A AFILHADA DO NOIVO - Conto Trágico - Charles Nodier


 

A AFILHADA DO NOIVO

Charles Nodier

(1780 – 1844)

 

Um ano há que minhas pesquisas botânicas me levaram aos arredores duma pequena aldeia que não dista muito de Loudun. Uma mulher de cerca de quarenta anos encontrou-me na montanha e julgou que eu colhia ervas medicinais. Observei que ela tinha vontade de falar-me e, sem adivinhar o que podia inspirar-lhe esse desejo, fui o primeiro a travar conversação. Disse-me, então, que era muito infeliz, tendo uma filha moça, a sua única consolação, que estimava mais do que a si própria, e estava a ponto de perdê-la, pois os médicos a haviam desenganado. Depois, pediu-me, chorando, que a visitasse e não lhe recusasse socorros. Inútil teria sido escusar-me; e demais, para que lhe roubar o encanto desse momento de esperança, indenização estéril, mas tão suave, de muitos meses de incerteza e lágrimas?

Caminhei, após ela, pelas floridas giestas e montas de tojos, até que chegamos à aldeia. Enfim, mostrou-me o limiar da cabana e eu entrei no quarto onde a filha repousava numa cama de lona já usada, entre duas cortinas verdes.

Estava esta apoiada num braço, com os olhos espantados, as faces rubras e ardentes, a boca arquejante e pálida. Parecia ter quando muito dezesseis a dezessete anos; não eram, porém, amenas as suas feições; nelas, apenas notava-se certa expressão comovente e apaixonada, que tem o poder de tudo embelezar.

— Suzana — disse-lhe a mãe —, eis uma pessoa de muito saber, que seguramente há de curar teu mal.

Sorrindo docemente, ela voltou-se para a parede.

— Suzana — continuei tomando-lhe a mão —, não vos entregueis a uma injusta desconfiança; para tudo há remédio.

Levantou a cabeça e olhou-me fixamente.

— Examinando algum tempo os sintomas de vossa doença, acharei, sem dúvida, meios de aliviar-vos.

Sorriu-se de novo e retirou das minhas as suas mãos, com ligeiro esforço.

A mãe saiu.

Não sei que inquietação se apoderara de mim. Comecei a passear a longos passos pela cabana, e a imaginação só me apresentava ideias desordenadas e sem harmonia.

Interessava-me aquela moça.

Voltei para junto dela e sentei-me. Ouvi um suspiro.

Tomei a mão que há pouco me retirara. A minha estava ardente; ela apertou-a.

— Suzana — disse-lhe apoiando-a sobre o seu coração —, teu sofrimento está aqui.

Abaixaram-se as suas pálpebras com melancólica tranquilidade. Estavam inchadas e dilatadas. As pestanas, reunidas em porções, brilhavam ainda pela umidade das lágrimas.

— Amas, acrescentei em voz baixa.

Entumecia-se-lhe o peito.

Passou os dedos por um anel dos cabelos negros, colocando-o no rosto.

Segurava-a com um braço. Aproximei-a do meu seio com casto interesse. Meu hábito tocava-lhe os lábios.

Falou; mal a ouvi.

— Não é ele, dizia.

— Não — respondi —, não é; porém, não há de vir?

Suzana moveu a mão ao redor da cabeça.

— Talvez amanhã o vejas.

Não respondeu.

Receando agravar a sua dor, conservei-me silencioso. Olhou-me ainda uma vez; eu estava a chorar!

Tinha uma lágrima nas faces; ela enxugou-ma com as costas da mão.

Outra caíra-lhe na mão; recolheu-a com a boca.

— És bem feliz —disse-me —; creio que choraste.

E, depois, observando-me mais, acrescentou:

— Amar-te-ei porque tens uma alma angélica. Dize-me, entretanto, se és nobre.

Eu hesitava em confessá-lo. É difícil dizê-lo diante da virtude prostada no leito da miséria.

