A CONVERSÃO DE ABRAAM - Conto Clássico - Giovanni Boccaccio


 

A CONVERSÃO DE ABRAAM

Giovanni Boccaccio

(1313 – 1375)

Tradução de Paulo Soriano

 

Em Paris havia um grande comerciante e homem de bem que se chamava Giannotto de Civigní, homem muito fiel e íntegro, e grande comerciante de tecidos. Tinha uma singular amizade com um judeu muito rico chamado Abraam, também comerciante, igualmente um homem muito honrado e leal. Vendo a honestidade e a fidelidade do amigo, pôs-se Giannotto a lamentar, profundamente, pela alma de um homem tão digno, sábio e bom, já que destinada à perdição, em razão da ausência de fé. Por isso, começou a suplicar-lhe que deixasse os erros da fé judaica e buscasse a verdade cristã, que ele via como santa e boa, sempre a prosperar e a aumentar, enquanto a do amigo, pelo contrário, estava a minguar e reduzir-se a nada.

O judeu respondeu que acreditava que nada era santo ou bom, exceto a fé judaica, na qual nascera, e pretendia nela viver e morrer. Nem por isto, o amigo, passados alguns dias, deixou de insistir no que lhe havia dito, mostrando-lhe, sem muita habilidade, como é próprio da maioria dos comerciantes, por quais razões a nossa fé era melhor do que a judaica. E porque era Abraam um grande mestre na lei judaica, e estivesse comovido por aquela grande amizade — ou mesmo por manifestação do Espírito Santo, que colocara nos lábios de um homem simplório aquelas palavras —, afeiçoou-se àquelas demonstrações de Giannotto. Todavia, obstinado em sua crença, não se deixava influenciar.

Tanto quanto era ele obstinado, também Giannotto não cessava de o incitar, de modo que o judeu, vencido por tão contínua súplica, disse-lhe:

— Olha, Giannotto, agrada-te que eu me torne cristão. E estou disposto a fazê-lo. Quero, todavia, primeiro ir a Roma e lá ver aquele que dizes ser o vigário de Deus na Terra. Pretendo considerar os seus modos e costumes, bem como os dos seus irmãos cardeais. E se me parecerem tais que eu possa compreender, pelas tuas palavras e pela conduta dos clérigos, que a tua fé é melhor do que a minha — como te esforçaste por me mostrar —, farei o que te disse. Caso contrário, permanecerei judeu, como já o sou.

Ouvindo isto, Giannotto ficou extremamente triste, dizendo a si mesmo:

— Em vão foi o poder de persuasão, que eu julgava haver tão bem empregado, acreditando que o havia convertido à fé cristã. Com efeito, se ele for à corte de Roma, jamais se tornará cristão; e, ainda que já houvesse se convertido ao cristianismo, sem falta voltaria a ser judeu.

E, dirigindo-se a Abraão, disse:

— Oh, meu amigo, por que queres entrar nesta labuta, tão sacrificante, de ir a Roma? Rico como és, não vês os grandes perigos que correrás no mar e em terra? Não consideras que podes encontrar aqui alguém que te batize? E, se por acaso tiveres alguma dúvida sobre a fé à que te convido, digo-te que há, aqui, mestres e homens que melhir a conhecem, e estes poderão instruir-te em tudo que precisares e exigires. Em minha opinião, tua ida a Roma é inútil. Vê que cá há prelados tão sábios quanto dos de lá, e os de Paris são melhores ainda, malgrado menos próximos ao Sumo Pontífice. Aconselho-te a ires Roma noutra ocasião, caso queiras obter algum perdão, e, então, eu te farei companhia.

A isto, respondeu o judeu:

— Creio, Giannotto, que me dizes a verdade. Mas, em resumo, digo-te que estou completamente disposto a ir para Roma, se é que queres que eu faça o que tanto me pediste; caso contrário, nada farei.

Giannotto, vendo a resolução do amigo, disse:

— Então, vai. Boa sorte!

Consigo mesmo, cogitou que o amigo jamais se tornaria cristão ao conhecer a corte de Roma. Mas, mesmo assim, já que nada tinha a perder, resignou-se.

