A JOIA ROUBADA - Conto - Anton Tchekhov
A JOIA ROUBADA
Anton Tchekhov
(1860 – 1904)
Machenka
Pavlezkaya, jovem recém-saída do pensionato, de volta do passeio, entra na
casa de Cuchin, onde serve como governanta. O porteiro Mikail, que lhe abre a
porta, está agitado e vermelho como um caranguejo.
“De cima vem um barulho esquisito. A patroa,
com certeza, teve um ataque...”, pensa Machenka. “Ou então brigou com o marido.”
Na
antessala e no corredor, cruza as com mocinhas da casa, uma das quais chora.
Aproximando-se
de seu quarto, vê o dono, Nicolai Serguievitch, que dele sai a toda pressa. Não
é um homem velho, mas tem a cara enrugada e ostenta uma vasta calva. Seu corpo
estremece... Passa levantando os braços, e exclama, sem perceber a presença da
governanta:
—
Que horror! Que falta de delicadeza! Tolice! Abominável!
Machenka
entra em seu quarto e, pela primeira vez na vida, experimenta o vivo sentimento
que sofrem constantemente as pessoas condenadas a depender de gente rica. Efetua-se uma busca em seu quarto. A dona da
casa, Fedosia Vasilevna, gorda, de ombros largos, bigoduda, com espessas
sobrancelhas negras, de mãos vermelhas e modos bruscos, mais se assemelhando a
uma verdureira que a uma dama, está ao lado da mesa, examinando o saquinho de
trabalhos de lã, pedaços de pano, papeizinhos... Evidentemente, não espera ver
a governanta, porque, ao virar a cabeça e ao perceber sua presença, seu rosto
pálido e assombrado perturba-se ligeiramente. E balbucia:
—
Desculpe-me... derrubei isto sem querer... prendeu na minha manga...
A
senhora Cuchin acrescenta alguma coisa e sai, majestosa. Machenka lança um
olhar ao redor e sente-se medrosa sem saber por quê. O que procura Fedosia
Vasilevna na bolsa? Se é verdade que involuntariamente a prendeu e derrubou,
por que Nicolai Serguievitch saía do quarto tão agitado? Por que uma gaveta da
mesa está aberta? Por que o cofrezinho, onde a governanta guarda as suas moedas
e os selos usados, está também aberto? Nem ao menos souberam fechá-lo. A
estante, a mesa, a cama, tudo apresenta vestígios de busca. O mesmo se nota no
cesto de roupa branca. Evidentemente, a roupa está dobrada de modo diferente.
Pelo que se vê, tudo foi revolvido, esquadrinhado. Mas, qual o motivo?
Machenka, lembrando do semblante perturbado do porteiro, de sua agitação, que ainda
continua, na cara chorosa da moça, quis explicar-se... Se houver no fundo de
tudo isso um crime? Machenka transtornada, senta-se no cesto de roupa.
A
moça que chorava entra no quarto.
—
Lisa, sabe por que fizeram buscas no meu quarto?
—
Deram falta de um broche de dois mil rublos da senhora — respondeu Lisa.
—
Mas que tem isso que ver com o que aconteceu aqui? — diz, com assombro, a governanta.
—
Revistaram todos, e a mim também. Tivemos que nos despir por completo... Deus
é testemunha de que eu não tinha o broche, como também de que eu não me
aproximei do toucador... Assim direi à polícia.
—
Mas por que procurá-lo entre as minhas coisas? — acrescentou a governanta.
—
Mas já não lhe disse que furtaram o broche da senhora? Ela, pessoalmente, fez
todas as investigações. Até revistou o
porteiro Mijaib. Uma vergonha! O senhor, que presenciava, não se opôs a isso,
limitando-se a cacarejar como uma galinha. Mas, tranquilize-se, não precisa
tremer assim. Nada encontraram em seu quarto. Como não tirou o broche, nada
deve temer.
— Contudo, é uma ofensa, um ultraje... — disse
Machenka, sufocada de indignação. — É abominável... uma vileza... Que direito
tem ela de suspeitar de mim e ir mexer em minhas coisas?
—
Você vive, ainda, em casa alheia, jovem — replica Lisa. — É uma senhorita. Porém,
apesar de tudo... é uma simples empregada... Não é o mesmo que viver na casa
de seus pais.
Machenka
prorrompe em soluços. Nunca lhe fizeram tamanha injúria. Ela, uma senhorita
bem-educada, fina, suspeita de roubo e revistada como qualquer uma. Ninguém
pode imaginar afronta maior. A este sentimento alia-se o temor do que lhe pode
acontecer no futuro. Talvez a detenham, a dispam. Talvez a metam num cárcere
escuro, frio, cheio de ratos e escaravelhos.
