O PASSAGEIRO DA PRIMEIRA CLASSE - Conto de Anton Tchekhov
O PASSAGEIRO DA PRIMEIRA CLASSE
Anton
Tchekhov
(1860
– 1904)
Depois
de um abundante almoço, o passageiro da 1ª. classe, um pouco entontecido pelos vinhos e
licores, encostou-se num sofá, estendeu as pernas e ficou a cochilar. Cinco
minutos depois, sem mesmo mudar de posição, abriu os olhos, fixou o passageiro
que lhe estava em frente e lhe disse, sorrindo:
—
Gosto sempre de conversar depois do almoço. Não importa de conversar um pouco
consigo?
—Com
muito gosto!
—
Depois da boa refeição, basta qualquer coisa insignificante para que me venham
à cabeça grandes pensamentos e belas ideias. Por exemplo, agora mesmo, no
restaurante, um rapaz felicitava outro pela sua celebridade. "Felicito-te
— dizia ele — porque tu, sendo já pessoa notável, estás a conquistar a
glória!". Devem ser artistas ou jornalistas microscópicos. Mas a questão
está, de fato, em saber o que se entende por "glória". Que lhe
parece? Pushkin[1]
dizia que a glória é um remendo claro sobre farrapos. Todos nós a compreendemos
de uma maneira ou de outra — subjetiva, é claro —, mas a verdade é que ninguém
encontrou ainda a lógica e clara definição dessa palavra. E eu daria tudo para encontrá-la!
—
Por que se interessa tanto por isso?
—
Escute: se soubéssemos definir precisamente o que é a glória, talvez nos fosse
mais fácil encontrar os meios de conquistá-la — respondeu o passageiro da 1ª.
classe, depois de ter pensado uns momentos. — Antes de mais nada, meu caro
senhor, quero confessar-lhe que na minha juventude procurei a glória com todas
as forças de minha alma. A celebridade era a minha loucura. Para alcançá-la,
estudei, trabalhei, passei noites de insônia, não comia, descuidava a saúde.
Agora, que posso julgar o passado imparcialmente, vejo que tive, então, todos
os requisitos para obtê-la. Em primeiro lugar, pela profissão: eu sou
engenheiro. Construí em toda a Rússia um par de dezenas de pontes magníficas.
Instalei abastecimentos de água a numerosas cidades. Trabalhei ainda na
Inglaterra e na Bélgica... Em segundo lugar, publiquei muitas obras acerca da
minha especialidade. E, por último, desde muito novo gostava da Química; e foi
assim que, ocupando as minhas horas de ócio nesta ciência, descobri um processo
de isolar corpos inorgânicos até então desconhecidos. Graças a isto o meu nome pode ser encontrado nos manuais
estrangeiros. Segui, além disso, a carreira do funcionalismo público até o
cargo de conselheiro efetivo e a minha folha de serviços é brilhante. Não quero
molestá-lo com a enumeração dos meus trabalhos e méritos. Direi, somente, que
fiz muito mais do que qualquer celebridade. E tudo para quê? Estou velho, com
os pés na cova e, afinal, sou tão célebre como esse pobre cão que vai correndo
pelo corredor.
—
Quem sabe? Talvez não seja tanto assim...
—
Hum! É como lhe digo. O senhor já alguma vez ouviu falar em Krikunov?
O
passageiro elevou o olhar e pensou um pouco.
—
Não. Nunca ouvi.
—
Pois é esse o meu nome! O senhor é um homem já de certa idade, ilustrado e
nunca o ouviu. Quer prova mais concludente? Não há dúvida de que eu busquei a notoriedade,
mas desconhecia os meios de consegui-la.
—
Mas que meios são esses?
—
Nem o próprio Diabo sabe! O senhor dirá: o talento, o engenho, a persistência?
Nada disso! A meu lado viviam e faziam carreira pessoas inferiores, se
comparadas comigo. Trabalhavam mil vezes menos do que eu, não faziam nenhum
esforço, não eram talentosas. Pois os seus patronímicos aparecem a cada momento
nas colunas dos jornais e toda a gente fala delas. Se o não o aborreço,
cito-lhe um exemplo.
Há
um bom par de anos, construí uma ponte numa cidade muito maçante. Só lhe digo
que, se lá não houvesse mulheres e baralhos de cartas, eu, seguramente, tinha
morrido de tédio. O aborrecimento levou-me a arranjar uma aventura: uma cantora.
Que diabo! Todos os homens da cidade andavam entusiasmados com ela e pareceu-me
ter também esse direito. Era mulher caprichosa, inútil, preguiçosa e estúpida.
Comia como poucas, bebia como nenhuma e dormia até as 5 horas da tarde. Estas
parecem-me ser as suas melhores qualidades. Como cantora, tinha duas pernas
lindamente delineadas que não se envergonhavam quando alguém entrava no camarim
da sua dona.
Peço-lhe
que me escute com atenção. Recordo-me como se fosse hoje. Foi no dia da
inauguração solene de uma ponte construída por mim. Houve música, discursos,
festa... A ponte — modéstia à parte — era uma obra de arte. E eu pensava:
"Agora vou ser célebre, todos me vão ver!". Mas, meu querido amigo, a
verdade é que ninguém, com exceção da comitiva oficial, reparou em mim.
