DE CIMA PARA BAIXO - Conto Humorístico de Artur de Azevedo



DE CIMA PARA BAIXO
Artur de Azevedo
(1855 – 1908)

Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria.

Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de sua excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.

— Estou furioso! — exclamou o conselheiro. — Por sua causa passei por uma vergonha diante de sua majestade o imperador!

— Por minha causa? — perguntou o diretor-geral, abrindo muito olhos e batendo nos peitos.

— O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!

— Que me está dizendo, excelentíssimo...?

E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:

— É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...!

— É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de sua majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o meu oficial de gabinete!

E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:

— Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de sua majestade, que dei a minha demissão!...

— Oh!...

— Sua majestade não a aceitou...

— Naturalmente; fez sua majestade muito bem.

— Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.

— Peço mil perdões a vossa excelência — protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a vossa excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza.

O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:

— Bom! Mande reformar essa porcaria!

O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª seção que o encontrou fulo de cólera.

— Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. ministro!

— Por minha causa?

— O Sr. mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!

E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.

O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou:

— Queira vossa senhoria desculpar, Sr. diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tão urgente!...

— O Sr. ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!

— Não era o caso para tanto...

— Não era caso para tanto? Pois olhe, sua excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta!

— Eu... vossa senhoria...

— Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.

— Eu... vossa senhoria.

— Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!

O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:

— Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. diretor-geral!

— Por minha causa?

— O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado!

E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.

— Eu devia propor a sua suspensão por quinze dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. diretor-geral não me tratasse com tanto respeito e consideração!

— O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...

— Ainda o confessa!

— Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos...

— Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...

— Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...

— Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...

O amanuense obedeceu.

Acabado o serviço, tocou a campainha.

Apareceu um contínuo.

— Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção!

— Por minha causa?

— Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!

— Foi porque...

— Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!

— Mas...

— Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!...

O contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente, que cochilava num corredor da secretaria.

— Estou furioso! Por tua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!

— Por minha causa?

— Sim; quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto?

— Porque...

— Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua! Serventes não faltam!...

O servente não redarguiu.

O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois de jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.

O mísero animal que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe de seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...


Ilustração de Maurício Paraguassu.


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