A HISTÓRIA DE OMAR E O VALOR DA ÁGUA - Conto de Emilio Vilaró
A HISTÓRIA DE
OMAR E O VALOR DA ÁGUA
Emilio Vilaró
Tradução de Paulo Soriano
Era
uma vez um homem chamado Omar, que vivia no pequeno oásis de Izmir.
Izmir,
como logo se saberá, é um dos muitos oásis que se encontram em meio à rota das
caravanas que se deslocam a Bagdá. Pequeno, mas suficientemente importante a
permitir os preparativos à última e mais importante etapa da viagem, antes de
adentrar-se a grande cidade.
Por
ser a última grande escala, permitia ao viajante prevenir sobre a sua chegada
iminente, inteirar-se dos preços atuais de mercado, deixar no oásis os objetos
não mais necessários, ou que poderiam ser recolhidos quando do retorno, e
organizar as mercadorias destinadas à venda.
Embora
não fosse o mais próximo dos oásis da capital, nele Omar recebia várias
caravanas por mês, cujos integrantes ali chegavam para assear-se, descansar e
preparar-se para a tão esperada chegada ao destino. Era a última grande parada
antes da chegada a Bagdá.
Perdoem-me
por ter esquecido de lhes dizer que Omar trabalhava para sua alteza o sultão
Solimão. Permitam-me que ponha a minha mão direita sobre o meu o meu coração
cada vez que menciono o seu santo nome, como um sinal de afeto e respeito por
um governante tão querido, tão respeitado por todos os seus servos, em razão do
amor que por eles sempre demonstrou.
Como
eu lhes dizia, o trabalho de Omar consistia em manter o oásis preparado para as
necessidades dos camelos e dos seus condutores, fornecendo-lhes água, sítios
para os banhos, abrigo e algum produto fresco, dos quais as caravanas careciam.
Há
muitos anos, Izmir fora um dos oásis mais frequentados por conta de sua beleza,
de seus frutos e da abundância e qualidade de sua água. Mas, por alguma razão
natural, a única fonte que existia no oásis foi secando pouco a pouco. A imensa
maioria das caravanas deixou de visitá-lo por falta não só de água, mas pela
escassez de palmeiras, figueiras e outras plantas típicas do oásis, que
proporcionavam comida, sombra e frescor durante a estadia.
Não
lhes disse que Omar vivia nesse oásis com a sua esposa Rashida e sua filha
Mara. Graças à sugestão de sua esposa, havia obtido o posto de guardião do
oásis, sob o compromisso de conservá-lo, canalizar a pouca água que havia e
cuidar das caravanas. Em compensação, Omar recebia, por cada pessoa e camelo
que chegava ao oásis, um pequeno pagamento, e com isto assegurava a
subsistência própria e a de sua família.
Mas
a verdadeira razão pela qual se tinham apaixonado pelo lugar, que lhes
suscitara o interesse em fazer dele um verdadeiro lar para si mesmos e para os
seus visitantes, e em permanecerem num lugar tão remoto e solitário, consistira
em que tanto Rashida como Omar partilhavam uma grande paixão: ouvir os contos,
lendas e histórias de terras distantes, nas quais jamais haviam estado.
Deixem-me
explicar-lhes.
Quando
vinham as caravanas, e após a algazarra da chegada e as intermináveis saudações
que a ela se seguiam, dava-se de beber aos camelos. Depois, vinham a limpeza
corporal completa e, na hora sagrada, as orações. Ao anoitecer, passava-se à
ceia e ao chá com hortelã fresca que Rashida plantava e reservava
carinhosamente para aquela ocasião.
Era
nesse momento que, após o primeiro gole de chá, e com os sempre amáveis
comentários sobre a boa qualidade da hortelã, o líder da caravana começava a
contar, em detalhes, as anedotas da viagem. Algumas vezes eram pequenas
histórias ou lendas escutadas, outras eram os acontecimentos e percalços
ocorridos durante a viagem, e outras tantas eram as histórias dos lugares
visitados, mas sempre, sem exceção, narrados com muito carinho.