Amontoaram-se na ribeira, como carneiros, e olhavam a ponte sem se interessar
por quem a construíra. Vem daí o meu ódio pelo chamado “respeitável
público". Mas, adiante. De repente, vi que todos começavam a agitar-se. O
público abria passagem para a cantora e a seguia com olhares ávidos. Ouvia-se
se um murmúrio que saía de todas as bocas! "É Fulana de Tal! Que
encantadora!". Nisto, dois tipos duvidosos notaram a minha presença. E um deles,
piscando muito ordinariamente um olho para o outro, disse, em voz baixa,
apontando-me: "Este é o amante dela!”. Ao mesmo tempo, um homem de barba
por fazer a dirigiu-me estas palavras:
—
Conhece esta mulher? É Fulana de Tal! Tem voz intragável, mas é muito bonita!
—
E não me pode dizer — perguntei por minha vez — quem foi que fez esta ponte?
—
Sei lá! respondeu o homem da barba crescida. — Um engenhocas qualquer!
—E
quem construiu a catedral?
—
Também não lhe sei dizer.
—E
diga-me, por favor — perguntei-lhe finalmente. — Quem é o amante desta cantora?
—Um engenheiro. Um tal Krikunov...
Que
lhe parece isto? Mas já vai ver o resto... No dia seguinte ao da inauguração da
ponte, procurei notícia nos jornais. Falavam da comitiva oficial, das pessoas
eminentes que tinham assistido à cerimônia, faziam elogio ao governo pela
grande obra de fomento nacional que estava realizando e acabava por informar
que entre a assistência fulgurava a beleza da estrela favorita do público,
Fulana de Tal. De mim, nem uma palavra! Quase chorei de indignação.
Tranquilizei-me
pensando que a Província é estúpida e não se pode exigir muito dela. Para
alcançar a celebridade, não há como as capitais, as grandes cidades do
espírito. E como nessa época tinha em exposição um trabalho meu, com que
concorrera a um concurso em Petrogrado, para lá me dirigi e levei comigo a
cantora. Chegamos no próprio dia em que eram torados públicos os resultados do
concurso. No dia seguinte procurei os jornais. No primeiro, nada. No segundo,
nem uma palavra. Por fim, encontrei a seguinte notícia:
"Chegou
ontem a Petrogrado a formosa artista Fulana de Tal. Notamos com prazer que o
clima do Sul deu à sua beleza um tom mais dourado etc. etc." — mais uma sucessão
de não sei quantos disparates. Depois, cá embaixo, em letras muito pequeninas,
estava o seguinte:
"Ontem,
no concurso tal, foi conferido o 1.° prêmio ao engenheiro Kirkunov".
E
mais nada! Note bem que me chamaram Kirkunov quando meu nome é Krikunov. Aqui
tem um centro de cultura, um centro intelectual... Podia citar exemplos sem
fim. Mas estes bastam. Vamos supor mesmo que eu me equívoco em relação à minha
pessoa; que sou um homem sem talento, um fanfarrão. E então aqueles dos nossos
contemporâneos, gente inteligentíssima e incansável, que morreram completamente
ignorados? Acaso o público conhece os nossos matemáticos, os pintores, os
escultores, os escritores?
Indique-me
um literato que se tenha tomado popular antes de o terem morto em duelo,
recolhido a um manicômio, enviado para a Sibéria ou expulso do clube por
trapacear no jogo!
O
passageiro da 1ª classe entusiasmara-se tanto que deixara cair o cigarro da boca.
Estava de pé.
—
Sim! — continuou com violência. — E, paralelamente a isto, posso indicar-lhe um
sem-fim de nomes de acrobatas e palhaços que são conhecidos até pelas crianças
de peito!
Abriu-se
a porta e, juntamente com uma lufada de vento, entrou um tipo de aspecto
lúgubre, capa, chapéu de feltro e óculos azuis. Olhou toda a gente e, não vendo
quem buscava, a sua cara adquiriu uma expressão
ainda mais lúgubre e foi-se embora.
—
Sabe quem é? — ouviu-se uma voz baixa a um canto do vagão. — É Fulano, que está
implicado no processo do Banco U.
—Aí
tem! — disse rindo o passageiro da 1 ° classe. — Toda gente conhece este tipo
que deu desfalque ao Banco U. Pois pergunte-lhes se conhece Siemiradzki[2],
Tchaikovsky[3]
ou o filósofo Soloviov[4] e
verá como todos começam a menear a cabeça...
Tinham
decorrido uns três minutos de silêncio.
—
Permita-me perguntar, por minha vez — disse, tossindo, o companheiro de viagem
do passageiro da 1ª classe. — O senhor conhece o nome Pushkov?
—Pushkov?
Hum! Pushkov? Não, nunca ouvi...
—
É que... esse é o meu nome — continuou o outro, sorrindo — e o senhor não o
conhece. E há trinta anos que sou professor de uma universidade... Autor de
muitos trabalhos publicados... membro da Academia...
O
passageiro da 1ª classe e o companheiro olharam-se um bocado e começaram a rir
às gargalhadas.
Tradutor
anônimo.
Fonte: Careta,
outubro de 1955.
Muito bom! Parabéns pelo site e pela seleção de contos.
ResponderExcluirTomara que alcancem, e de minha parte já alcançaram, a celebridade!