O judeu montou no cavalo e, o mais depressa que pôde, dirigiu-se para a corte de Roma, onde, tendo chegado, foi honrosamente recebido por outros judeus. E lá estando, sem dizer a ninguém o motivo de sua viagem, começou cautelosamente a observar as maneiras do Papa, dos cardeais, de outros prelados e todos os cortesãos. E, desde então, por arte de sua grande astúcia, e pelas informações de terceiros, descobriu que, desde os figurões aos mais humildes, todos, em geral, pecavam escandalosamente na luxúria — e não só na natural, mas também na da sodomia —, sem indício algum de remorso ou vergonha, de modo que não era pequeno o poder dos efebos e prostitutas para exigir-lhes grandes benefícios. Além disso, eram universalmente glutões, beberrões e bêbados; pareciam animais embrutecidos que — saciada a luxúria — satisfaziam, antes de tudo, apenas ao próprio ventre. E, vislumbrando-os com maior acuidade, viu que eram todos gananciosos — ávidos por dinheiro. Também viu que o sangue humano — o sangue cristão — e as coisas divinas, quer pertencessem a sacrifícios ou a benefícios, eram vendidos e comprados a dinheiro, e que eram feitos mais comércios e negociatas com estas coisas do que, em Paris, com tecidos e mercadorias doutros gêneros. Viu que à evidente simonia davam eles o nome de “mediação” e à gula o de “sustento”, como se Deus não tomasse conhecimento dos intentos daquelas mentes pérfidas, e, muito menos, do significado das palavras e, assim como os homens, se deixasse ludibriar pelo nome atribuído às coisas.

Todas essas coisas, juntamente com outras às quais seria melhor não aludir, desagradaram sumamente o judeu, que era um homem sóbrio e modesto. Assim, julgando que já vira o suficiente, resolveu retornar a Paris, o que foi feito.

Tomando conhecimento do regresso de Abraam, Giannotto — que esperava qualquer coisa, menos que o amigo se tivesse tornado cristão —, tratou de procurá-lo, e fizeram juntos muitas festas. Depois de ter o amigo descansado alguns dias, Giannotto perguntou-lhe a impressão que tivera do Santo Padre, dos cardeais e dos outros prelados da corte.

Ao que o judeu respondeu prontamente.

— Tudo me pareceu muito mal. Que Deus dê àqueles homens o que eles merecem. E lhe digo mais: se bem vi o que vi, não me parece haver santidade, nem devoção, nem boas obras, nem exemplo de vida, ou o que quer que seja de bom em clérigo algum. O que vi foi a luxúria, a avareza, a gula, a fraude, a inveja, o orgulho e coisas semelhantes e piores, se é que estas podem existir. E todos apreciavam tanto tais coisas, que facilmente considero o clero mais propício às ações diabólicas do que às divinas. E, tanto quanto posso julgar, parece-me que o teu pastor, e, consequentemente, todos os outros, esforçam-se antes em reduzir a fé a nada — e a expulsá-la do mundo —, quando deveriam eles mesos servir de fundamento e apoio à religião cristã. Como parece evidente que eles não logram o que intentam fazer, verifico que a tua religião está sempre a crescer e a tornar-se cada vez mais esplêndida. Assim, parece-me que o Espírito Santo é, antes de tudo, merecidamente o fundamento e sustentáculo da igreja verdadeira e santa. Por isso — eu, que não queria converter-me à tua fé, pois tão rígido e inflexível era aos teus conselhos —, digo-te agora, francamente, que por nada no mundo deixarei de tornar-me cristão. Vamos, pois, à igreja e lá, segundo o costume da vossa santa fé, façam-me batizar.

 Giannotto — que esperava uma conclusão exatamente oposta àquela que agora via —, tendo ouvido as palavras do amigo, era agora o mais feliz dos homens. E indo com ele à Igreja de Nossa Senhora de Paris, pediu aos clérigos que batizassem Abraam. Ouvindo aquele pedido, depressa os padres o fizeram. E Giannotto, erguendo o amigo da pia sagrada, deu-lhe o nome de Giovanni. Depois, com a ajuda de grandes homens de saber, instruiu-o minuciosamente na nossa fé, que ele aprendeu rapidamente. E foi um cristão digno e bom, de vida santa.

 

Ilustração: Gravura de autor desconhecido do século XV (incunábulo francês com tradução de Laurant de Premierfait, de 1414).

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