Depois
de introduzir a história, o líder, com um gesto, passava a palavra ao membro da
caravana mais habilidoso na arte de contá-la, ou àquele que tinha uma maior
relação com o sucedido. E acontecia sempre que a melhor aventura da viagem, a
mais original das narrativas ou a de maior perigo constituíra o ensejo a que,
nesse ponto do percurso, tivessem encontrado, comprado ou permutado aquele
objeto especial que tanto procuravam para levar a seus amigos de Izmir: Rashida,
Omar e Mara.
A
pequena Mara, nos braços de Rashida, era quem sempre saltava, para o deleite
dos viajantes, para apanhar os presentes.
Por
costume, era o mais velho dos cameleiros quem entregava a dádiva a Mara,
escondendo-a um bocado para desfrutar mais um pouquinho daquele momento.
*
Era
uma família feliz. Todos os membros das trinta ou quarenta caravanas, que
passavam regularmente pelo oásis, sabiam da paixão que os três tinham pelas
histórias. Era quase obrigatório, quando várias caravanas se encontraram no
caminho, em diferentes partes do mundo, perguntarem umas às outras... ‘Já tem a
história para Omar e Rashida?’, ou: ‘Que história lhes podemos contar sobre
este bordado de seda que compramos em Samarcanda, Catai ou Cipango?’.
As
histórias sempre tiveram magia, mistério. As mil e uma noites de viagens
acumuladas permitiram polir e aperfeiçoar o relato de tal maneira que os seus
amigos do oásis sempre escutavam a história várias vezes preparada, contada,
repassada, polida, com as pausas perfeitas e entonação exata.
Rashida
e Omar tinham obtido o sincero apreço dos mercadores, pelo enorme carinho que
por sua vez lhes demonstravam, pelo imenso cuidado e atenções que lhes
dedicavam durante a sua curta instância no oásis e pelo esforço que faziam,
durante as suas ausências, para lhes a preparar água, os frutos secos, o pão, o
chá e o abrigo. E, quando era possível, a carne, o leite e o queijo.
Com
esta mistura de apreço e simpatia de ambas as partes, o momento mágico daquela
primeira noite no oásis era por todos muito aguardada, e a espera nunca
malogrou.
Depois
de entregues os presentes e contadas as histórias, o final da noite chegava
quando, com o luar sobranceiro, as sombras circunstantes e o fogo atraindo as
atenções, Rashida ensaiava uma dança curta, simples e bem preparada; e, ao
final, quando ela desaparecia entre aplausos e risos, as mantas iam-se
desdobrando sobre a areia e o fogo ia-se apagando, o encanto daquela noite
ficava para sempre gravado na alma.
Mas
Rashida e Omar notavam, com tristeza, que, mês a mês, ano após ano, o oásis era
mais terra, a terra era mais areia e a areia estava cada vez mais seca. Não
havia água suficiente para que as palmeiras e outros arbustos criassem uma
barreira ao deserto e dessem alguns frutos. As tâmaras, os figos, as
amendoeiras eram cada vez mais escassos e a relva era quase impossível de se
encontrar. A hortelã fresca, de que tanto Rashida cuidava, requeria grande
quantidade de água. As cabras, outrora abundantes, que proviam leite, queijos e
carne, eram coisa do passado.
*
Esta
história não mais teria qualquer interesse, nem eu lhes teria começado a
contar, se não fosse pelo que ocorreu a partir desse momento, e que tem sido a
base de uma narrativa por séculos e séculos contada.
Um
dia, como de costume, Omar ocupava-se da conservação do oásis. Ao mover umas
pedras, notou que sob elas a areia estava úmida. Verificou se algum líquido
houvera sido deitado no lugar e, estando certo de que não, pôs-se a escavar.
Percebeu que, muito paulatinamente, sem sombras de dúvidas, havia mais umidade
do que o normal naquele específico sítio do oásis.
