OS JUDEUS DE SUSHAN - Conto de Rudyard Kipling



OS JUDEUS DE SUSHAN

Rudyard Kipling

(1865 – 1936)

 

O mobiliário que eu acabava de comprar era bem pouco próprio para inspirar confiança.

As cadeiras perdiam os pés e as mesas os tampos ao menor empurrão.

Mas, tal qual estava, precisava pagá-lo e Ephraim, agente encarregado das cobranças pelo leiloeiro local, esperava-me na varanda com a conta na mão.

O criado muçulmano anunciara-o nestes termos: “Ephraim Jahudi”, isto é, Ephraim o Judeu.

Seria bom que os que creem na paternidade humana ouvissem o meu Elahi Buksh remover a segunda dessas palavras entre os dentes brancos, com o desprezo que o respeito à minha pessoa lhe permitia manifestar.

Pessoalmente, Ephraim tinha maneiras amáveis, tão amáveis que a gente não sabia explicar como decaíra até a profissão de cobrador.

Tinha um aspecto de carneiro que comia demais e sua voz estava de acordo com o seu físico.

No rosto, uma máscara imutável de espanto infantil.

Quando pagavam, parecia que admirava a fortuna do pagador. Quando o mandavam embora, mostrava na fisionomia não poder compreender aquela falta de coração.

Nunca um judeu teve menos característicos aparentes do povo temido. Ephraim usava chinelos de esparto e roupas de fazenda grosseira, tão horrivelmente cortadas que o mais audaz sargento inglês recuaria com receio diante dele.

Era vagaroso e comedido em linguagem, sempre atento a não contrariar ninguém.

Após várias semanas, Ephraim falou-me de seus amigos.

— Somos oito em Sushan e vamos ser dez. Então, pediremos para fundar uma sinagoga ao sínodo de Calcutá e a obteremos. Agora não temos sinagoga. Eu sou o sacerdote meu povo e a mim cabe o sacrifício de animais em holocausto. Acho que sou da tribo de Judá, mas não tenho certeza. Meu pai era da tribo de Judá e desejamos vivamente ter a nossa sinagoga, da qual serei o sacerdote.

Sushan é uma cidade importante do norte da Índia, com alguns dez mil habitantes, e aqueles oito homens do povo eleito viviam lá dentro, esperando que o tempo ou o acaso viessem completar sua colônia.

Myriam, a mulher de Ephraim; dois meninos; um órfão de seu povo; Jackael Israel, tio de Ephraim, um velho de cabeça nívea e Esther, sua esposa; um judeu de Cotch, um tal Hyem Benjamim; enfim, Ephraim, clérigo e açougueiro, eis aí todos os judeus de Sussan.

Habitavam a mesma casa, um dos extremos da cidade, entre montões de salitre, restos de tijolos, rebanhos de bichos e permanente nuvem de poeira levantada pela incessante passagem do gado que vai beber no rio.

À tarde, os garotos da cidade corriam para lá, a fim de soltar em liberdade papagaios. Os filhos de Ephraim mantinham-se afastados, apreciando os brinquedos de cima do telhado, mas sem nunca descer à rua.

Atrás da casa havia um pequeno recinto murado, onde Ephraim preparava as refeições dos correligionários, segundo o ritual judaico.

Certa vez, a porta grosseira foi de repente arrancada por um choque vindo de dentro e, então, se viu o pacífico cobrador de narinas dilatadas, lábios arreganhados, mostrando os dentes, segurando com esforço um carneiro furioso.

Estava de tal modo estranho que nem lembrava as chinelas e as roupas horríveis de todo o dia, e tinha entre os dentes uma faca nua.

Lutando com o animal, entre as quatro paredes, respirava com dificuldade, rumorosamente, parecendo ter mudado de natureza. Quando acabou de sangrar o carneiro, viu que a porta ficara aberta e fechou-a depressa, enquanto os filhos, trepados no telhado, espiavam a cena com olhos horrorizados.

