O LENÇO AZUL - Conto Trágico - Viscondessa de Renneville
O LENÇO AZUL
Viscondessa
de Renneville
(1811
– 1879)
No
fim do mês de outubro do ano passado, eu voltava, a pé, de Orleans para o
castelo de Bardy, quando encontrei na estrada um regimento da guarda
estrangeira.
Travei
conversação com um oficial com quem tinha algum conhecimento, e assim fui
acompanhando a tropa por espaço de meia hora.
No
fim deste tempo, vendo que o regimento tomava para uma planície que estava à
direita da estrada, perguntei ao oficial se iam fazer exercício.
—Não
— disse-me ele. — Vamos julgar e, provavelmente, fuzilar um soldado da minha companhia
que roubou, ontem, a dona da casa que lhe deu guarida.
—Mas...
Como? — repliquei, admirado. Pois vão julgá-lo, sentenciá-lo e executá-lo no
mesmo momento?
—Sim
— respondeu o oficial. — Assim manda o nosso regulamento.
Esta razão para ele era sem réplica. Para um
militar suíço, a razão, a honra, a justiça, e mesmo a humanidade, tudo está no
que diz o seu regulamento.
—Se
quer demorar-se um pouco — concluiu o oficial —, e assistir à execução, eu lhe
darei lugar: isto pouco demora.
Nunca
havia presenciado estes tristes espetáculos e veio-me a ideia de conhecer o que
era a morte sobre o rosto de um moribundo. Segui o regimento. Logo que este
entrou na planície, formou um quadrado. Destacaram-se, imediatamente, alguns
soldados, que começaram a abrir uma cova. Um alferes os comandava, porque tudo
num regimento suíço se faz com ordem, e deve haver disciplina até mesmo para
abrir a sepultura de um homem.
No centro do quadrado se reuniram oito oficiais.
Um deles escrevia algumas palavras em cima de um tambor, simplesmente para que
se não dissesse que haviam matado um homem sem alguma formalidade.
Chamaram
o réu. Era um jovem de estatura alta, figura nobre e agradável. Perguntaram o
seu nome e origem, e logo mandaram avançar uma mulher, única testemunha que
havia neste processo. Iam interrogá-la, quando o soldado atalhou, falando para
o seu coronel:
—São
desnecessárias as perguntas, senhor. Eu
confessarei meu crime: furtei um lenço a essa mulher.
—Tu,
Piter! Passavas por tão bom rapaz! — disse o coronel.
—É
verdade, meu coronel — respondeu o jovem soldado. —Sempre fiz as diligências
por ser bem visto dos meus oficiais... Mas, também, não foi para mim que
furtei... foi para Maria.
—
Quem é essa Maria? — Indagou o coronel.
—
É uma linda moça da aldeia de......, ao pé de Arenembeg... Oh, eu não mais tornarei
a vê-la!...
—Não
te entendo, Piter; explica-te.
—Pois
bem! Leia o meu coronel esta carta, e saberá tudo.
E
entregou-lhe uma carta. O coronel leu, em voz alta, as seguintes palavras, que
ainda estão gravadas em minha memória:
“Meu,
querido Piter.
Aproveito
este recruta que vai para o teu regimento para te mandar esta carta, e essa bolsa
de seda que fiz de propósito para ti. Meu pai continua a ralhar comigo por eu
te amar tanto, dizendo que tu não retornarás, porque morrerás em campanha.
Porém, eu não creio nisto, e estou bem certa que hás de voltar. Não é verdade,
meu querido Piter, que tu não hás de morrer? Bem sabes que isso me causaria
muita pena. Mas, ainda que assim fosse, eu te haveria de amar sempre. Jurei-te
fidelidade naquele dia em que tu apanhaste o meu lenço azul, que eu tinha
perdido na dança de Arenemberg, e que me vieste entregar: lembras-te bem? O que
me consola é dizer-se que tu és estimado de todo os teus superiores, e amado
dos teus camaradas. É porque és bom rapaz. Porém, ainda te faltam três anos de
serviço: trata de acaba-los depressa para vires casar com a tua querida
Maria.
P.S.
Vê se me mandas algum presentinho lá de França, não porque haja medo que eu te
esqueça, mas para trazê-lo sempre sobre o meu coração. Tu o beijarás quando o
mandares, e eu adivinharei o lugar onde o tiveres beijado para aí também dar
todos os dias mil beijos.”
Acabada
a leitura, Piter continuou:
—O
recruta entregou-me esta carta ontem à noite, quando me davam o meu boleto[1].
Toda a noite não pude dormir, a pensar em Maria e na minha aldeia. Ela pedia-me
um presente, e eu via-me sem dinheiro: tinha empenhado por três meses o meu relógio
para socorrer o meu primo, quando há poucos dias voltou para casa com a sua
baixa. Quando, esta manhã, me levantei para marchar, abri a janela do quarto:
um lenço azul estava estendido uma corda... era inteiramente irmão do de Maria,
a mesma cercadura, as mesmas riscas brancas... Oh! Eu o teria tomado, ainda que
ele fosse do rei, tão cego eu estava de amor! As caixas já tocavam. Não tive
mais tempo que o meter no bolso, e sair para a rua. Esta mulher veio gritando,
atrás de mim. Chegou um oficial; achou-me o lenço... Aqui está toda a verdade.
O regulamento manda que eu seja fuzilado: paciência. Só peço aos meus oficiais
e camaradas que não me desprezem como um vil ladrão.”
Os
juízes não podiam encobrir a sua emoção. Contudo, passou-se aos votos, e Piter
foi condenado à morte por unanimidade. Ele ouviu a sentença com sangue-frio.
Depois, chegando-se ao seu capitão, pediu-lhe quatro francos. O capitão logo
lhe deu. Piter dirigiu-se então para a dona do lenço, e lhe disse:
—
Mulher, aqui tem quatro francos: não sei se o seu lenço vale mais; porém, ainda
que seja assim, eu o pago bem caro, para que me perdoes a diferença.
Recebendo
o lenço, beijou-o repetidas vezes, e o foi entregar ao seu capitão dizendo-lhe:
—
Meu comandante, creio que antes de dois anos o regimento tornará a atravessar a
Suíça. Se passar perto de Arenemberg, peço-lhe que procure Maria, e lhe
entregue este lenço azul. Mas, por Deus, que não lhe diga o preço por que o eu
comprei.
Dito
isto, ajoelhou, fez uma breve oração, e marchou para o lugar do suplício. Eu
corri então a um bosque vizinho, para não presenciar esta cruel tragédia.
Dentro em pouco, alguns tiros de espingarda me anunciaram que ela estava acabada.
Voltei
ali passada uma hora: o regimento já tinha marchado. Tudo estava mudo! À borda
do bosque,havia alguns vestígios de sangue, e um montículo de terra revolvida
de fresco... Cortei um ramo de abeto, fiz uma cruz, e cravei-a sobre a
sepultura do pobre Piter, talvez a esta hora já esquecido por todos, menos por
mim e talvez por Maria.
Tradução
de autor desconhecido do séc. XIX. Fizeram-se breves adaptações textuais.
Fonte:
“Jornal das Senhoras”, edição de 7 de agosto de 1955.
[1]
Ordem escrita para que um particular dê alojamento a militares
(Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa [em linha]”).
Comentários
Postar um comentário