Com
a ajuda de Rashida, um par de anciões e um homem ferido que esperava a próxima
caravana para deixar o oásis, conseguiram extrair a primeira gota d’água.
Durante dias, seguiram o veio do líquido, vendo em que direção seguia a areia
mais úmida.
Foi
um árduo labor a princípio, mas quando lograram obter um pequeníssimo fluxo
constante, aquela mesma água lhes abriu o caminho. Água aqui, gotas acolá, dias
e noites passaram observando, limpando, canalizando a água, até que, sem dúvida
alguma, constaram que tinham um manancial, pois a água manava das pedras. A
água corria, secava, voltava a brotar, avançava, retorcia-se pelo caminho que
lhe preparavam.
Haverá
caudal suficiente para represá-lo?
Terá
nível suficiente a desbordar esse montículo?
Secará
ao Sol do meio-dia?
A
fonte terá suficiente água para não se esgotar no verão?
Os
dias que aquela pequena corrente levou para chegar ao reservatório foram
mágicos. Cada passo à frente, cada trecho de canal acrescido era uma conquista
a ser celebrada.
Ah!
O quão difícil é à água avançar um bocado quando há milhões de grãos de areia
sedentos que, antes de deixá-la passar, lhe cobram a sua parte.
Aguardaram
com absoluto silêncio a primeira gota que devia chegar à cisterna. O último
trecho pareceu-lhes interminável. Para ajudar a água a fazer mais rápido o
caminho, Mara, com o seu dedo, o umedecia. ‘Mara, não brinque!’ — dizia Omar,
sorrindo! — ‘Sem dúvida, a água terá chegado quando ali cair a primeira gota’.
O som que produziu, ao cair no depósito, soou como uma cascata. Toda a água
que, até então, haviam experimentado, não tinha valor. Era a que caía na
cisterna a que contava.
Os
anciãos, ao bebê-la, disseram que era a água mais fresca e cristalina que
jamais haviam saboreado.
Mara
pôs o dedo na boca com as primeiras gotas; Rashida encheu uma tigela e, com a
água recolhida, regou suas plantas.
Omar
sorria, Rashida estava feliz. Muito feliz.
*
Passaram-se
os dias. Rashida rememorou a Omar que este laborava para o sultão Solimão...
Seu senhor. Permitam-me, mais uma vez, ao mencionar o seu santo nome, que ponha
a mão direita sobre o meu coração em sinal de afeto e respeito. E que era sua
obrigação informar-lhe de qualquer notícia ou mudança importante.
—Tem
razão, meu amor; devo apresentar-me diante dele, levar-lhe um pouco desta água
para que saiba que este seu oásis de Izmir volta a ter muita água, para que
possa enviar, caso deseje, mais caravanas, mensageiros reais, pequenas
patrulhas, sabendo que serão bem atendidos e mais bem acomodados. E se Alá
assim permitir, no ano que vem, haverá mais cabras.
Durante
os dois dias seguintes, preparou cuidadosamente a sua viagem. Na manhã de sua
partida, Omar recolheu um pouco d’água recém-saída do manancial e com ela
encheu uma preciosa garrafa de vidro — uma prenda muitíssimo apreciada, trazida
do Egito por uma caravana.
Osmar
nunca havia visto uma cidade, se bem que, depois de tantos relatos e
descrições, sabia de cor os caminhos a enveredar.
Fez
poucas paradas. Somente as indispensáveis, para fazer descansar e alimentar o
seu camelo. Apesar disto, demorou quase uma semana para chegar a Bagdá.
O
vislumbre da bela vista que a cidade exibia, à distância, foi breve. Omar
queria chegar rapidamente para falar com o seu amo, o sultão...
Ao
anoitecer, chegou aos portões da primeira muralha, os quais pôde facilmente
transpor, eis que eram usados pelos comerciantes, agricultores e pessoas da
cidade.
Ao
chegar à segunda muralha, os guardas o pararam, mas, em razão de suas longas
explicações, a sua simpatia e a veemência do tema a ser tratado, deixaram-no
passar com um sorriso.
