PERDIDO - Conto de Loucura - João da Câmara



PERDIDO
João da Câmara
(1852 – 1908)

Quando ouviu ao longe, no campanário da freguesia, bater meia-noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um sussurro!... Tudo dormia àquela hora.
Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao ombro, aproximou-se da aldeia, que tinha de atravessar.
Tudo era em silencio; apenas, muito ao longe, junto à fonte, uma rã solitária coaxava tristemente.
A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas trinta ou quarenta casas, dispostas no fundo do vale, ao acaso, entre os choupos da beira do riacho e os últimos pinheiros da mata, que descia pela encosta em pujante vegetação sombria.
Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido à escuta, olho à espreita, com um pé para diante, o outro para traz, posto de bico, pronto para a retirada. E, quando tudo outra vez caia no primitivo silencio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobressaltado, de olhar desconfiado, como se fosse cometer um crime.
Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras, onde a lua, n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram deixando cair{65} grossos pingos d'agua sobre a rama dos pinheiros.
O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, fantásticos, em meio do sussurro da folhagem.
Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A chuva engrossara, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar, iriando, como perolas transparentes, as gotas d'agua, que tremeluziam no extremo das agulhas.
Era no alto da serra que o seu  tesouro junto pouco a pouco, desde tantos anos, fora escondido. Vinha aumentá-lo n'aquela noite, vinha palpá-lo, tomar-lhe o peso, tendo como únicas testemunhas de prazer tamanho o céu de temporal e os pinheiros a gemerem.
*
*      *
Subitamente estacou. Na clareira, ao meio do pinhal, era a choupana do guarda. Ouvira um choro de criança e uma voz triste de mulher a cantar.
O avarento aproximou-se pé ante pé.
— É fome que o pequeno tem, dizia a mulher com a voz cheia de lagrimas, interrompendo o canto. Se eu não comi... secou-se-me o leite!
E chorava.
Aquela mulher pedira-lhe esmola na véspera. Pedira-lhe esmola!... Tinha fome, dizia. E ele?... Tinha frio. E ele? O filho definhava-se, desde que o marido dela adoecera. Pedira-lhe esmola, como se lhe fora possível, a ele, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher!
Mas ao som daquela voz estremeceu, porque ela, doida, ofendida pela recusa, desgrenhada, d'olhos injetados, chamara-lhe ladrão, assassino, pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara.
— Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, hás de chorar, em cima da cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama... ladrão!
E só a ideia de poder um dia ser assassinado, roubado, que vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que lhe erriçou todos os pelinhos do corpo.
Afastou-se da choça, para longe afugentar aquela ideia soturna; mas, poucos passos andara, quando lhe pareceu ouvir o rachador[1], com uma voz fraca de tisico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome.
Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido à escuta, sentindo bater acelerado o coração.
Calara-se tudo na choça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal fora uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de sofrer.
Tentariam aqueles roubá-lo?
E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal fora, deixando o vento levar-lhe o chapéu esburacado e remoinhar-lhe nas longas farripas grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas silvas os tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma, agarrando-se aos pinheiros, que sacudidos o encharcavam, a correr, a correr por ali fora, até ao alto da serra, onde se deixou cair extenuado ao pé dum enorme pinheiro manso, seco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os longos braços de espectro.
Era ali o seu  tesouro.
*
*      *
Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos[2] úmidos, arquejando longamente. Depois, criando ânimo, mostrando força inacreditável em corpo tão franzino, com os braços ósseos erguendo alto a enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada, começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro.
Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova, meteu-lhe dentro as mãos, e, arquejante, fazendo um esforço supremo, com um “ah!” de vitória, puxou a si o cofre, que, rolando no chão, produziu um som criador do êxtase.
Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou o suor que lhe escorria pela testa.
Ali estava o seu  tesouro!... Seu!
E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimazinha no olho, abaixando-se para sopesá-lo.
Queriam roubá-lo, talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente duma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendê-lo, como nunca loba defendeu um filho.
Podia alguém ter desconfiado do lugar onde o escondera... Era muito noite, ainda teria tempo de sobra para levá-lo dali. Felizmente não lhe escasseavam forças. Querido tesouro da sua alma, junto moeda a moeda!
E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra alma lá dentro houvesse de perceber a dele; pedia-lhe, cheio de ternura que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de seu coração!
Os pinheiros úmidos tornavam balsâmica a atmosfera. Os raios oblíquos da lua quebravam as sombras das arvores nos troncos das outras e as sombras das copas bailavam, fantásticas, sobre os fetos molhados.
E ele ali, tão sozinho com seu  tesouro! Havia tanto que lhe não punha os olhos!
Sentando-se numa pedra, aproximando o cofre, com um esforço enorme, fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.
O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faíscas d'oiro. E o avarento, em êxtase, fechou os olhos, como encandeado por tanta luz!
*
*      *
O vento cessara de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, um grito de dor, estridulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, pelo eco da montanha empinada, partiu da choça do rachador.
Eram eles com certeza!... Eram os ladrões!
Ergueu-se abraçado ao  tesouro, transido de medo, suando frio. E depois, espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne nos esgalhos, caindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e levantando-se logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito, que, ameaçador, o perseguia.
E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.
Quando o luar começava esmorecendo,  ajoelhou, meio desfalecido, e com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova funda, onde, com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, donde estava dantes. Tapou tudo e, por instinto de precaução, puxou-lhe os fetos para cima. E abalou outra vez.
Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo, com os cabelos agarrados às faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se cair no catre nojento.
O dia rompia sereno. O vento abrandara e só por detrás da serra é que as nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paisagem, em que destacavam alvejantes as casarias. O sol erguia-se esplendido, enchendo os campos de joias cintilando no escrínio de verdura. A aldeia acordara num banho de luz, cheia de bulícios, de cantos de galos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma colunazinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do cheiro bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo os almoços.
*
*      *
Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delírio, apenas intervalado por curtos sonos cheios de pesadelos, um pesadelo ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquela noite agitada.
Viu-se percorrendo o pinhal imenso, que gemia e dançava lugubremente, estorcendo-se no temporal como um condenado na fogueira. Lembrou-se do grito que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas despegadas do sabugo, o corpo cheio de nodoas negras, os joelhos escalavrados.
Mas onde enterrara o seu ouro?
Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o sítio, a forma dalgum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no catre, rasgando com as unhas lascadas a carne magra do peito, tremulo, suando frio.
Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a boca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas às portas das casas, vigiando os pequenos, que brincavam no riacho, tostando ao sol os ventrezinhos redondos e as cabecinhas loiras.
E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali fora! Ali estava o seu  tesouro, ali debaixo duns fetos, cujas hastes se abriam à sombra duns pinheiros, fetos e pinheiros todos iguais naquela imensidade!
Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a mão pela testa com gestos de desespero, como tentando arrancar do cérebro a loucura, que, pouco a pouco, o invadia!
*
Quase noite foi dar à choça do rachador.
Lembrou-se então que dali partira o grito que o amedrontara e, escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando:
—Ladrões! Ladrões!
No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos, pálida, mirrada, as mãozinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita velha de seda roxa.
E o pai e a mãe, ao lado do cadáver do filho, choravam mansamente.
O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo último vislumbre da razão.
Recuou instintivamente e foi cair sobre um grande molho d'achas, dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgazeados, doido de todo e para sempre.
E por diante dele passavam bandos alegres de pintassilgos fugindo para os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que ele deixara nas silvas do pinhal, em quanto os gaios contentes, aquecendo-se ao último raio de sol daquela tarde de primavera, soltavam, pulando de ramo em ramo, grandes gargalhadas irônicas.

Imagem: Jean Pierre Alexandre (1817 – 1887).





[1] Lenhador.
[2] Samambaias.

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