O GOVERNADOR E O ESCRIVÃO - Conto de Washington Irving

 


O GOVERNADOR E O ESCRIVÃO

Washington Irving

(1783 – 1859)

Tradução de Paulo Soriano

 

Antigamente, governava Alambra um velho e intrépido cavaleiro que, por haver perdido um braço na guerra, era comumente conhecido pela alcunha de El Gobernador Manco, ou seja, “O Governador Maneta”. De fato, sentia-se orgulhoso de ser um velho soldado, usava bigodes torcidos que lhe chegavam aos olhos, um par de botas de campanha e uma espada de Toledo do tamanho de um espeto, com um lenço de bolso amarrado na guarda da empunhadura.

Ele era, além disso, extremamente orgulhoso e meticuloso, cioso de sua dignidade e de todos os seus privilégios. Sob seu domínio, as imunidades da Alambra, como residência e domínio real[1], eram rigorosamente cumpridas. Ninguém tinha permissão de entrar na fortaleza com armas de fogo, ou mesmo com uma espada ou bastão, a menos que se tratasse de pessoa de certa distinção. E todo cavaleiro era obrigado a desmontar no portão e conduzir seu cavalo pelas rédeas. Como a colina de Alambra se ergue bem no meio da cidade de Granada, constituindo-se, por assim dizer, uma autarquia em plena capital, era sempre um incômodo ao capitão-geral, que governava toda a província, ter um imperium in imperio, uma cidadela autônoma no próprio centro de seus domínios. E tal circunstância, no presente caso, se tornava sobremodo irritante, tanto pelo escrupuloso zelo do velho governador — que se inflamava ante a menor questão de autoridade e jurisdição, quanto pela índole pervertida dos quanto que, pouco a pouco, se aninhavam dentro dos limites da fortaleza, como se em um santuário, e dali punham em prática todo um sistema de saques e gatunagem à custa dos habitantes honestos da cidade.

Existia, pois, uma perpétua e ardente contenda entre o capitão-geral e o governador, ainda mais virulenta por parte deste último, na medida em que a menor de duas potências vizinhas é sempre a mais zelosa de sua dignidade. O majestoso palácio do capitão-geral ficava na Plaza Nueva, ao pé da colina de Alambra, e na praça havia sempre uma multidão: destacamento de guardas, servos e funcionários da cidade. Um baluarte saliente da fortaleza dominava o palácio e a praça pública, que se postavam em frente a ele; e neste baluarte o velho governador, ocasionalmente, se pavoneava de um lado para o outro, com sua espada de Toledo cingida à cintura, mantendo um olhar cauteloso sobre o seu rival, como um falcão vigiando a sua presa num ninho construído sobre uma árvore seca.

Sempre que o governador descia à cidade, fazia-o em grande pompa. Desfilava a cavalo, cercado por seus guardas, ou metido em sua carruagem oficial, um trambolho espanhol antigo e pesado de madeira entalhada e couro dourado, puxado por oito mulas, com a escolta de cavalariços e lacaios a pé. Malgrado, nestas ocasiões, ele se jactasse da impressão de respeito e admiração que suscitava nos que o viam como vice-regente do rei, os trocistas de Granada, especialmente aqueles que perambulavam pelo palácio do capitão-geral, zombavam daquele ridículo desfile e, em alusão à índole delinquente de seus súditos, saudava-o com o título de "o rei dos mendigos”.

Uma das fontes mais fecundas de disputa entre esses dois valentes rivais se radicava no direito, reivindicado pelo governador, de se permitir a passagem, isenta de impostos, de tudo o que fosse destinado ao seu uso e de sua guarnição. Aos poucos, esse privilégio deu origem a um grande contrabando. Um ninho de contrabandistas instalara-se nas choupanas da cidadela e nas numerosas cavernas da vizinhança, realizando um próspero negócio sob a conivência dos soldados da guarnição.

Isto despertou a vigilância do capitão-geral. Ele consultou seu assessor jurídico e factótum, um escrivão astuto e denodado, que se alegrou com a oportunidade de atanazar o velho potentado de Alambra e envolvê-lo num labirinto de sutilezas legais. Aconselhou o capitão-geral a insistir no direito de examinar todos os comboios que transpusessem os portões de sua cidade, e redigiu para ele uma longa carta em defesa deste direito. O Governador Maneta era um velho soldado, franco e agressivo, que odiava mais os escrivães do que o próprio diabo; e este, em particular, mais do que todos os escrivães juntos.

— O quê! — disse ele, retorcendo ferozmente os bigodes. — Será que o capitão-general mandou o seu escrivão me criar embaraços? Vou mostrar que um velho soldado não se deixa intimidar com tais artimanhas.