À
frente da terceira muralha, às portas do palácio, deparou-se com enormes
guardiões, que lhe barraram o passo e não se importaram em responder aos seus
apelos.
Ao
ver que não poderia passar, Omar se plantou ao lado do portão e, durante toda a
noite, louvou-se em explicar, por diversas vezes, aos imutáveis guardiões, a
importância de sua missão e a necessidade de ver o seu amo, o sultão. Rendida a
guarda, tornava a explicar a missão aos novos vigilantes, por várias vezes, até
chegarem os primeiros clarões da manhã.
Tantas
vezes Omar repetiu a sua história, e com tal veemência, que... Oh, a fortuna
interveio! O grão-vizir aproximou-se da muralha e o chefe da guarda, que ouvira
inúmeras vezes a longa explicação do interior das muralhas, contou ao amo o que
ouvira.
Este,
de sua feita, atentou ao que ouvira e, dando-se conta do interesse da história,
ordenou que deixassem Omar passar, até que outra ordem sua fosse exarada.
Quando
o Sol começava a apagar as sombras nas muralhas, o grão-vizir apresentou-se,
como de costume, na sala de audiências, onde, duas vezes ao dia, sua majestade
o sultão ouvia os súditos e ministrava a justiça.
O
vizir, homem influente, gozava da amizade e da confiança do grande sultão.
Participou-lhe que gostaria que escutasse um súdito que viera com uma história
das mais curiosas.
Abordados
e resolvidos os assuntos importantes do dia, o grão-vizir ordenou que Omar se
aproximasse da sala de audiências.
Como
eram já as últimas horas da manhã, restavam poucas pessoas no recinto, e,
depois de um aceno do Vizir, Omar, mais pálido que a Lua cheia, explicou,
apaixonadamente, o que trazia a Bagdá.
Falou
da água, da água e da água, de seu oásis, de sua faina diária, da nova fonte,
de sua família, de seus camelos e das caravanas, das histórias contadas e dos
longos saraus.
Em
suas explicações, usou do mesmo método empregado pelos cameleiros: tirando a
história das profundezas da alma.
Prolongando-se
a explanação de Omar mais que os escassos segundos que uma audiência outorga,
alguns dos presentes aproximaram-se ainda mais, com vívido interesse naquilo
que aquela pessoa — a toda as luzes, de mui baixo estrato social — contava.
Ao
ver o sorriso do vizir, sempre ao lado do sultão, até mesmo os servos
inventavam uma desculpa para aproximar-se e ouvir o que ali se discorria.
O
silêncio e a atenção inusual com os quais o sultão escutava a história fizeram
com que o habitual burburinho de comentários, consultas, passos, tosses...
cessassem imediatamente. Até mesmo as moscas deixaram de voejar para ver o que
ali se passava.
Quando
Omar terminou de falar, acercou-se, de olhos baixos, dos pés do sultão, e
deixou ali a garrafa que, com tanto carinho, guardara.
O
sultão a contemplou por um instante e perguntou:
—
O que você viu em nossa cidade?
—
Nada, majestade; esta é a primeira vez que visito uma cidade. Cheguei ontem, ao
pôr do Sol, e permaneci junto à vossa muralha até que me permitiram a entrada.
—
Comeu ou bebeu alguma coisa?
—
Somente o que trouxe comigo do oásis.
— Guardas! Levem este homem aonde não possa ver nada, nem falar com ninguém. Dê-lhe de comer e de beber: leite, suco de frutas, mas nada de água. Ao se pôr o Sol, tragam-no de volta, mas, sobretudo, não troquem com ele uma palavra sequer.
O
burburinho foi monumental! Quando o sultão deixou a sala, os comentários eram
de surpresa e completo descontentamento. Como seria possível que o grande
sultão tratasse assim um súdito tão leal? Por que trancafiá-lo, em vez de
agradecer a ele por seus esforços? A mínima cortesia indica que lhe deveriam
oferecer pousada e água. Os presentes começaram a abandonar, com rapidez, a
sala e, em seu caminho, paravam para contar o sucedido a todos com quem se
deparavam.
