OLENKA - Conto de Anton Tchekhov
OLENKA
Anton
Tchekhov
(1860
– 1904)
Olenka,
filha de Plemyanikov, assistente de colégio aposentado, estava sentada na
escada dos fundos de sua casa sem fazer nada. O dia era quente, as moscas
zuniam em volta dela, e era agradável pensar que a noite estava próxima. Nuvens
escuras de chuva amontoavam-se a leste do céu, trazendo, de vez em quando, um
hálito de umidade.
Kukin,
que morava na ala da mesma casa, estava em pé no meio do pátio, olhando para o
céu. Era gerente do Tivoli, um teatro ao ar livre.
—
Outra vez! — exclamou em desespero. — Chuva outra vez! Chuva, chuva, chuva!
Chuva todos os dias! Parece uma praga contra mim! Creio que seria melhor eu
meter a cabeça num laço de corda e acabar com a vida de uma vez. Isto está me
arruinando. Perdas enormes todos os dias.
Juntou as mãos num gesto dramático e continuou,
dirigindo-se a Olenka:
—
Que Vida, Olenka Semyonovna! É para fazer um homem chorar. Um homem trabalha,
faz o melhor que pode, tortura-se, passa noites em claro, pensando, pensando,
pensando na melhor maneira de fazer as coisas. E qual é o resultado? Dou ao
público a melhor das operetas, a melhor das pantomimas, artistas excelentes.
Mas acha que eles querem isso? Que dão algum sinal de apreciação? O público é
rude. O público é rústico. O público quer um circo, uma série de tolices, droga
por atacado. E depois há ainda o tempo. Veja! Chove quase todas as noites.
Começou a chover no dia dez de maio e continuou chovendo até junho. É
simplesmente insuportável. Não tenho plateia... Mas não tenho de pagar o
aluguel? Não devo pagar aos atores?
No dia seguinte, ao cair da tarde, o céu
anuviou-se de novo e Kukin disse com um riso histérico:
— Oh, eu não me incomodo! Que venha o pior!
Que se afogue todo o teatro e eu com ele! Está escrito que não devo ter sorte
neste mundo, nem no outro. Que os atores me processem e levem ao tribunal. Que
é o tribunal? E por que não a Sibéria e trabalhos forçados ou a forca? Há, há,
há!
No
terceiro dia, a mesma coisa.
Olenka
escutava Kukin em silêncio e com muita seriedade. Algumas vezes, os seus olhos
umedeciam-se de lágrimas. Por fim, o infortúnio de Kukin tocou-lhe a alma.
Enamorou-se dele. Kukin era um homem pequeno, esquelético, de face amarelada,
cabelo crespo penteado para trás e voz fina de tenor. As suas feições
enrugavam-se todas quando falava. Havia sempre desespero na sua fisionomia.
Contudo, despertou em Olenka um sentimento sincero e profundo. Aliás, ela
andava sempre apaixonando-se por alguém. Não podia viver sem amar alguma pessoa.
Amara seu pai doente, eternamente sentado numa cadeira de braços, num quarto
escuro, respirando com esforço. Amara sua tia, que vinha de Brianska, uma vez
ou duas por ano, visitá-los. E antes disso, quando aluna da escola de
preparatórios, amara o seu professor de francês. Era uma moça calma, boa,
compassiva e havia em toda ela uma extraordinária doçura, dando uma agradável
impressão de saúde. Olhando as suas faces cheias e rosadas, o seu colo alvo e macio,
com a verruga negra, e o bom sorriso ingênuo que brincava sempre na sua face
quando se dizia alguma coisa agradável, os homens pensavam: "Nada
má", e sorriam também. E as senhoras que a visitavam, no meio da conversa,
não podendo conter-se, tomavam-lhe as mãos e exclamavam num impulso de
simpatia: "Você é um amorzinho!"
A
casa, sua por herança e onde vivia desde que nascera, estava situada nos
arredores da cidade, na Estrada do Cigano, perto do Tivòji. Desde o anoitecer
até alta noite, ela ouvia a música do teatro e os estouros dos foguetes. E tinha
a impressão de que, no meio de tudo aquilo, podia ouvir Kukin rugindo, em sua
luta contra a sorte, tomando de assalto o seu maior inimigo, o público. O seu coração comovia-se suavemente, e não
podia dormir. Quando Kukin voltava a
casa, já quase ao amanhecer, Olenka batia na vidraça da janela, e, através das
cortinas, ele podia ver a sua face louçã, um ombro e o bondoso sorriso que ela
lhe dava. Kukin propôs-lhe casamento. Casaram-se. E quando ele se detinha observando-a,
vendo o seu colo alvo e os seus ombros roliços e vigorosos, batia palmas e
exclamava:
—
És um amor de pessoa!
