CHARLOTTE CORDAY - Narrativa Histórica - Thomas Carlyle
CHARLOTTE CORDAY
Thomas
Carlyle
(1795
– 1881)
Na
sala de espera do Palácio da Intendência, onde vêm e vão, atarefados, os
deputados, uma jovem, acompanhada por um velho criado, despede-se grave e
gentilmente do deputado Barbaroux. Figura normanda majestosa, vinte e cinco
anos, o rosto fogoso e sereno. Chama-se Charlotte Corday. Até aqui, quando
ainda existia a nobreza, chamava-se de Armans. Barbaroux deu-lhe uma carta para
o deputado Duperret — aquele que uma vez, na efervescência, desembainhara a
espada. Parece que vai a Paris com algum recado. "Era uma republicana
antes da revolução e nunca lhe faltou energia". Nesta formosa figura de
mulher há mesa e decisão. "Por energia ela entende o espírito que guia
aqueles que se sacrificam pela pátria". Esta formosa Charlotte surgiu de
repente como uma estreia da sua recôndita tranquilidade; cruel e formosa como
um esplendor — meio angélico e meio diabólico — para brilhar um momento e num momento se extinguir;
para se conservar na memória através dos séculos, tão brilhante e perfeita ela
era! A História, deixando Cimérios, Ligas estrangeiras, o fervilhar confuso de
25 milhões de homens no interior, olhara fixamente para a formosa aparição duma
Charlotte Corday; notara para onde vai Charlotte, como essa pequena vida brilha
tão radiante um momento e desaparece tragada pela noite.
Com
carta de apresentação de Barbaroux e uma ligeira bagagem, vemos Charlotte na
terça-feira, 9 de julho, sentada na diligência de Caen, com destino a Paris.
Ninguém se despede dela nem lhe deseja boa viagem. Seu pai recebera umas linhas
dizendo que foi para a Inglaterra e que lhe deve perdoar e esquecê-la. A
sonolenta diligência arrasta-se pela estrada ao som duma soporífica conversa
sobre política e louvores à Montanha[1],
na qual ela não toma parte. Uma noite, um dia e mais uma noite passaam. Na
quinta-feira, pouco antes do meio-dia, estamos na Ponte de Neuilly; eis Paris
com os seus mil zimbórios negros, o alvo e propósito da sua viagem. Chegada à
Estalagem da Providência na Rue des Vieux Augustins, Charlotte pede um quarto,
apressa-se em deitar-se e dorme durante toda a tarde e toda a noite até a manhã
seguinte.
De
manhã, entrega a sua carta a Duperret. Dizia respeito a uns certos papéis de
família que estão nas mãos do ministro do Interior e de que precisa uma velha
amiga de Charlotte, freira num convento em Caen; os quais Duperret a ajudará a
obter; era, pois, este o negócio que trazia Charlotte a Paris? Acabou de tratar
de tudo no decorrer de sexta-feira: — e, entretanto, ela não falava na partida.
Viu e silenciosamente investigou muitas coisas. Viu a Convenção em toda a sua
realidade; e viu o que era a Montanha. O rosto de Marat é que ainda não pudera
ver, porque estava em casa doente.
No
domingo de manhã, às oito horas, comprou uma grande faca de bainha no Palais
Royal. Seguiu diretamente para a Piace des Victoires, e tomou um trem de praça
à Rua da Escola de Medicina n.° 44. É a residência do cidadão Marat! O cidadão
Marat está doente, não pode receber, o que parece desapontá-la enormemente.
Então o seu negócio é com Marat? Desgraçada e formosa Charlotte; desgraçado e
esquálido Marat! De Caen no extremo ocidente, de Neuchatel no extremo oriente,
aqueles dois seres atraem-se, têm os dois estranho acaso, um negócio a tratar
um com o outro. Charlotte de volta à sua estalagem, escreve um curto bilhete a
Marat, dizendo-lhe que vem de Caen, da sede da revolta, que deseja ardentemente
vê-lo e que lhe dará um modo de prestar um grande serviço à França.
Não
teve resposta. Charlotte escreve outro bilhete ainda mais insistente e vai ela
própria levá-lo às sete horas da noite.