Correu
a notícia por toda a cidade como o fogo em campo de trigo seco.
As
críticas eram notáveis, quer pela consideração que se esperava do sultão com
qualquer de seus súditos, quer pela humildade do encarregado do oásis e pelo
encanto e formosura da história contada.
Os
guardas, que tantas vezes haviam escutado a história, foram, ao repeti-la, os
heróis da jornada.
*
À
hora da audiência da tarde, a multidão entrou na sala, passando pelos postos de
guarda, sem que fosse possível barrar tantas pessoas. Os soldados, que chagaram
momentos mais tarde, só poderiam fazer uma barreira ao redor do sultão, se
necessária fosse.
As
horas foram passando, xeiques e embaixadores apresentaram os seus respeitos,
missões diplomáticas foram despachadas, mas de Omar, nem mesmo as moscas, agora
muito atentas, sabiam o paradeiro.
Murmúrios
distantes, que se iam aproximando, demonstravam que o motivo pelo qual todos
estavam ali, finalmente, havia sido chamado.
Mais
uma vez em presença do grande sultão, Omar se ajoelhou, esperando a sua sorte.
O
silêncio, total.
—
Se eu lhe pedisse que contasse uma história, como a que se contam no oásis,
sobre esta cidade, o que me diria?
—
Grande senhor, pouco vos poderia contar sobre uma cidade que não visitei, salvo
que vós me peçais que eu a invente.
—
Se lhe ordeno que volte ao seu oásis, para continuar em seu labor, o que me
pediria?
—
Somente a vossa permissão.
—
Qual a água mais fresca que já provou?
—
Sem sombra de dúvida, a do oásis de Izmir, meu senhor.
—
Quando voltar para casa, que alegre história contará à sua esposa e filha?
Osmar
baixa os olhos e não responde.
—
Ordeno-lhe que volte imediatamente a Izmir; uma patrulha o acompanhará um dia
de caminho. Não se detenha, nem retroceda, e nem fale com ninguém. E, como
sempre, prepare o oásis, até que receba minhas ordenanças.
Silêncio.
Quando
Omar saiu da sala, o sultão, como nas ocasiões em que anunciava os grandes
acontecimentos, exclamou:
—
Grão-vizir, ordene à sua guarda que acompanhe Omar pelo mesmo caminho pelo qual
ele aqui chegou! Que seja esta mesma noite. Que a luz do dia o apanhe distante
de Bagdá.
“Peça
a seus guardas que, sob circunstância alguma, deixem o meu súdito desviar-se
dessa rota; que não falem com ele, nem lhe permitam parar até que se encontre
muito distante de Bagdá; que não veja, nem ouça, nem suspeite de que em nossa
cidade temos a melhor água.
“Não
quero que ele saiba que cada uma de nossas fontes encheria dez de seu oásis.
Conquanto seja certa a fama de nossos rios, reservatórios, cisternas e canais,
nada disto se compara ao amor de meu súdito pelo seu tesouro: a água do
deserto. Assim, não me apraz que uma pessoa, que tanto ama o que tem, pense que
não aprecio o que trouxe para mim. A meu ver, sua garrafa tem mais valor que
mil potes e cem fontes.
“Por
conseguinte, desejo que pense o que é verdade. Que em Izmir temos um tesouro: a
água. Que eu tenho um fiel guardião, as caravanas têm um amigo, e, quanto a
mim, o seu gesto adentrou-me a alma.”
A
gente abandonou a sala entre alegre e enternecida... Omar não vira a água de
Bagdá, nem tomara banho de manhã, em escutara as suas cascatas, nem lhe haviam
contado história alguma para levar à sua amada...
Mas
tampouco havia sido humilhado por conta de sua garrafa d’água.