Quem
a defenderá? Seus pais vivem longe e não têm recursos para a viagem. Ela está
sozinha na capital, sem amigos, sem parentes. Podem fazer tudo com ela. Tudo
o que quiserem.
— Vou procurar os juízes e advogados... —
pensava Machenka, medrosa. — Contarei tudo, prestarei juramento... Acreditarão
em mim, pois não sou uma ladra...
Machenka
lembra-se, de repente, de que, em seu quarto, entre a roupa, havia alguns doces
que sobravam das refeições e guardava no bolso. O pensamento de ter esse
pequeno mistério sido descoberto pelos patrões deu-lhe tanta vergonha, que se
sentiu ruborizada, latejando-lhe as fontes.
—
A comida está na mesa!
Machenka arruma os cabelos, limpa o rosto com
uma toalha molhada e dirige-se para a sala de jantar. Já começaram a comer... Num
extremo da mesa, senta-se Fedosia Vasilevna, orgulhosa, muito séria. No outro, Nicolai
Serguievitch. Aos lados, os convidados e as crianças. Dois criados servem a
comida. Todos sabem que a patroa tem um desgosto e não se atrevem a falar. Não
se ouve outro ruído senão o do mastigar e engolir.
—
Que há para o terceiro prato? — interroga Fedosia Vasilevna, com voz
angustiada.
—
Esturjão ao Reno — responde o criado.
—
Eu mesmo encomendei esse prato, Fenia — diz Nicola Serguievitch. — Hoje senti
vontade de comer peixe. Se não te agrada, que não o sirvam...
Fedosia
Vasilevna gosta de pratos que não são encomendados por ela. Seus olhos se
enchem de lágrimas.
— A senhora se excitou demasiadamente — diz
melosamente Mamikof, seu médico, a sorrir com doçura. — É excessivamente nervosa.
Esqueça o broche... A saúde vale mais que dois mil rublos.
— Não é pelos dois mil rublos — replica a
patroa e uma lágrima a lhe correr pela face. — É o fato em si que me
transtorna. Não posso permitir que haja ladrões em minha casa. Não sinto
nada... nada. Mas, roubar-me... É uma ingratidão... É assim que pagam minha
bondade?
Todos
olham para os pratos, porém Machenka tem a impressão de que todos a fitam.
Sente como que uma opressão na garganta e prorrompe em pranto, tapando o rosto
com o lenço.
— Desculpem-me — balbucia —, a cabeça dói-me
muito. Vou-me embora...
Levanta-se
pesadamente, fazendo barulho com a cadeira e, ainda mais perturbada,
abandonada a mesa.
— Meu Deus! Para que foi você procurar no
quarto dela? — diz Nicolai Serguievitch. — Isso não se faz. Não é direito...
— Não digo que foi ela que tirou o broche —
contesta Fedosia Vasilevna. —Mas, você põe a mão no fogo por ela?
— Claro que não... Contudo, revistá-la foi uma
infâmia... Além disso, a lei não lhe confere direito para fazê-lo.
—
Não conheço a lei. Sei que me furtaram o broche e quero encontrá-lo. E o
encontrarei! — exclamou, encolerizada e batendo com o garfo no prato. — E,
você, coma e não se meta nos meus negócios!
Nicolai
Serguievitch suspira e baixa timidamente os olhos.
Entrementes, Machenka chega a seu quarto e
deixa-se cair na cama. Já não sente medo, nem vergonha, somente um desejo irresistível
de enfrentar aquela mulher altiva, insensível, estúpida e feliz, e
esbofeteá-la. Pensa no grande prazer que teria se pudesse sair e comprar um
broche de melhor qualidade e atirá-lo na cara da patroa. Põe-se contente a
imaginar Fedosia Vasilevna sem fortuna e obrigada a pedir esmolas, enquanto
ela, Machenka, a ultrajada, lhe prestaria auxílio... Ah se fosse possível
receber uma herança, comprar um carro e passar ruidosamente diante das janelas
da patroa...
Mas
tudo isso é ilusão: na realidade, não havia outra coisa a fazer senão ir para
casa, sem perda de tempo. Por outro lado, como era horrível voltar a viver ao
lado de sua família, onde falta tudo! Machenka não se sente capaz de encarar
novamente a patroa, nem continuar vivendo em seu quartinho, onde se sufoca.
Fedosia Vasilevna, meio louca com a sua pretensa aristocracia e suas doenças
imaginárias, inspira-lhe horror, e tudo que se relaciona com aquela mulher
parece-lhe feio e insuportável. Machenka salta da cama e começa a arrumar as
coisas.
—
Posso entrar? — pergunta em voz baixa, do outro lado da porta, Nicolai
Serguievitch, que se aproxima cautelosamente.
—
Entre.
