A TESTEMUNHA - Conto de Frédéric Boutet


A TESTEMUNHA
Frédéric Boutet
(1874 – 1941)

Amigo sincero de Philippe Harlay, eu era dos poucos que não o  invejavam. Ao contrário, notava com prazer as sucessivas etapas de sua rápida e brilhante carreira administrativa, embora não a atribuísse apenas a seus méritos pessoais. Felizmente, os méritos, que eram muitos e grandes, tinham-lhe permitido fazer boa figura nos vários cargos e incumbências de alto relevo para as quais tinha sido indicado, de modo a alcançar, em pouco mais de quinze anos, situação que outros só atingem com meio século de esforços.

Era o mais moço dos diretores gerais da Universidade e tinha seu nome aureolado pelo desempenho de missões altamente honrosas, porque figurava com impressionante regularidade em todas as comissões nas quais um sábio pode demonstrar altas capacidades. Era tão constante a escolha de seu nome para todos lugares de destaque que Philippe acabara por ganhar, entre os colegas, fama assaz desagradável. Os mais amargos acusavam-no de ser um intrigante hábil, inexcedível na arte de estar bem com todos os governos. Os menos venenosos preferiam afirmar que ele tinha por trás de si alguma influência poderosa, que o protegia.

Eu mesmo não estava longe de acreditar essa última versão. Afinal, Philippe era um rapaz com admirável cultura, mentalidade vigorosa, mas não suficiente para justificar tantas e tão rápidas promoções... Cheguei a me interessar pela indiscreta investigação, que alguns "amigos" empreenderam, em busca da "influência" que tão favoravelmente velava por Philippe. Mas nada foi encontrado. Ele tinha uma vida de anacoreta, sem relações com pessoas capazes de ampará-lo junto ao governo, e, também, não lhe conheciam parentes com importância para recomendá-lo... De resto, os ministérios se sucediam variados e ele continuava a ser o preferido para tudo quanto era proveitoso, do ponto de vista material e moral.

Nessa manhã, lendo nos jornais a notícia de sua nomeação para representar a França no Congresso de Jurisconsultos, a se reunir em Washington, corri à sua casa para felicitá-lo. Philippe ainda não tinha lido os jornais e soube a notícia por mim. Estranhei essa ignorância e ainda mais a expressão de aborrecimento, pode-se mesmo dizer de irritação, com que a recebeu.

Há coisas que ninguém pode fingir. A surpresa de Philippe não era simulada e, também, me pareceu sincero o mau-humor com que ele se ergueu da cadeira e começou a passear pelo gabinete, contraindo a fronte e as mãos com vigor; tão sincero que, cego pela cólera, ele se abriu pela primeira vez comigo.

 —Mas será possível que eu não me liberte dessa proteção infame! — exclamou, dando um murro na mesa. Minha estupefação foi tamanha que guardei silêncio. Ele sentou-se de novo, acabrunhado e disse:

 —Você não imagina o inferno que é minha vida com essa intervenção incessante de um miserável, que se julga obrigado a me ser grato.

E como meu olhar denunciava incompreensão absoluta, explicou:

 —É Felinier.

 —O banqueiro.

—Banqueiro, milionário, senador, homem onipotente, que tem quase todos os políticos na gaveta, como se costuma dizer.

 —Mas você o conhece. Nunca me constou que...

—Fujo dele o mais que posso. Não o procuro. Na última vez em que o vi, tratei-o tão grosseiramente que ele também nunca mais me procurou. Mas continua com a mania de me auxiliar.

 —Por quê?

 —Por uma coisa estúpida, horrível, em que eu não tive culpa... Isso é, em parte fui culpado, mas não para ser castigado assim.

— Mas santo Deus!... Que foi o que você fez?

—Você é mais ou menos de minha idade, não pode se lembrar de uma coisa que aconteceu quando éramos ainda crianças. Mas, na época, os jornais falaram longamente: Felinier foi acusado de um crime, um assassinato covarde, traiçoeiro. O caso se revestia de mistério e havia uma única testemunha: um garoto de doze anos. Eu.

 — Ah!