Pegou a pena e rabiscou uma pequena carta com a caligrafia irregular, na qual, sem se dignar a fundamentá-lo, insistia no direito de livre trânsito e ameaçava punir qualquer funcionário da alfândega que se atrevesse a deitar a mão insolente num comboio protegido pelo pendão de Alambra.

Enquanto esta questão era debatida entre os dois pragmáticos potentados, sucedeu, certo dia, que uma mula, carregada de mantimentos destinados à fortaleza, chegou à porta de Genil, pela qual tinha de passar e, depois, atravessar um dos bairros da cidade, a caminho da Alambra. Liderava o comboio um velho cabo mal-humorado, que há muito tempo servia ao governador e era por este estimado; um veterano tão enferrujado e temperado quanto uma velha lâmina de Toledo.

Ao se aproximar do portão da cidade, o cabo colocou a bandeira de Alambra na sela de carga da mula e, empertigando-se numa perfeita perpendicular, avançou com a cabeça erguida, mas com o olhar esguelhado e cauteloso de um vira-lata que atravessa um terreno hostil, pronto para latir ou rosnar.

— Quem vem lá? — disse a sentinela no portão.

— Um soldado de Alambra! — respondeu o cabo, sem voltar-lhe a cabeça.

— O que está trazendo?

— Provisões para a guarnição.

— Siga em frente!

O cabo marchou em frente, seguido pelo comboio. Mal havia avançado alguns passos, um pelotão de oficiais da alfândega saiu correndo do posto de pedágio para abordá-los.

— Alto lá! — gritou o líder. — Tropeiro, pare e abra esses fardos.

O cabo deu meia-volta e se preparou para a batalha.

— Respeite a bandeira da Alambra — disse ele. — Este carregamento é para o governador.

— Pouco me importam o seu governador e a sua bandeira. Tropeiro, pare, que eu estou ordenando.

— Detenha o comboio por sua conta e risco! — gritou o cabo, engatilhando o mosquete. — Tropeiro, prossiga!

O tropeiro desferiu um forte golpe em seu animal; o oficial da alfândega adiantou-se e agarrou o cabresto; então, o cabo apontou-lhe a arma e o matou com um tiro.

Formou-se prontamente um alvoroço na rua.

O velho cabo foi preso e, depois de se submetê-lo a diversos chutes, murros e bordoadas, que geralmente são dados de chofre pela turba na Espanha, como um antegozo das subsequentes penalidades legais, acorrentaram-no e levaram-no ao cárcere da cidade, enquanto os seus companheiros eram autorizados a prosseguir com o comboio para Alambra, depois de uma rigorosa revista.

Uma grande e colérica comoção dominou o governador quando soube do insulto à sua bandeira e da captura de seu cabo. Por algum tempo, ele destilou a sua raiva pelos salões de  Alambra, incensando os bastiões com os vapores de seu rancor, ao passo em que mirava o palácio do capitão-general com fogo e espada nos olhos. Quando a primeira ebulição de sua cólera arrefeceu, enviou uma mensagem exigindo a libertação do cabo, pois só a ele pertencia o direito de julgar os delitos cometidos por aqueles que estavam sob seu comando. O capitão-general, auxiliado pela pena do regozijado escrivão, respondeu longamente, argumentando que, como o crime havia sido cometido dentro dos muros de sua cidade, e contra um de seus funcionários civis, o incidente submetia-se claramente à sua jurisdição. O governador replicou, reiterando o seu pedido; o capitão-general ofereceu uma tréplica ainda mais longa e filigranada; o governador tornou-se mais veemente e peremptório em suas exigências e o capitão-geral mais frio e copioso em suas respostas; até que o velho soldado, com coração de leão, rugiu colericamente ao se ver assim enredado nas malhas da controvérsia jurídica.

Enquanto o sutil escrivão se divertia à custa do governador, o processo instaurado contra o cabo seguia o seu curso. O estreito calabouço da prisão, onde haviam encerrado o velho homem, era guarnecida de uma única janela gradeada, e era por ela que ele exibia o seu semblante para receber o consolo de seus amigos.

Uma montanha de testemunhos escritos, conforme a prática forense espanhola, foi diligentemente acumulada pelo infatigável escrivão; o cabo, afogado naqueles depoimentos, foi condenado por homicídio e sentenciado à forca.

Foi em vão que o governador enviou protestos e ameaças de Alambra. Aproximava-se o fatídico dia, e o cabo foi levado a uma capilla — a capela da prisão —, como sempre se fazia com os réus na véspera da execução, para que eles pudessem meditar sobre seu fim iminente e se arrepender de seus pecados.