*
Vão
passando os meses de tempestades. Nessa época, não chegam caravanas. Apesar
disto, Omar e Rashilda têm mais trabalho que nunca. A areia sepulta água e
árvores, o vento devasta os galhos e os abrigos e apaga os caminhos.
Um
dia, inesperadamente, chega a primeira caravana da temporada. A de um bom amigo
que, pela primeira vez, vem acompanhada de soldados. Vendo a indumentária e o
porte das pessoas que a acompanham, supõe que deva ser uma viagem de grande
importância.
Ao
que parece, dirige-se ao distante Oman.
Eles já têm o oásis pronto para atender a sempre esperada primeira caravana.
Os
dois sabem o quão importante é esta primeira visita. Dela depende que aquela
mesma caravana, em seu regresso, volte a Izmir e que, durante a sua trajetória,
quando vier a se encontrar com outras que já estejam de retorno, anime-as a
visitar o seu oásis. Agora com maior razão, já que terão mais água. Os dois já
prelibavam só em pensar nas vezes em que contariam a descoberta do manancial às
próximas caravanas que chegassem.
*
Tudo
ocorre como de costume. Primeiro, o cuidado dos animais; em seguida, a limpeza
corporal e, depois, as santas orações.
Entretanto,
Rashida, como mulher, percebe certa discrição e “esquivança” quando cuida de
falar com os diversos membros da caravana. Supôs que seria por causa da
presença de soldados e de um misterioso personagem que se fizera pouco visível.
Naquela
noite, após a ceia, sob as palmeiras e ao redor do fogo, o desinteresse, a
indiferença demonstrados durante todo o dia se converteram em quase exaltação
quando o líder da caravana começou a falar.
—
Faz algumas semanas, em nossa pequena vila próxima a Bagdá, havíamos começado a
preparar, como sempre, todo o necessário para esta viagem. Animais,
equipamentos, apetrechos, mercadorias destinadas ao comércio, comida, água e
tendas. Trabalho duro, que durante várias semanas nos impediu de saber o que
acontecia em Bagdá.
“Uma
vez iniciada a nossa viagem, e quando passamos diante das muralhas exteriores
da grande cidade, os guardas nos perguntaram para onde nos dirigíamos e que
caminho trilharíamos.
“Dissemos-lhes
o que nos perguntaram e os guardas nos observaram que o grão-vizir desejava
falar com o responsável pela caravana, antes que continuássemos o nosso
percurso.
“A
imensa preocupação que demonstrei pelo problema em que poderia estar metido
amenizou-se quando o chefe da guarda me explicou que era coisa de duas horas e,
se eu assim desejasse, poderia permitir que minha caravana seguisse em frente
para não perder caminho.
“Ordenei
a meus homens que prosseguissem e me apresentei ao grão-vizir.
“—Quero
pedir-lhe — explicou-me —, já que se dirige ao oásis de Izmir, que permita
fazer-se acompanhar por uma patrulha de soldados preparados. Eles devem
conduzir ao oásis uma pessoa importante, vinte camelos com carga, alguns
presentes e uma mensagem.
“Acedi
com alívio. Tranquilizava-me somente em pensar que teria soldados a me
acompanhar por uma boa parte do caminho. Após esperar, por algumas horas, que
todos os membros da expedição se organizassem, iniciamos o caminho para cá”.
O
líder da caravana acercou-se de quem deveria ser, por seu porte, uma grande
personalidade, e, com grande cerimônia, dele recebeu um documento.
—Depois
de uma semana de viagem, cumpro aquilo de que me incumbiram, ao entregar-lhe
esta mensagem, oito cabras e dois pequenos cabritos, que nos foram muito
difíceis de esconder durante toda a tarde.
Omar,
com Rashida ao seu lado, aceitou, trêmulo, o pergaminho lacrado que o líder da
caravana lhe entregava.
Este
não se moveu até que Omar rompeu o lacre.