— Meu pai tinha sido nomeado diretor da alfândega em uma colônia da Ásia e, como era viúvo, deixou-me com a família de um irmão casado. Eu passava a maior parte do ano em Paris, como interno, num colégio. Nas férias, ia para a propriedade de meu tio, na Bretanha. Meus tios gostavam de mim, mas tinham ideias rígidas, autoritárias, sobre educação e me mantinham num regime severo. Ora, naquele ano, eu tivera a infelicidade de ser reprovado em duas matérias. Imagina o que foram minhas férias! Sermões, ameaças, privação dos banhos de mar e estudos constantes.

 —Mas que tem Felinier com isso?

—Vou dizer. Havia, em torno da casa de meu tio, um parque que confinava, de um lado, com a enorme propriedade do Sr. Levain, um multimilionário viúvo e sem filhos. Seu único parente era um neto — Felinier — que contava já vinte e seis anos e, tendo esbanjado seu patrimônio, e não dispondo de preparo para qualquer trabalho, ficara reduzido a viver do que o avô lhe dava. Ora, a despeito de sua imensa fortuna, o sr. Lovain não era generoso. Pagara as dívidas de Felinier, porém mantinha-o ali, naquele recanto deserto da Bretanha, sem uma distração e sem vintém, como um prisioneiro. E ele não se atrevia a partir, porque o avô ameaçara de riscá-lo de seu testamento, se tal fizesse.

Havia, próximo à cerca que dividia as duas propriedades, um pavilhão no qual meu tio me obrigava a ficar duas a três horas, todos os dias, sozinho, para estudar. Dali, eu tinha como panorama um relvado do parque vizinho. Nesse relvado, vi, duas vezes, o Sr. Levain, um octogenário horrendo, que passeava devagar, com as mãos para as costas e Felinier, que, quase todos os dias e, também, sozinho, vagueava, como uma alma penada, ao longo da cerca. Um dia, deteve-se, olhando para mim e vendo-me naturalmente triste, diante de um pacote de livros, perguntou:

 —De castigo hein? E aborrecido, é claro. Eu também. Mas isso não há de durar sempre.

Poucos dias depois, ouviu-se um tiro. O jardineiro da casa do Sr. Levain acudiu ao estampido e encontrou o milionário caído no relvado, morto, com uma bala na cabeça e um revólver junto de sua mão direita.

Alarme, polícia, inquérito. Suicídio? Crime? O velho era doente, neurastênico, mas nunca falara em se matar.  Não havia na coronha do revólver impressões digitais que não fossem do morto. Mas o assassino podia estar de luvas e ter apertado a mão de sua vítima sobre a arma.

Quem tinha interesse na morte de Levain? Seu neto, herdeiro único de sua fortuna. Onde estava ele, na hora em que o tiro fora ouvido? Dizia estar passeando no outro extremo do parque, mas não podia prová-lo. Ninguém o vira nesse momento. O jardineiro, o primeiro a chegar ao local, não vira pessoa alguma fugindo por entre as árvores.

Felinier foi preso. Mas a polícia não tinha também meios para provar sua culpa. Então, meu tio se lembrou de que, naquela hora, eu estava no pavilhão, estudando e interrogou-me.

—Você viu alguém matar aquele pobre homem?

—Não, senhor.

—Mas do pavilhão você vê a relvado, deve ter ouvido o tiro.

—Estava estudando... Quando olhei, só vi o velho, caído...

— Não viu ninguém junto dele ou fugindo?

—Não, senhor.

Tive que repetir esse depoimento diante do juiz de instrução. Felinier foi posto em liberdade, entrou na posse de uma fortuna gigantesca e até hoje me persegue com uma gratidão insultante, porque, não tenho dúvidas, estou convencido de que foi ele o assassino.

—Mas então por que o inocentou? Por simpatia, por?...

—Não. Eu não estava no pavilhão. Estava na beira do rio, tentando apanhar peixes, com uma lata. De modo que, de fato, não assisti ao crime. Mas não podia dizer isto a meu tio...


Tradução de autor desconhecido.
Fontes: “Gran-fina” (Curitiba/PR), edição de 1ª de fevereiro de 1941; “Correio Paulistano”, edição de 21 de março de 1941.

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