Kukin
era feliz. Mas, no dia do seu casamento, choveu e aquela expressão de desespero
nunca deixou o seu rosto.
Os
dois viviam em muito boa harmonia. Olenka ficava na bilheteria, mantinha em ordem o teatro, tomava nota das
despesas e pagava os salários. As suas faces rosadas, com o seu sorriso bom e
ingênuo, como uma auréola em volta do seu rosto, podiam ser vistas através do
guichê, dos bastidores do teatro e do café em frente. Então Olenka começou a
dizer às suas amigas que o teatro era a maior, mais importante e mais essencial
coisa do mundo, que era o único lugar
onde se obtinha um divertimento verdadeiro e onde a gente se humanizava e
educava.
—
Mas acha que o público o aprecia? — indagava. — O que o público quer é um circo.
Ontem, Vanichka e eu demos ao público o "Fausto Burlesco” e quase todos os
camarotes estavam vazios. Se apresentássemos alguma tolice, o teatro teria
enchido completamente. Amanhã, daremos "Orfeu no Hades". Venha.
Repetia
tudo o que Kukin dizia sobre o teatro e os atores. Falava com desprezo do
público, de sua indiferença pela arte, do seu espírito rústico. Envolvia-se nos
ensaios, corrigia atores, observava a conduta dos músicos e, quando alguma crítica
desfavorável aparecia no jornal local, chorava e ia à redação discutir com o
redator.
Os
atores gostavam dela e chamavam-na "Vanichka e Eu"
e "Amorzinho de Pessoa". Olenka tinha pena deles e emprestava-lhes
pequenas quantias. Se a enganavam, ela nunca se queixava ao marido. Quando muito,
derramava algumas lágrimas.
No inverno, eles viviam muito bem. Tomavam um
teatro na cidade para todo o inverno e subalugavam-no por breves períodos a
companhias teatrais.
Olenka
engordava e andava sempre alegre, ao passo que Kukin emagrecia e amarelava cada
vez mais, queixando-se sempre das suas terríveis perdas, embora ganhassem muito
bem durante todo o in- verno. À noite ele tossia. Ela dava-lhe xarope de
medronho e água de lima, friccionava-o com água de colônia e agasalhava-o em
cobertas macias.
—
És um amor — dizia Olenka, com inteira sinceridade, alisando-lhe o cabelo. — És
um anjo.
Na
Quaresma, ele partiu para Moscou, a fim de reunir a sua companhia, e, durante
toda a sua ausência, ela não conseguiu dormir. Passava as noites sentada à
janela, olhando para as estrelas e comparava-se às galinhas que também ficam
inquietas e não dormem quando o seu galo não está na capoeira. Kukin ficou em
Moscou mais tempo do que esperava. Escreveu-lhe que voltaria na semana da
Páscoa e em suas cartas já falava dos arranjos para Tivoli. Mas, uma noite,
altas horas, antes da semana marcada para a sua chegada, ela ouviu umas
pancadas de mau agouro no portão da casa. Era como se batessem num tambor: bum,
bum. bum! Sonolenta, a cozinheira saiu descalça, chapinhando nos charcos do
jardim, e foi abrir o portão.
—
Abra, por favor! — disse alguém, numa voz cava e baixa. — Tenho um telegrama!
Não
era a primeira vez que Olenka recebia telegramas de seu marido, mas aquele, inexplicavelmente,
encheu-a de terror. Abriu-o com mãos trêmulas e leu:
"Ivan
Petrovich morreu subitamente hoje. Esperamos ordens imdtas para vuneral terça-feira".
Era
assim que estava escrito o telegrama: "vuneral" e outra palavra ininteligível,
"imdtas". Assinava o gerente da companhia de ópera.
—
Meu querido! — exclamou Olenka, cm soluços. — Vanichka, meu querido, meu amor.
Por que cheguei a conhecer-te? Por que te conheci eu e te amei? Por que
abandonaste a tua pobre Olenka, a tua pobre e infeliz Olenka?
