OS DOIS PRESOS - Conto Clássico - Guy de Maupassant
OS DOIS PRESOS
Guy de Maupassant
(1850 – 1893)
O
alcaide ia já sentar-se à mesa para o almoço, quando lhe disseram que um guarda
rural o esperava com dois presos.
Ao
chegar à sua sala de despacho, viu um guarda que acompanhava, com ar severo, um
homem e uma mulher, ambos já de idade avançada.
A
autoridade municipal perguntou a seu subordinado:
—
Que ocorreu, Hochedur?
O
guarda prestou a sua declaração.
Tinha
saído pela manhã a fim de inspecionar as cercanias do bosque Champioux até a
fronteira de Argenteuil.
E
nada particular havia notado no campo, quando um menino lhe gritou:
—
Corra, vá depressa até a direita, que lá encontrará a afagar-se publicamente um
casal de namorados, cuja idade, somada, naturalmente dará mais de cento e vinte
anos.
O
guarda tomou a direção indicada, e, ao penetrar no bosque, surpreendeu os
detidos precisamente no momento em que se beijavam e se abraçavam com desmedida
ternura.
O
alcaide contemplou com surpresa os culpados, e começou o seu interrogatório
pelo homem, cuja idade passava dos sessenta anos.
—
Seu nome?
—
Nícolas Beurian.
—
Sua profissão?
—
Comerciante; rua dos Mártires, Paris.
—
E o que fazia o senhor no bosque?
—
Senhor…
—
Nega senhor o que disse o guarda?
—
De modo algum.
—
O que tem a alegar em sua defesa?
—
Nada, senhor.
—
Onde encontrou a sua cúmplice?
—
Ela é minha mulher.
—
Sua mulher?!
—
Sim, senhor.
—
Estão divorciados, então?
—
Pelo contrário, vivemos juntos e nos queremos entranhadamente.
—
Neste caso, terá, porventura, enlouquecido? Com certeza.
Nícolas
Beurian desatou a chorar como um menino. E, dirigindo-se a sua mulher,
exclamou:
—
Estás vendo as consequências de tua maldita poesia?! Teremos, agora, que
suportar o escândalo e nos veremos obrigados a fechar as portas do nosso
estabelecimento comercial.
Madame
Beurian levantou-se e, sem olhar o seu marido, disse, cem decisão:
—
Já sei, senhor alcaide, que estamos em ridícula situação. Porém, se o senhor
estiver disposto a ouvir-me com resignação, acabará se convencendo da nossa
real inocência.
“Quando
eu era jovem ainda, conheci Nícolas Beurian, neste país, um domingo, durante
uma partida de campo a que, em companhia de várias amiguinhas, fora assistir.
“Ao
cabo de um mês, nos casamos e nos dedicamos, desde então, a trabalhar, como
condenados em nosso estabelecimento, na rua dos Mártires.
“Empenhados
exclusivamente a fazer prosperar o nosso negócio, tivemos que renunciar ao
prazer de ir, pelos domingos, ao campo, a ponto de chegarmos a perder o costume
de sair de Paris, sob qualquer pretexto. No comércio, a gente pensa mais no
caixa do que nas flores e nos bosques.
“Assim,
fomos envelhecendo, pouco a pouco, sem notá-lo, como criaturas indiferentes que
deixassem de pensar em seus antigos amores.
“Depois,
mudaram as coisas, e prosperaram de tal maneira os nossos negócios, que
chegamos a realizar, em breve tempo, fortuna bem razoável.
“Nossa
situação nos permitia certos luxos, e revivi primitivas afeições ao campo, às
árvores e às flores.
“O
odor das violetas me perseguia com insistência e me fazia bater o coração de um
modo extraordinário.
“Tudo
isto me parecia estúpido para uma pessoa de minha idade. Porém, que quer o
senhor, seu alcaide? Quando uma pessoa trabalhou durante toda a sua vida, chega
a um momento em que sente a necessidade de modificar, em certos aspectos, a
existência sufocante, e eis que lhe voltam os bons tempos da mocidade
longínqua. Imagine, senhor alcaide, que durante vinte e cinco anos estivemos
permanentemente em Paris, sem sair um só dia da grande capital.
“A
princípio, não me atrevia a falar das minhas aspirações ao meu marido, certa
como estava eu de que ele havia de caçoar de mim e de rir-se dos meus poéticos
planos.
“Mas,
afinal, me decidi e lhe propus uma excursão ao campo, ao lugar precisamente
onde havíamos tido a sorte de outrora nos conhecer.
“Com
grande surpresa da minha parte, o esposo amado aceitou a proposta, e aqui nos
tem o senhor, seu alcaide, nesta comarca, aonde chegamos pelas nove horas da
manhã de hoje.
“O
coração da mulher não envelhece nunca, e por isso eu me senti assaltada pela
recordação de meus primeiros amores.
“Não
via meu marido tal como ele é na atualidade, mas sim como o via em outros
tempos. Juro-lhe, senhor alcaide, que estou falando a verdade.
“Dei-lhe
um beijo e o estreitei-o nos meus braços, o que lhe causou tanta surpresa, que
a expressão do seu rosto era a de um indivíduo cuja vida alguém tentasse
extinguir, assassinando-o.
“’—Terás,
por acaso, enlouquecido?!’ — dizia-me Beurian. ‘Que tens, mulher?’
“Eu
não fazia caso das suas palavras, e só escutava a ternura do meu coração.
“Sentamo-nos,
os dois, em uma pedra, e lá, quando estávamos unidos em estreito abraço, nos
surpreendeu o guarda.
“Eis
aí tudo quanto ocorreu, senhor alcaide. Nada mais.
Juro-lhe
que esta é toda a verdade”.
O
alcaide, que era um homem prático e conhecedor do mundo, levantou-se, sorriu
benevolamente e disse:
—
Pode ir com Deus, senhora. