 – 1798), compositor e violinista italiano.
[8]
Francesco Geminiani (1687 – 1762), compositor e teórico musical italiano.
[9]
Felice de Giardini (1716 – 1796), compositor e violinista italiano.
[10]
Niccolò Jommelli (1714 – 1774), compositor italiano.
[11] O
autor refere-se a um dos irmãos compositores franceses, Louis Lully (1664 –
1734) ou Jean-Baptiste Lully fils (1665 –
1743), ou, mais possivelmente, a algum de seus descendentes.
[12]
Giovanni Battista Viotti (1755 – 1824), violinista italiano.
[13]
Rodolphe Kreutzer (1766 – 1831), compositor francês.
[14] Pierre
Rode (1774 – 1830), violinista francês.
[15]
Antonio Amati (1540 – 1607), luthier
italiano.
[16] Antiga moeda de
ouro francesa.
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