Kukin
foi enterrado na terça-feira, no cemitério de Vagankov, em Moscou. Olenka
voltou para casa na quarta-feira e, apenas entrou no seu quarto, atirou-se
sobre o leito e rompeu em soluços, tão altos que podiam ouvi-la na rua e nos
quintais dos vizinhos.
—
A nossa querida! — diziam os vizinhos, benzendo-se. — Como sofre Olga
Semyonovna, a nossa pobre querida!
Três
meses depois, Olenka voltava da missa, triste e enlutada. A seu ludo caminhava
um homem, que também vinha da igreja. Chamava-se Vasily Pustovalov e era
gerente do depósito de madeiras do comerciante Habakayev. Usava chapéu de palha, colete branco, onde
luzia uma grossa corrente de ouro, e mais parecia um próspero fazendeiro do que
gerente de comércio.
—
Todas as coisas têm o seu curso traçado, Olga Semyonovna — vinha dizendo ele
suavemente, com simpatia na voz. — Se alguém que está ligado a nós e que nos é
caro morre, é porque Deus assim o determinou, e devemos lembrarmos disso e
resignar-nos.
Acompanhou-a
até o portão de sua casa e ali despediu-se e foi embora. Pareceu-lhe ouvir a
sua voz durante o dia inteiro e, quando fechou os olhos, teve imediatamente uma
visão da uma barba negra. Tomou grande simpatia por aquele homem. E era
evidente que ela também o impressionara, porque, pouco tempo depois, uma mulher
idosa, sua conhecida distante, veio visitá-la com o pretexto de tomar uma xícara
de café com ela. Apenas se acomodou à mesa, começou a falar de Pustovalov, como
era bom, como era sério, como qualquer mulher devia gostar de tê-lo por marido.
Três
dias depois, o próprio Pustovalov fez uma visita a Olenka. Ficou dez minutos
apenas e falou pouco, mas Olenka enamorou-se dele, enamorou-se tão perdidamente
que não dormiu a noite inteira, como se estivesse ardendo em febre.
No dia seguinte, foi ela à casa da velha
conhecida. Em pouco tempo, Olenka e Pustovalov estavam noivos e o casamento
teve lugar pouco depois.
Pustovalov
e Olenka viviam muito felizes. Ordinariamente, ele ficava no depósito de
madeiras até o almoço e depois saía a
negócios. Em sua ausência, Olcnka tomava o seu lugar no escritório até o
anoitecer, fazendo a escrita e despachando os pedidos.
—
Atualmente a madeira sobe vinte por cento cada ano — dizia ela aos fregueses e conhecidos.
— Imaginem que nós costumávamos comprar a madeira das florestas daqui. Agora Vanichka
é obrigado a ir todos os anos ao governo de Mogilev para obter madeira. E os impostos!
— exclamava, cobrindo as faces com as mãos, numa expressão de terror. — Os impostos
estão pela hora da morte!
Olenka tinha a Impressão de que negociava com
madeiras havia tanto tempo, que não havia coisa mais importante e essencial do
que a madeira. Havia qualquer coisa de comovente e encantador na maneira como
pronunciava as palavras "viga", "trave",
"prancha", "aduela", "ripa", "escora". À
noite, sonhava com enormes montanhas de tábuas e pranchas, longas e
intermináveis filas de vagões transportando a madeira, algures, para muito
longe da cidade. Sonhava com um regimento de traves, de 11 metros de atura e 12
centímetros de largura, que avançavam
eretas, em posição de combate, contra o depósito; que as traves, as vigas e as escoras se
chocavam umas contra as outras, emitindo estalidos de madeira seca, que se inclinavam
todas e se erguiam do novo, empilhando-se depois umas sobre as outras. O sonho
fazia Olenka chorar e Pustovalov dizia-lhe docemente:
—
Olenka, minha querida, que tens? Benze-te.
As
opiniões de seu marido eram as dela. Se ele achava que o quarto estava multo
quente, ela pensava a mesma coisa. Se ele dizia que o negócio estava paralisado,
ela repetia que o negócio estava paralisado. Pustovalov não gostava de
divertimentos e ficava em casa nos dias santos; ela fazia o mesmo.
—
Você está sempre em casa ou no escritório — diziam-lhe suas amigas. — Por que
não vai ao teatro ou ao circo, Amorzinho?
—
Vanichka e eu nunca vamos ao teatro — respondia ela em voz pausada. — Temos muito
que fazer e não podemos perder tempo com tolices. Que adianta ir ao teatro?