Vendo as coisas atingindo tal extremo, o velho governador decidiu cuidar do caso pessoalmente. Com esse propósito, ordenou que tirassem a sua carruagem oficial e, cercado por seus guardas, desceu ruidosamente a avenida de Alambra, rumo à cidade. Dirigiu-se à casa do escrivão e mandou chamá-lo ao portal.

Os olhos do velho governador fagulharam como brasa quando viram avançar o sorridente homem da lei,  que vinha com um ar exultante.

— Ouvi dizer — exclamou — que o senhor está prestes a executar um dos meus soldados!

— Tudo de acordo com a lei; tudo em estrita conformidade com os ditames da justiça — respondeu o autossuficiente escrivão, sorrindo e esfregando as mãos. — Posso mostrar a Vossa Excelência os testemunhos constantes dos autos.

— Traga-os aqui — disse o governador.

O escrivão entrou apressado em seu escritório, feliz por ter mais uma oportunidade de mostrar sua engenhosidade à custa do obstinado veterano. Voltou com uma carteira cheia de papéis e começou a ler um longo depoimento com volubilidade profissional. A essa altura, uma multidão havia se reunido, e tudo escutava com o pescoço estendido e a boca aberta.

— Faça o favor, senhor, de entrar na carruagem para que, longe desta multidão pestilenta, eu possa escutá-lo melhor — disse o governador.

O escrivão entrou na carruagem. Num piscar de olhos, a porta se fechou e o cocheiro estalou o chicote. Mulas, carruagem, guardas — tudo partiu a toda velocidade, deixando atônita e boquiaberta a multidão. E não se deteve o governador até enfiar a sua presa num dos calabouços mais bem fortificadas de Alambra.

Então enviou ao capitão-geral uma bandeira branca, no estilo militar, propondo uma troca de prisioneiros: o cabo pelo tabelião. Ferido em seu orgulho, o capitão-geral respondeu com uma desdenhosa recusa, e imediatamente mandou erigir uma forca, alta e sólida, no centro da Plaza Nueva, para a execução do cabo.

— Ah! — disse o Governador Maneta — Então este é o jogo?

Ele deu as suas ordens e, imediatamente, uma forca foi erguida na beirada do grande e saliente bastião que dava para a praça.

— Agora — disse ele, em uma mensagem ao capitão-general —, execute o meu soldado quando quiser; mas, assim que o cabo for enforcado na praça, olhe para cima e veja, pendurado contra o céu, a oscilar, o seu escrivão.

O capitão-geral manteve-se inflexível. As tropas desfilaram na praça, rufaram os tambores, o sino tocou. Uma imensa multidão de curiosos se reuniu para assistir à execução. A seu turno, o governador, no bastião, pôs em desfile a sua guarnição, enquanto o dobre fúnebre ecoava da Torre de la Campana, anunciando a morte do escrivão.

A esposa do escrivão abriu passo, em meio da multidão, com toda a sua prole de escrivães embrionários em seus calcanhares, e, jogando-se aos pés do capitão-geral, implorou-lhe que não sacrificasse a vida de seu marido, seu bem-estar e o de seus numerosos filhos, por uma questão de puro orgulho.

— Pois — disse ela — vossa excelência conhece muito bem o governador para não duvidar de que ele cumprirá a ameaça, caso o soldado seja enforcado.

As lágrimas e lamentações da mulher e os clamores de sua prole imatura venceram a resistência do capitão-geral. Enviaram o cabo a Alambra, sob escolta, ainda com a roupa de enfocado, como um frade encapuzado, mas com a cabeça erguida e férreo semblante. E, conforme os termos da troca, exigiram o escrivão. O antes vívido e autossuficiente homem da lei foi retirado do calabouço mais morto do que vivo. Toda a sua irreverência e presunção haviam evaporado. Seu cabelo — dizem — quase encanecera de pavor, e ele tinha uma aparência lassa e deprimida, como se ainda sentisse a corda em volta de seu pescoço.

O velho governador apoiou o braço na cintura e, por um momento, o observou com um sorriso de ferro.

— Doravante, meu amigo — disse ele —, modere o seu empenho em enviar as pessoas para a forca. Não confie em sua segurança, mesmo que tenha a lei do seu lado. E, acima de tudo, tome cuidado: nunca mais tente enredar um velho soldado em suas artimanhas.



[1] Alambra, um complexo de palácios, jardins e fortaleza (em espanhol Alhambra; em árabe al-amrāʼ ), era, na época em que se passa esta história, residência real e palácio do rei da Espanha e, como tal, estava submetida à sua autoridade, que era exercida por um governador por ele designado. O governador subordinava-se ao rei e não ao capitão-geral, governante da província de Granada. 


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