Mais
uma semana acabou para os fatigados trabalhadores de todos os dias; a grande
Paris ferve e circula segundo os seus muitos vagos desejos.
É
uma tarde amarela de julho, o dia 13, aniversário da véspera da Bastilha, quando
"o Sr. Marat", havia quatro anos, no meio da multidão em Pont Neuf,
muito astutamente, exigiu àquela companhia de hussards de Besenval, que estava com tão amigáveis disposições,
"que desmontasse e entregasse as armas", tornando-se, assim, notável
entre os patriotas. Quatro anos, que caminho andado! E assentado agora, 7:30h
pelo relógio, suando num banho quente, muito atormentado, doente da febre
revolucionária — qual era a sua outra doença, esta história prefere não
mencionar. Estava excessivamente doente e abatido, pobre homem, não tendo mais
de onze vinténs e meio em papel como dinheiro de pronto. No seu banho quente, um
forte banco de três pés para ir, no entanto, escrevendo, e uma esquálida
lavadeira — chamemos-lhe assim: é esta toda a sua casa civil, na Rua da Escola
de Medicina. Aqui e só aqui o levou o seu caminhar. Não ao reino da Fraternidade
e de perfeita Felicidade; mas, decerto, a caminho dela?
—
Escuta! Batem outra vez!
Uma
voz suave de mulher que se recusa a ir-se embora; é a cidadã que quer fazer um
serviço à França. Marat reconhece que é a mulher que lhe escreveu e grita:
—
Deixa-a entrar.
É
concedida a entrada.
Charlotte
Corday é admitida.
—
Cidadão Marat, venho de Caen, da Sede da revolta, desejo falar consigo.
—
Sente-se, minha filha. Que estão os traidores fazendo em Caen? Quem são os
deputados em Caen?
Charlotte
diz os nomes de alguns deputados.
—As
suas cabeças cairão dentro de quinze dias — grasna o ardente amigo do povo,
agarrando o seu canhenho para escrever: Barbaroux, Pétion, escreve ele, deixando
ver os braços nus. E voltando-se no banho: — Pétion e Louvet, e...
Charlotte
tira a faca da bainha, enterra-a dum golpe firme no coração do escrevedor.
—À
moi, chère amie!
Nada
mais pôde dizer ou gritar aquele que a morte sufocara. A serviçal lavadeira
entrou correndo, mas já não havia nem amigo do povo nem amigo da lavadeira; a
sua vida foge num gemido indignado e refugia-se nas sombras da eternidade.
Assim
acabou Marat, o amigo do povo; o solitário estilita foi atirado abaixo do seu
pedestal — para onde? Só o sabe
aquele que o criou. A patriótica cidade de Paris pode ressoar mil vezes a sua
dor e a sua angústia; e a patriótica França mandar-lhe o eco dos seus gritos; a
Convenção, onde "Chabot, pálido de terror, declara que vão ser todos
assassinados", pode decretar-lhe as honras do Panteon, e funerais
públicos, e as cinzas de Mirabeau, afastarem-se para lhe dar lugar; as Sociedades
Jacobinas, em lastimosos discursos, definindo o seu caráter, igualam-no àquele
a quem julgam honrar, chamando-lhe o bom Sansculotte
— o nome dele não o dizemos aqui. Também edificam uma capela na Praça do Carrossel
para a urna onde está o seu coração; dão às crianças recém-nascidas o nome de
Marat; e Hawkens diz como coseu montanhas de gesso em bustos horrendos; David
pintou-lhe o retrato e a cena da sua morte; e podem realizar-se todas as outras
apoteoses que o gênio humano imagine, mas Marat nunca mais voltará à luz do
sol. Só lemos no velho jornal, Le
Moniteur, uma circunstância que despertou a nossa simpatia; um irmão de Marat
vem de Neuchatel pedir à Convenção que lhe dê o mosquete que pertenceu ao falecido
Jean-Paul Marat. Porque mesmo Marat tinha um irmão e afeições naturais; e houve
tempo em que esteve envolto em faixas infantis e dormiu num berço. E, oh, vós,
filhos dos homens! Dizem que uma irmã
dele ainda vive hoje em Paris!
Quanto
a Charlotte Corday, a sua tarefa acabou e a recompensa está próxima e é certa.
