OS SINOS - Conto Trágico de Gabriele D'Annunzio


OS SINOS
Por Gabriele D'Annunzio
(1863 – 1938)

A Biasce, o mês de março se caracterizou por lhe trazer o mal do amor. Fazia já duas ou três noites que não lograva cerrar os olhos. Sentia por todo o seu corpo ardores como se, de um momento para outro, lhe fossem surgir através da pele um punhado de espinhos de rosas silvestres. Até o fundo da sua água furtada chegava um odor novíssimo, fresco e áspero que ascendia das plantas rasteiras e das amendoeiras em flor...

Por Santa Barbara protetora!... Precisamente apoiada em um amendoeiro em flor havia visto, pela última vez,  Zolfina, enquanto ela contemplava uma barca em alto mar. Sobre sua cabeça luzia alegremente uma alvura embalsamada que rumorejava sob o sol e, em torno dela, via-se a azulada florescência de onda de linho. Seus olhos brilhavam como duas gotas de orvalho e, sem dúvida, em seu coração havia a carícia das flores.

Deitado em sua tarimba, Biasce, enlouquecido, pensava nesse mundo de luzes, nesse transbordamento primaveril da vida. E, já ao longe, na linha externa do Adriático, se iluminava com as primeiras claridades do alvorecer, quando se levantou, ascendendo pelos degraus de madeira gasta até os ninhos das andorinhas, sobre o telhado do campanário.

Flutuavam no ar vozes estranhas, confusas, semelhantes a um palpitar furtivo, à leve respiração de um cão, ao roçagar das folhas, ao rumor das ondas que se quebravam e se espargiam pela areia alva da praia. As vivendas cerradas dormiam ainda. Havia já alvura, embora semiadormecida, sob véus de neblinas transparentes.  Aqui e ali, sobre esse lago estancado, as arvores balançavam com a brisa. Ao fundo, as colinas violáceas trocavam, longinquamente, seus matizes por outros mais ternos; confundiam-se no horizonte cinzento. Em frente estava o mar. Luzente e brilhante como uma fita fosforescente com alguma vela turvada pela penumbra. E sobre tudo reinava a fresca e diáfana serenidade do firmamento, onde as estrelas empalideciam uma a uma.

Os três sinos imóveis, com seus ventres ocos de bronze sulcados de arabescos, aguardavam que os braços de Biasce os impulsionasse para lançarem suas vibrações triunfais na brisa matutina.

Biasce pegou as cordas. Ao primeiro puxão, o sino maior, a "Loba", pareceu estremecer profundamente. Sua ampla boca se abriu, fingiu cerrar-se de novo, abriu-se mais uma vez... Uma ondulação de sons metálicos, seguida por uma espécie de mugido profundo, salpicou os tetos, viajou ao vento por toda a planície. E o movimento continuava, continuava... O bronze se animava, parecia um monstro enlouquecido de cólera ou de amor, oscilando espantosamente da esquerda para a direita, mostrando sua mandíbula, alternadamente aos dois lados, emitindo notas profundas e prolongadas, reunidas por um rumor incessante, rompendo de improviso o ritmo, apressurando seu vai e vem até fundir-se em um tremor de cristalina harmonia, prolongando-se solenemente no espaço. Mais abaixo, as ondas de sons e as crescentes ondas de luz aumentavam o sonho da campina. A neblina trocava-se em fumo, dourava-se ao ascender, dissolvia-se lentamente sob a claridade matinal. As colinas tomavam a cor de cobre. De improviso, escutou-se outro timbre sonoro. O carrilhão da “Estrige”, áspero e rouco, surgiu, parecendo um animal colérico junto de uma fera. E imediatamente escutou-se o martelar rápido da "Cantora", um martelar alegre, límpido e ágil, teimoso, semelhante a uma granizada sobre uma cúpula de cristal. Mais para lá adivinhava-se os ecos dos outros campanários. O de São Roque, muito ao longe, avermelhado e semiescondido entre as árvores; o de Santa Teresa, um enorme pão de açúcar colado; o de São Franco; o do convento...; dez, quinze vozes metálicas que corriam sobre os campos nas variações jubilosas e sãs do hino dominical em meio de uma luz triunfante.