— Oh!  — prosseguiu. — Nobre e homem; há nisso equívoco. Mas és muito moço ainda... Estou contente de te ver corar.

— Explica-me... —Eu não pronunciei tais palavras; que necessidade tinha eu dum esclarecimento doloroso para dar-lhe minha piedade? Entendíamo-nos bem assim.

Um pouco mais tarde, tornei a ver a mãe, que aguardava as minhas palavras como oráculo salvador.

— Ela amou? — perguntei-lhe.

— Ah! Nunca. Ricos partidos têm-se apresentado; e, apesar de nossa indigência, muito e ardentemente solicitado foi o amor da minha Suzana, porém debalde. Ela desejara houvesse claustros onde sepultar a sua mocidade, porque lhe era o mundo importuno e a vida parecia-lhe longa e difícil. Creio que nenhum homem obteve um só ósculo de Suzana, a não ser o padrinho. Ele tem doze anos mais do que ela, e é filho do antigo senhor da aldeia. Quando ele estava ausente ao serviço do rei, ela dizia:

“— Sei que meu padrinho voltará, porque Deus mo prometeu; e, logo que volte o meu Frederico, dar-lhe-hei um cordeiro todo branco, ornado de fitas azuis e cor de rosa, e de grinaldas de flores, conforme a estação”.

— Ela foi com efeito ao seu encontro, e quando ele a viu, desceu do cavalo para beijar-lhe a fronte.

“— Vede — disse — como Suzana é linda! Não quero que conduza mais rebanhos ao longo das sebes, nem creste a sua tez ardores do Sol, pois eu amava-a como irmã”.

No dia seguinte, voltei ao romper da aurora. Encontrei-a pior.

— Ouve — disse ela, abraçando-me —, deves ser bom como és bonito e quero pedir-te uma coisa melhor que a vida. Faze com que minha mãe me dê o meu vestido branco, minha touca de cassa, e minha cruzinha de cristal. Colhe-me uma escovinha no jardim e um lírio perto do regato. É hoje o aniversário do meu nascimento.

Fiz o que me pedira e sua mãe vestiu-a. Mas. ao descer do leito, caiu ela em desfalecimento.

Defronte vibrava o sino, pois estávamos em frente da igreja. Disse-lhe a mãe:

— Vês, é o casamento de Frederico; se não estivesse doente, dançarias como as moças nas grandes salas do castelo. Por que não te animas?

Não ouvia mais Suzana, a pobre Suzana! Afirmou-nos que estava melhor.

Aproximamo-nos da porta, a mãe e eu, para vermos passar os noivos. Com tímida atenção, escolhia a mulher o lugar onde devia pôr os pés, para não amarrotar as bordaduras do seu calçado. Todo os seus movimentos eram difíceis e afetados; todos os seus gestos, soberbos e desdenhosos. No andar, no olhar, no arranjo dos cabelos, nas pregas dos vestidos, tudo era simetria. Oh, quanto lhe inspiravam desgosto os cuidados duma simples festa e duma cerimônia comum!

 

Depois vinha Frederico, com os olhos baixos, sem alinho, andar lento e inquieto.

Ao passar pela casa, lançou-lhe os olhos com ar sombrio e descontente; recuou quase um passo mordendo os lábios; desfolhou um ramalhete que tinha nas mãos; e, depois, continuou seu caminho, e a igreja abriu-se.

Eu ficara só refletindo nisto; de súbito, ouvi um grito. Corri. A mãe estava de joelhos e a filha deitada.

— Estás certa?...

— Olha — disse-me a mãe...

Suzana estava morta, inteiriçada, sem cor, já de todo exânime. Toquei- a; estava fria. Auscultei-a ainda, e tive certeza de que não mais respirava.

Eis o que vi no povoado vizinho de Loudun.

 

Tradução de autor desconhecido do século XIX.

Fonte: “Jornal das Famílias”, Rio de Janeiro, edição de 16 de fevereiro de 1878.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

Imagem: Edvard Munch

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