Aos
sábados, ela e Pustovalov iam às vésperas, e aos domingos e dias santos iam à
primeira missa. De volta para casa, caminhavam lado a lado, com uma expressão
de serenidade na face, exalando um cheiro agradável das roupas e ela fazendo um
ruído agradável de sedas. Chegando a casa, tomavam chá com pão de leite e
várias geleias, e depois comiam torta. Todos os dias, ao meio-dia, havia no
jardim e na rua em frente de sua casa um cheiro agradável de sopa de couve,
carneiro assado ou pato e, nos dias de jejum, de peixe. Ninguém podia passar
diante da casa sem que fosse acometido de um vivo desejo de comer. O samovar
estava sempre fervente na mesa do escritório e os fregueses eram mimoseados com
chá e biscoitos. Uma vez por semana, iam aos banhos e voltavam com as faces
vermelhas, caminhando lado a lado.
—
Estamos vivendo multo bem, graças a Deus — dizia Olenka a suas amigas. —
Quisera Deus que todos vivessem tão bem como Vanichka e eu.
Quando
Pustovalov ia ao governo de Mogilev comprar madeira, ela ficava terrivelmente
saudosa. Não conseguia dormir à noite e chorava. Às vezes, o médico veterinário
do regimento, Semirnov, um moço que morava na ala de sua casa, ia passar o
serão com ela, Contava-lhe histórias e os dois jogavam cartas. Isto a distraía. As histórias que mais lhe interessavam
eram as da própria vida do veterinário. Era casado, tinha um filho, mas
separara-se da mulher, porque ela o enganara, e agora odiava-a, mas mandava-lhe
quarenta rublos por mês para a manutenção do filho. Olenka suspirava, abanava a
cabeça, e tinha pena dele.
—
Então, até amanhã e que Deus o guarde — dizia ela, acompanhando-o até a porta com a vela. — Obrigada por ter vindo
ajudar-me a matar o tempo — falava, pausadamente, judiciosamente, imitando seu
marido.
Uma
vez, quando o médico veterinário já havia desaparecido atrás da porta, ela
disse-lhe, elevando a voz:
—
Sabe, Vladimir Platonich, o senhor devia fazer as pazes com sua mulher. Perdoe-lhe,
ainda que seja apenas pelo bem do seu filho. A criança compreende tudo, pode
ter a certeza.
Quando
Pustovalov voltou, ela falou-lhe, em voz baixa, do médico veterinário e sua infeliz
vida familiar, e os dois suspiraram e abanaram as cabeças e falaram sobre o
menino, que devia ter saudade do pai. Depois, por uma estranha associação de
ideias, os dois pararam diante das imagens sagradas, fizeram genuflexões e
oraram a Deus para que lhe mandasse filhos
E
assim os Pustovalov viveram durante seis anos completos, calma e pacificamente,
em perfeito amor e harmonia. Mas, certa feita, no inverno, Vasily Andreyich,
depois de tomar um pouco de chá muito quente, saiu para o depósito de madeiras
sem chapéu, apanhou um resfriado e adoeceu gravemente. Foi tratado pelos
melhores médicos, mas a doença aumentou e Vasily Andreylch morreu quatro meses
depois. Olenka ficou viúva outra vez.
—
Por que deixaste, meu amigo? — pranteou ela após os funerais. — Como viverei
agora sem ti, miserável criatura que sou! Apiedai-vos de mim, boa gente, pois
vivo sem pai, sem mãe, sozinha neste mundo!
Vestia
luto pesado e véu e deixou de usar chapéus e luvas. Quase não saía de casa, a
não ser para ir à igreja e visitar o túmulo de seu marido. Levava quase uma
vida de freira.
Seis
meses depois, tirou o véu e abriu as persianas. Começou a sair de vez em
quando, de manhã, para ir ao mercado, acompanhada de sua cozinheira. Mas como
ela vivia em sua casa, e o que lá acontecia, apenas podia imaginar-se. Podia-se
deduzir pelo fato de ter sido vista no seu pequeno jardim, tomando chá, em
companhia do veterinário, que lia o jornal em voz alta para ela, e por ter dito, uma vez, por ocasião de um
encontro com uma conhecida no correio:
—
A nossa cidade não tem uma inspeção veterinária adequada. Por isso há tantas
doenças. Constantemente, estamos ouvindo falar de gente que adoece devido ao
leite ou que é infeccionado por cavalos e vacas. A saúde dos animais domésticos
deve merecer tantos cuidados como a dos seres humanos. Repetia as palavras do
veterinário e tinha as mesmas opiniões sobre tudo. Era evidente que Olenka não
podia viver um ano inteiro sem algum amor, e dessa vez ela encontrara a sua
nova felicidade na sala de sua casa. Se se tratasse de qualquer outra mulher,
isto teria sido condenado; ninguém, entretanto, podia pensar mal de Olenka.