 A Biase embriagava essa sonoridade. Agradava ver-se esse rapaz ossudo e nervoso, cicatriz sobre a testa, sacudir arquejante seus braços, agarrar-se às cordas como um mono, deixar-se arrastar pela força irresistível de sua querida "Loba", trepar até o lugar onde se assentava a "Cantora", para misturar seu bulício ao estremecimento ensurdecido dos outros monstros dominados.

Ali em cima era o rei. Escalava o muro de pedra espessa e descascada com impulso juvenil; retorcia-se ao redor das vigas do teto como em torno de troncos viventes; corria pelos ladrilhos vermelhos com suas alpercatas de couro com brilhos de esmalte; descia das cobertas com a atividade de um fino réptil; tomava de assalto as telhas cobertas de ninhos, de ninhos velhos e novos, povoados já por um pobre gorjeio de andorinhas enamoradas. Ao pobre Biasce chamavam louco. Porém, no alto, ele era rei, era poeta. Quando o céu sereno se curvava sobre a campina florida, quando o Adriático se coloria com os olhos do sol e os velames de cor das laranjas, quando o trabalho formigava nas ruas, Biasce permanecia nas alturas de seu campanário como um falcão selvagem, inativo, a orelha apoiada contra o flanco da "Loba", da besta terrível e soberba que um dia lhe havia quebrado o frontal. De tanto em tanto, golpeava-a com os nós da mão para escutar suas largas e deliciosas vibrações. Muito perto dele, a "Cantora" reluzia como uma joia, vestida com cifras e arabescos, mostrando, em relevo, a imagem de Santo Antônio. Mais para lá, a "Estrige" mostrava seu velho ventre sulcado em toda a longitude por uma fenda e com seus bordos partidos.

Quantos sonhos voavam sobre essas campanas; que vagabundear de ilusões estranhas; quantos impulsos líricos de paixão e desejo! E como era bela e gentil a imagem de Zolfina, que surgia desse mar de ondas sonoras nas melodias inflamadas que se desvaneciam no crepúsculo, quando a "Loba", subitamente melancólica, espaçava seu tanger até morrer de languidez.


*

Uma tarde, encontraram-se na pradaria, atrás das nogueiras de Mouna, sob um céu de opala no zênite e cheio de malva no poente. Cantarolava ela enquanto ceifava ervas para a vaca em transe de ter a cria. O perfume da primavera se lhe subia à cabeça e lhe dava vertigens, como o doce vapor do vinho de outubro. Quando se inclinava seu próprio hálito roçava às vezes a carne desnuda, suavemente, como carícia.  E o prazer o obrigava a entrecerrar os olhos.

Biasce aproximava-se balanceando-se, com o gorro caído para trás, e um ramalhete de arruda preso à orelha. Não era feio, Biasce. Tinha grandes olhos negros, cheios de uma tristeza selvagem, de unia espécie de nostalgia que recordavam os olhos das feras cativas. Ademais, sua voz possuía um encanto, um encanto profundo que não parecia humano. Sua voz não conhecia modulações, nem branduras; e no alto, em companhia de seus sinos, ao ar livre, em meio de luz irresistível, em pé na solidão, havia aprendido uma linguagem plena de sonoridades, de notas metálicas, de imprevistas asperezas, de guturais profundidades.

— Que fazes, Zolfina?

—Estou cortando feno para a vaca de tio Miguel. Isso é o que faço — respondeu a moça loura que, com o colo palpitante, permanecia curvada para continuar a sua colheita.

 —Zolfina, sentes o aroma, este agradável aroma?... Estava no teto do campanário, mirava as barcas que a brisa marinha impulsionava águas adentro e tu passaste cantando...

Deteve-se, pois sentiu, de improviso, que se lhe oprimia o peito. E ambos calaram para escutar o rumor interminável das nogueiras e o murmúrio do mar distante.

Biasce, polidíssimo, terminou por inclinar-se, também, sobre a erva. E, em meio dessa voluptuosa frescura vegetal, suas mãos ávidas buscaram as mãos de Zolpina, que, de pronto, havia se transformado de enrubescida para abrasada.

Dois esbeltos lagartos enamorados sulcaram o prado como flechas e desapareceram entre as brenhas dos caminhos.

—Queres que te ajude? — disse ele, bruscamente.