Nicolai
empurra a porta. Seus olhos estão velados e o seu nariz vermelho brilha. Depois
de comer, costuma beber cerveja e isso se nota no modo de caminhar e na
debilidade das mãos.
—
O que é isso? — pergunta.
—
Estou arrumando as minhas coisas. Desculpe-me, Nicolai Serguievitch, mas não me
é possível continuar em sua casa. Sinto-me terrivelmente humilhada.
— Compreendo... Mas isso é demais. Fizeram
uma revista... O que você tem a ver com isso? Não acharam nada que a
implicasse.
Machenka
cala e continua o que estava fazendo. Nicolai Serguievitch esfrega os bigodes,
procurando argumentos.
— Compreendo muito bem. Porém, é necessário
ser tolerante. Você sabe muito bem que a minha mulher é muito nervosa e não se
pode levá-la a sério...
Machenka continua calada.
—
Se você se julga ofendida — acrescenta Nicolai Serguievitch —, quer que eu lhe
peça desculpas? Desculpe-me...
Machenka não responde, mas se inclina mais
sobre o baú. Esse bêbado sem caráter não manda nada na casa. Desempenha um
papel nulo antes os olhos de todos, até dos criados, e suas desculpas não têm
valor.
—
Hum!... Você fica calada... Minhas desculpas não lhe bastam? Nesse caso,
apresento-lhe minhas desculpas em nome de minha mulher. Em seu nome, repito...
Ela procedeu mal e sem delicadeza. Confesso isto como um cavalheiro...
Nicolai
Serguievitch passeia pelo quarto, suspira e prossegue:
—
Vejo que você não permite que a minha
consciência se tranquilize...
—
Mas eu sei que o senhor não tem culpa — disse Machenka, fixando nele seus
grandes olhos chorosos.
—
Naturalmente... Porém, não vá embora, peço-lhe.
Machenka
sacode negativamente a cabeça. Nicolai Serguievitch para em frente à janela e
bate nos vidros.
—
Para mim, estes dissabores são um verdadeiro martírio... Quer que fique de
joelhos? Você foi humilhada, está chorando e quer ir-se embora. Contudo, também
tenho orgulho, e você não faz caso de mim. Quer que lhe diga uma coisa que não
me atreveria a dizer em confissão? Quer que lhe confie o que direi somente na
hora da morte?
Machenka
continua muda.
— Eu tirei o broche de minha mulher. Está
satisfeita? Sim, eu o tirei... Naturalmente, confio que não o dirá a ninguém...
Por Deus, nem uma palavra a ninguém, nem uma alusão.
Machenka, entre assustada e assombrada,
continua arrumando a mala. Apanha seus papéis, atirando-os de qualquer maneira
na maleta e na cesta. Depois da confissão de Nicolai Serguievitch, não pode
ficar um só momento, nem sabe que decisão tomar.
— Não há nada de assombroso nisso — prossegue,
ao fim de algum tempo, Nicolai Serguievitch. — É absolutamente natural...
Preciso de dinheiro, e ela me nega. Tudo que aqui existe obtive de meus pais,
tudo. Esse broche era de minha mãe. Mas minha mulher se apoderou de tudo...
Você fará falta. Não posso levar minha mulher aos tribunais... Suplico-lhe que
me perdoe... Fique!... Compreender é perdoar... Fica?
— Não! — afirma Machenka tremendo, mas
enérgica. — Deixe-me ir embora.
—
Não, não! Que Deus a proteja — suspira Nicolai Serguievitch, sentando-se em um
banquinho junto à maleta. — Confesso que admiro quem, ao menos, sabe
ofender-se e indignar-se. Ficaria aqui uma eternidade olhando seu rosto
irritado... De modo que não quer ficar? Correto... isto não pode ser... é
natural... porém, que hei de fazer? Ir para uma de nossas propriedades? Também
lá existe gente que depende de minha mulher. Todos, administradores e colonos
— que o diabo os carregue! — não fazem mais que hipotecar e tornar a hipotecar.
Velhacos!
—
Nicolai Serguievitch! — grita da escada a voz de Fedosia Vasilevna.
—
Não fica mesmo? — insiste Nicolai Serguievitch, levantando-se e dirigindo-se
para a porta. — Fique. Sempre virei vê-la em seu quarto e conversaremos...
Quando se for, não ficará na casa nenhum rosto humano. Que horrível
perspectiva!
O
rosto pálido de Nicolai Serguievitch suplica, mas Machenka move negativamente
a cabeça. Ele faz um gesto desesperado e sai. Meia hora depois, Machenka está
a caminho da casa de seus pais.
Tradução
de autor desconhecido.
Fonte:
Jornal de Notícias (SP), edição de 21 de novembro de 1948
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