Tudo em sua vida era transparente. Ela e o veterinário nunca falavam da mudança
de suas relações. Tentaram ocultá-las, com efeito, mas sem sucesso, pois Olenka
não podia ter segredos. Quando os colegas do regimento do cirurgião foram
visitá-lo, ela serviu-lhes chá e depois o jantar, e falou-lhes da praga do gado
e do perigo dos açougues municipais da cidade. O cirurgião ficou muito
embaraçado e, depois que os seus colegas foram embora, tomou a mão de Olenka e
exclamou, irritado:
—
Não te disse que não falasses do que não entendes? Quando nós, médicos,
discutimos coisas, por favor, não te metas na conversa. Isto está se tornando
uma maçada.
Ela
olhou-o com espanto e alarme, e perguntou:
—
Mas, Volodichka, de que "devo" falar, então? E lançou-lhe os braços
ao pescoço, chorando, e rogou-lhe que não se zangasse. E os dois sentiram-se
muito felizes.
Mas
a sua felicidade foi de curta duração. O médico veterinário partiu com o seu regimento,
que foi transferido para um lugar distante, quase tão longe como a Sibéria, e
Olenka ficou só.
Desta
vez ficou completamente só. Seu pai morrera havia muito tempo e a sua cadeira
de braços estava na água furtada, coberta de poeira e sem uma perna. Olenka
emagreceu e tornou-se muito doméstica, e as pessoas que a encontravam na rua
não mais a olhavam como antes, nem sorriam para ela. Era evidente que os seus
melhores anos haviam passado definitivamente e que uma nova vida, dúbia e
insipida, ia começar para ela, uma vida em que nem era bom pensar.
À
noite, Olenka ficava sentada na escada de sua casa e ouvia a música e os
foguetes no Tivoli, mas aquilo não mais despertava nela qualquer emoção. Olhava
indolentemente para o pátio, sem pensar em coisa alguma, sem nada querer, e à
noite sonhava apenas com o pátio vazio. Comia e bebia sem vontade.
E
o pior era que já não tinha opiniões. Via e compreendia tudo o que se passava
em redor, mas não podia formar uma opinião a respeito. Não sabia sobre o que
falar. E como era terrível não ter opiniões! Seria, por exemplo, como se
víssemos uma garrafa, ou a chuva, ou um mujique
passar numa carroça; mas, o que vem a ser
uma garrafa, ou a chuva ou um mujique[1]
— o seu significado —, simplesmente não saberíamos dizer, nem por mil rublos. Nos tempos de Kukin e Pustovalov e, depois, do
médico veterinário, Olenka tinha explicações para tudo e dava a sua opinião
livremente e com convicção. Mas, agora, havia um vazio completo no seu coração,
no seu cérebro e no seu pátio. E tudo aquilo era pungente e amargo como fel.
Pouco
a pouco, a cidade foi crescendo em todas as direções. A Estrada do Cigano
tornou-se uma rua, e onde estivera o Tivoli e o depósito de madeiras havia
agora casas e uma série de ruas transversais. Como o tempo voava! A casa de
Olenka tornou-se sombria, o teto fuliginoso e o alpendre parecia prestes a
desmoronar. Bardanas e cardos cobriam o pátio. Olenka envelhecera e tornara-se
muito caseira. No verão, ficava longas horas sentada na escada de sua casa e na
sua alma havia um grande vazio, uma grande melancolia e amargura. Quando sentia
o hálito da primavera ou quando o vento assobiava nos sinos da catedral, uma
onda súbita de recordações lhe passava pela mente, o seu coração dilatava-se suavemente
e dois fios de lágrimas umedeciam-lhe as faces. Mas isto durava apenas um
momento. Depois, vinha de novo o vazio e este sentimento desolador: que adianta
viver? A gatinha negra, Bryska, passara roçando por ela, ronronando docemente,
mas as carícias do animalzinho deixavam-na insensível. Não era disso que ela
precisava. O que ela precisava era de um amor que absorvesse todo o seu ser,
toda a sua razão, toda a sua alma, que lhe desse ideias e um objetivo na vida,
que acalentasse o seu sangue que já começava a envelhecer. E desviava a gatinha
com irritação, dizendo:
—
Vai embora! Que estás fazendo aqui?