—Deixa-me! — sussurrou a pobre jovem com voz desfalecente. — Deixa-me, Biasce!

E depois, apertou-se contra ele, deixou-se beijar, e devolveu seus beijos. E dizendo-lhe “não! não!”, ofereceu-lhe seus lábios, dois lábios rubros e úmidos como as cerejas maduras.

Seu amor crescia como o feno. E o feno subia, subia como uma onda. Em meio desse verde mar, Zolfina, erguida, com um lenço vermelho desnudando o colo, parecia uma luxuriosa papoula. Que incontida alegria musical povoava as baixas fileiras de macieiras e amoreiras, e na mata carregada de nespereiras a madressilvas, nos campos amarelecidos de malmequeres em flor, enquanto, à distância, em Santo Antônio, a "Cantora" repicava com tão jubilosos sons que se podia crer uma rolinha enamorada.

Porém, uma manhã, quando Biance aguardava na Fontana, com um formoso ramo de arrudas, recém-cortadas, Zolfina não acudiu ao encontro. Estava doente, enfermada de varíola.

Pobre Biasce! Quando o soube, sentiu que o sangue se lhe gelava nas veias e esteve mais acerca de cair do que na noite em que a "Loba" lhe partira a cabeça. Sem embargo, devia trepar ao campanário e romper os braços, tirando das cordas — ele, em cujo coração se aninhava a desesperança — em meio do confuso rumor de um Domingo de Ramos, em meio de insultante alegria do sol, rodeado de ramos de oliveira, de telas luxuosas, de nuvens de incenso, de cânticos, de romarias, enquanto sua pobre Zolfina, quem sabe que terríveis tormentos... Oh, Virgem bendita, quem sabe que terríveis torturas!...

Transcorreram dias espantosos. À hora em que começavam a cair as trevas, Biasce rondava pelas cercanias da casa de sua querida enferma, como um chacal em torno de um cemitério. Detinha-se sob a janela cerrada sobre a luz interior e, com seus olhos inchados pelas lágrimas, via passar as sombras sobre os vidros, procurando escutar, oprimindo-se com a mão ao peito quebrado pela angústia. Depois, continuava vagando pelos arredores como um louco, e corria, por fim, a refugiar-se em sua água furtada. Ali passava as intermináveis horas da noite, ao lodo de seus sinos imóveis, oprimido por sua imensa angústia, mais lívido que um cadáver. Abaixo, pelas ruas banhadas de luar e de silêncio, nada, nem uma alma parecia viver. Ante seus olhos, o mar triste e algodonado quebrava-se com monótono rumor na costa deserta. Sobre ele luzia o azul cruel.

E longe, sob esse teto que entrevia apenas, Zolfina agonizava, deitada em seu leito, despida, com seu rosto enegrecido, sulcado por um humor sanguíneo e purulento. Muda sempre, enquanto a luz da vela empalidecia na brancura crepuscular e o sussurro das preces estalava de pronto em uma incontida explosão de soluços. Duas ou três vezes levantou sua cabeça loura, penosamente, como se houvesse querido de alguma coisa. Porém, as palavras não brotaram de sua garganta, faltava-lhe o ar e até a luz a abandonava. Tremeram suavemente seus lábios em um sufocado estertor, como um cordeiro a que sacrificam, e depois quedou morta.

*

Biasce foi ver sua pobre amada. Embrutecido, de olhos vítreos, mirou o ataúde embalsamado de flores frescas sob as quais se estendia a decomposição das carnes juvenis, essa corrupção de humores já putrefatos sob a alvura do linho. Admirou, alucinado, um instante, misturado entre a multidão. Saiu depois. Volveu à sua guarida. Trepou pelos degraus de madeira gasta até o meio. Tomou a corda da "Cantora". Fez um laço corrediço. Olhou a velha "Loba", passou seu pescoço e se deixou cair sobre o vazio. As convulsões do enforcado fizeram com que, através do silencia da semana santa, a "Cantora" lançasse, em um esplendor luzente, cinco ou seis tangidos inesperados, argentinos, jubilosos. E um voo de andorinhas resplandeceu sobre o teto banhada de sol. Biasce também estava morto.


Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “Jornal das Moças” edição 16 de dezembro de 1943.






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