Ao
notar a primeira hesitação de Omar, e vendo a sua escassa capacidade para a
leitura, dobrando o joelho, tomou o pergaminho e, ao seu lado, leu:
“Ao
meu súdito e fiel servidor Omar:
Eu,
Solimão, amo e senhor do oásis de Izmir, desejo canalizar as águas do oásis
para que, no prazo de um ano, se houver água suficiente, seja parada importante
de todas as caravanas que dele se aproximarem, rumo a Bagdá.
Peço
que se preste a maior ajuda a Tarip, meu fiel construtor de palácio, para que
comece o estudo e a execução da dita obra, à qual, conforme as minhas ordens,
deverá dar a máxima importância.
Ordeno
a Omar, meu súdito, que, concluída a obra, venha a Bagdá com a sua mulher e
filha, como meu convidado no palácio, para me informar e me contar, na primeira
noite da sua estadia, sobre a água, a comida e as caravanas. Eu, com muito
prazer, lhes mostrarei os nossos banhos, fontes e cascatas.
Envio,
ademais, várias cabras, como sinal da minha confiança de que haverá relva e
água suficientes para as alimentar. A menor das cabras, a preta, é para a
pequena Mara”.
Mara
tentou levantar-se, mas foi carinhosamente arrebatada pela mãe, sob o riso de
todos os presentes.
“Finalmente,
devolvo ao oásis a garrafa que me foi dada com o maior tesouro de um deserto.
Agora, retorna cheia do maior dos tesouros palacianos: o perfume de flores
cítricas, para que, na primeira noite da chegada de cada caravana, e antes do
grande sarau, seja aberta para o deleite daqueles que, durante tanto tempo,
estiveram ausentes de nossa pátria.
Peço
a seu líder, como é de costume, que conte uma história que tenha ouvido, e que
seja, partir desse momento, aquela narrativa parte da primeira vigília noturna,
recitada a cada caravana que chegue.
Eu,
Solimão, o Magnífico.”
O líder da caravana tirou de uma bolsa a garrafa que Omar havia levado a Bagdá, abriu-a, por um momento, junto ao fogo e, quando viu que Reshida, ao receber o aroma, fechava os olhos para sentir mais intensamente o perfume, voltou ao seu lugar no círculo e, como tinha feito tantas vezes antes, tomou um gole de chá e começou:
—
Esta noite, quero contar a extraordinária história de uma garrafa d’água que se
transformou em perfume de flores cítricas e dos vários incidentes ocorridos
durante esse tempo para que tal prodígio acontecesse.
“Era
uma vez um homem chamado Omar, que vivia com a sua mulher Rashida e a sua
filhinha Mara no pequeno Oásis de Izmir...”
FIM
Nota do autor:
Conto escrito entre
Paris e Oman.
Inspirado na leitura,
feita no “Instituto do Mundo Árabe” de Paris, da explicação de uma foto de um
oásis. Não lembro se o que despertou o meu interesse foi a importância de
reconhecer-se o valor da água ou a de valorizar-se as coisas que, para outrem,
não têm valor algum.
Anos depois, constatei
que o texto que lera era parte de um conto muito antigo e de autor
desconhecido: “A água do paraíso”.
Sobre o autor:
Emilio Vilaró
nasceu em Tortosa, Tarragona (Catalunha, Espanha).
É mestre em Engenharia
Electrotécnica pela Texas Tech University, graças a uma bolsa de estudo Fulbright.
É aficionado por fotografia,
viagens e literatura.
Viveu longos períodos
de sua vida na Colômbia, no Canadá, nos Estados Unidos e na França.
Suas obras literárias
podem ser lidas em www.evilfoto.eu.
Tem o hábito de
escrever tudo em "Castelláno Tildádo", ou seja, acentuando todas as
palavras em sua sílaba tônica.
Muy bien presentado Paulo, Gracias.
ResponderExcluirDe nada, Emilio.
ExcluirSimplesmente maravilhoso! O deserto, as caravanas, a vastidão do céu... sempre atraíram.
ResponderExcluirGracias Vanessa: Un saludo desde España.
ExcluirMuito grato, Vanessa!
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