E
assim se passavam os dias e os anos, sem um único prazer, sem uma única
opinião. Tudo o que Marva, a cozinheira, dissesse, estava muito bem.
Num
dia quente de julho, ao anoitecer, quando o gado da cidade vinha chegando e
todo o pátio estava cheio de nuvens de poeira, bateram ao seu portão. Ela
própria foi abrir e ficou estupefata, vendo diante de si o veterinário Smirnov.
Trajava à paisana e o seu cabelo tinha-se tornado grisalho. Todas as velhas
recordações entraram em torrente na alma de Olenka e, sem dizer uma palavra,
apoiou a cabeça ao peito de Smirnov. Foi num estado de completa inconsciência
que entrou em casa e se sentou com ele a tomar chá.
—
Meu querido! — murmurou Olenka, trêmula de alegria. — Vladimir Platonych, de
onde te trouxe Deus?
—
Pretendo estabelecer-me aqui definitivamente — respondeu Vladimir Platonych.—
Renunciei ao meu posto e vim para aqui, a fim de tentar fortuna como homem
livre e levar uma vida sossegada. Além disso, é tempo de mandar o meu rapaz
para o ginásio. Ele já está crescido. Reconciliei-me com minha mulher...
—
Onde está ela? — perguntou Olenka.
—
No hotel, com o rapaz. Eu estou procurando casa.
—
Santo Deus, homem, fica na minha casa. Por que é que a minha casa não serve?
Oh, querido! Ora, eu não vou querer nenhum aluguel de ti! — exclamou Olenka, na
maior das excitações, e começou a chorar de novo. — Viverás aqui: a ala será
suficiente para mim. Meu Deus, que alegria!
No
dia seguinte, mandou pintar o teto, caiar as paredes, e Olenka, com os braços
arqueados, andava para um lado e para o outro no pátio, superintendendo o
serviço. A sua face era iluminada pelo seu velho sorriso. Todo o seu ser
rejuvenesceu, como se tivesse acordado de um longo sono.
A
mulher e o filho do veterinário chegaram. Era uma mulher magra, simples, de
expressão azeda. O filho, Sasha, pequeno para a sua idade de dez anos, era um
menino bochechudo, com olhos azul-claros e covinha nas faces. No momento em que
entrou no pátio, correu para a gatinha e todo o ambiente vibrou com o seu sorriso
feliz.
—
É sua a gatinha, tia? — perguntou a Olenka. — Quando tiver gatinhos, quero que
me dê um. Mamãe tem um terrível medo de ratos.
Olenka
conversou com ele, deu-lhe chá e, subitamente, sentiu um estranho calor no
peito e um suave apertar no coração, como se o garoto fosse dela.
À
noite, quando ele estudava as lições na sala de estar, ela olhava-o ternamente,
murmurando, baixinho:
—
Meu querido, meu amor. É uma criança tão inteligente, é tão bom olhar para ti!
—
"Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados" —
recitou Sasha.
—
Ilha é uma porção de terra... — repetiu ela. Era a primeira ideia afirmada com
convicção depois de muitos anos de silêncio e vazio mental.
Agora
já tinha opiniões e, ao jantar, discutiu com os pais de Sasha sobre a atual
dificuldade dos estudos ginasiais, mas como, afinal de contas, uma instrução
clássica era melhor do que um curso comercial, porque, quando uma pessoa se
formava pelo ginásio, tinha o caminho aberto para qualquer carreira liberal.
Podia escolher, à vontade, medicina, engenharia, ou qualquer outra coisa.
Sasha
começou a frequentar o ginásio. Sua mãe partiu de visita à sua irmã de Cracóvia
e nunca mais voltou. O pai estava ausente o dia inteiro inspecionando gado e,
algumas vezes, não voltava para casa durante três dias seguidos, de forma que Sasha
ficava inteiramente abandonado. Resolveu, pois, mudá-lo para junto dela.
Preparou-lhe um pequeno quarto contíguo ao seu.