A chère amie e umas vizinhas
querem-se atirar a ela; para o evitar, deita ao chão alguns móveis e
entrincheira-se atrás até que cheguem os gendarmes, e, então, entrega-se
serenamente, e serena vai para a prisão da Abbaye. Só ela estava tranquila,
toda Paris ressoava de espanto, de raiva ou de admiração em volta dela. Duperret
foi preso por sua causa, os seu papeis selados — o que podia levar a
consequências desastrosas—, Fauchet, também preso, apesar de nem mesmo ter
ouvido falar dela. Charlotte, acareada com estes dois deputados, louvou a grave
firmeza de Duperret e censurou o desalento de Fauchet.
Na
quarta-feira de manhã foi vista no Palácio da Justiça e no Tribunal Revolucionário,
bela e serena. Chama ela a essa data "o quarto dia da preparação para a paz".
Um estranho e inqualificável murmúrio agitou a multidão ao vê-la. Não se pode
saber de que caráter. Tinville traz o ato de acusação e os papeis; o cutileiro
de Palais Royal depõe que lhe vendeu a faca de bainha.
—
Todos esses pormenores são inúteis — interrompeu Charlotte. — Fui eu que matei
Marat.
—
Por instigação de quem?
—
De ninguém.
—
O que a levou então a isso?
—
Os seus crimes! Matei um homem para salvar cem mil; matei um infame para salvar
inocentes; um animal feroz para dar descanso ao meu país. Era republicana antes
da revolução; e nunca me faltou energia. Está, pois, tudo dito.
O
público contempla, espantado; os pintores tiram-lhe à pressa o retrato e Charlotte
não desaprova; os homens de lei continuam a suas formalidades. A sentença é:
morte como assassina. Ao seu advogado agradece com frases meigas e estilo
empolado e clássico. Agradece ao padre que mandaram, mas diz não precisar de
confissão nem de qualquer auxilio espiritual ou material que lhe pudesse dar.
Nessa mesma tarde, pelas sete e meia, sai dos portões da Concièrgerie, atravessando
a cidade fremente, o carro fatal onde vai sentada uma formosa criatura envolta
na manta vermelha dos assassinos; tão linda, tão serena, tão cheia de vida —
indo para a morte —, só no meio do mundo. Muitos tiram o chapéu saudando-a com
reverencia; pois que coração haverá que não se compadeça? Outros bramem e
rugem. Adam Lux, de Mentz, declara-a superior a Brutus; diz que seria belo
morrer com ela; parecia ter enlouquecido esse rapaz. Na Praça da Revolução, o
rosto de Charlotte conserva o mesmo sorriso plácido. Os carrascos querem-lhe
amarrar os pés; ela, julgando ser um insulto, resiste; quando lhe explicam,
submete-se alegre, pedindo desculpa. Estando tudo pronto agora, tiram-lhe o lenço
do pescoço para o último ato, sobe-lhe a face, estendendo-se ao pescoço, o
rubor do pudor virginal, que ainda lhe tingia o rosto, quando o carrasco levantou
a cabeça decepada para a mostrar ao povo. “É a pura verdade", diz Forster,
“que ele a insultou ainda com uma bofetada, porque o vi eu com os meus próprios
olhos; foi mesmo preso pela polícia por isso".
Assim
foi o que houve de mais belo e o que houve de mais imundo se encontraram e se
extinguiram. De súbito, desapareceram João Paulo Marat e Maria Ana Charlotte
Corday.
*
Esta
é a história de Charlotte Corday; a mais definida e completa, a mais angélica e
diabólica. Como uma estrela!
Adam
Lux, meio delirante, volta para casa para arremessar a sua apoteose ao papel e
à imprensa: para propor que lhe elevem uma estátua com esta inscrição: Superior a Brutus.
Os
amigos mostram-lhe o perigo, Lux não atende, e pensa que seria belo morrer com
ela.
Tradução de autor desconhecido.
Fonte: Almanak do
Correio da Manhã, 1943, nª 0001
Imagem: Paul
Jacques Aimé Baudry.
[1]
Montanha: durante a Revolução Francesa, era um grupo político que, na Convenção Nacional, exibia-se favorável à República e contrário
aos Girondinos.
Heroína...!
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