Não seria agradável ver novamente Ephraim no exercício de cena de suas funções sacerdotais.

Chegou o verão em Suhan e fez endurecer como ferro o solo calcado da rua dos judeus. Houve uma epidemia na cidade.

— Ela não nos atingirá — dizia Ephraim, com ar confidencial. — Antes do inverno, teremos nossa sinagoga. Meu irmão virá de Calcutá com a mulher e os filhos e, então, serei o sacerdote.

O velho Jackael Israel arrastava-se por vezes até fora de casa, nas noites abafadas, para sentar-se nos montões de detritos e ver passarem os cadáveres levados para o rio.

Ela não se aproximará de nós — murmurava o ancião — porque somos o povo de Deus e meu sobrinho será o pontífice da sinagoga. Que morram todos, pois!

Reentrava em seu passo incerto e fechava a porta, isolando-se dos gentios.

Mas Myriam, mulher de Ephraim, olhava pela janela o desfile dos mortos sobre os esquifes e tinha medo.

Ephraim consolava-a, mostrando-lhe a perspectiva da futura sinagoga. Depois, ia fazer as suas cobranças como de costume.

Os dois meninos morreram numa mesma noite e foram enterrados de madrugada por Ephraim.

As declarações desses falecimentos não figuraram jamais nos registros da cidade.

— Esta dor é a minha dor — dizia Ephraim.

E julgava essa razão suficiente para não cumprir as posturas sanitárias de um grande império florescente e bem administrado.

O jovem órfão, que vivia da caridade de Ephraim e sua mulher, não era capaz de gratidão. Devia ser um vil bandido.

Pediu tanto dinheiro quanto seus protetores lhe puderam dar e acabou por fugir de casa.

Uma semana depois da morte dos filhos, Myriam saiu à noite da cama e vagueou pelo campo para encontrá-los.

Ouvia-os gritar atrás de cada moita, ou via-os afogarem-se em cada lagoa, e suplicava aos carreiros pelas estradas que lhe não roubassem as crianças.

Pela manhã, o Sol inundou de raios sua cabeça nua. Ela meteu-se no frescor dos trigais úmidos para deitar-se e nunca mais reapareceu, embora Hyem Benjamim e Ephraim, durante duas noites, a houvessem procurado.

A expressão de paciência e assombro mais se acentuou no rosto de Ephraim, mas logo achou uma explicação para tudo:

— Somos tão poucos e os outros tantos que nosso Deus bem nos poderá ter esquecido.

Na casa do extremo da cidade, os velhos Jackael Israel e Esther murmuravam, porque não havia mais ninguém para ocupar-se deles e afirmavam que Myriam fora infiel ao seu povo.

Ephraim saía para as cobranças e, à noite, fumava em companhia de Hyem Benjamim até o dia em que este morreu, ao alvorecer do dia, tendo antes pago o que devia a Ephraim.

Jackael Israel e Esther passavam o dia inteiro na solitária casa vazia e, quando Ephraim chegava da rua, choravam com a facilidade com que se chora na sua idade e acabavam por dormir.

Oito dias mais tarde, Ephraim, cambaleando sob o peso de enorme trouxa de roupa e utensílios de cozinha, seguiu com os dois velhos para a estação ferroviária, onde a multidão e a confusão os fizeram choramingar.

— Regressamos a Calcutá — disse Ephraim, com Esther agarrada ao seu braço. — Os nossos lá são mais numerosos e aqui a casa está vazia.

Ajudou Esther a subir ao vagão e depois veio dizer-me:

— Se fôssemos dez, eu teria sido o pontífice da sinagoga. Mas Deus, decerto, nos esqueceu.

Os sobreviventes da colmeia destruída deixaram a estação e partiram para o sul, enquanto um oficial inferior, folheando os livros da biblioteca, assobiava sozinho os “Dez Negrinhos”.

Mas a canção tinha um tom lúgubre de marcha fúnebre.

Era o funeral dos judeus de Sushan.

 

 

Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “Leitura Para Todos”, edição de agosto de 1926

 


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