Todas
as manhãs, ela entrava no quarto do rapaz e o encontrava dormindo a sono solto,
com uma mão debaixo do rosto, e tão quieto que parecia nem respirar. Que pena
ser obrigada a acordá-lo, pensava.
—
Sashenka — chamava docemente, com pesar —, levanta-te, querido. É hora de ir
para o ginásio. O rapaz levantava-se, vestia-se, dizia as suas orações e
sentava-se à mesa para tomar chá. Tomava três copos de chá, comia dois grandes
bolos e metade de um pão com manteiga. Devido ao sono, estava ainda um pouco mal-humorado.
—
Tu não aprendeste bem a tua fábula, Sashenka — dizia ela, olhando-o como se ele
estivesse partindo para uma longa jornada. — Que trabalho que dás. Deves
esforçar-te por aprender, querido, e dar atenção aos teus professores.
—
Oh, deixe-me em paz, por favor! — dizia Sasha.
Depois,
descia para a rua com o seu grande boné na cabeça e a maleta nas costas. Olenka
seguia-o, silenciosamente.
—
Sashenka! — chamava.
Ele
voltava-se e ela punha-lhe uma tâmara ou um caramelo na mão. Quando chegavam à
rua do ginásio, ele voltava-se, envergonhado de ser seguido por aquela mulher,
e dizia:
—É
melhor a senhora ir para casa, tia. Posso ir sozinho o resto do caminho.
Ela
detinha-se e acompanhava-o com o olhar, até que ele desaparecia nas portas no
ginásio.
Oh, como ela o amava! Nenhum dos seus outros
amores fora tão profundo. Nunca, até então, se entregara tão completamente, tão
desinteressadamente, tão alegremente como agora que os seus instintos maternais
foram todos despertados de uma vez. Por aquele rapaz, que não era seu, com as suas covinhas nas faces e o seu grande
boné, ela daria a própria vida, daria a
sua vida com alegria e lágrimas de transporte. Por quê? Sim, por quê?
Depois
de levar Sasha ao ginásio, voltava para casa calmamente, satisfeita, serena,
transbordando de amor. O seu rosto, que se tornara mais jovem naquele último
meio ano, sorria e brilhava. As pessoas que se encontravam com ela gostavam de
olhá-la.
—
Como vai você, Olga Semyonovna, querida? Como vão as coisas, querida?
—
Atualmente, o curso ginasial é muito difícil — dizia ela a suas amigas, no
mercado. — Não é brincadeira. Imaginem que ontem, no primeiro ano, deram de
exercício para fazer em casa uma fábula, para aprender de cor, uma tradução do
latim e um problema de matemática. Como é que uma pobre criança pode fazer tudo
isso?
E
falava do professor, das lições e dos livros, exatamente como Sasha. Às três
horas da tarde, almoçavam. À noite, preparam as lições juntos, e Olenka chorava
com Sasha por causa das dificuldades. Depois que o deitava, fica muito tempo
fazendo sinais da cruz sobre ele e murmurando orações. E, depois, quando ela
própria estava deitada, começava a imaginar o futuro distante e nebuloso,
quando Sasha já teria terminado os seus estudos e seria médico ou engenheiro, teria
urna grande casa própria, com cavalos e carruagem, casaria e teria filhos.
Finalmente, adormecia, pensando sempre nas mesmas coisas, com as faces úmidas
de lágrimas. A gatinha negra, deitada ao seu lado, fazia: "Mrr, mrr,
mrr".
Uma
noite, houve uma pancada súbita no portão. Olenka acordou em sobressalto,
assustada, com o coração palpitando fortemente. Meio minuto depois bateram de
novo.
"Um
telegrama de Cracóvia — pensou, toda trêmula. — Sua mãe quer que Sasha vá morar
com ela em Cracóvia. Oh, meu Deus!".
Estava
desesperada. Um frio de medo percorreu-lhe o corpo todo. Sentia que não havia
no mundo criatura mais infeliz. Mais outro minuto se passou, e depois ouviu-se
vozes. Era o veterinário que voltava do clube.
—
Graças a Deus! — pensou.
Pouco
a pouco, a calma voltou ao seu espírito e ao seu corpo. E deitou-se de novo,
pensando em Sasha, que dormia pesadamente no quarto contíguo e às vezes gritava
em sonho: "Você me paga! Fora daqui! Não amole!”.
Tradução de
autor desconhecido.
Fonte: “Vamos Ler”, edição
de 18 de agosto de 1941.
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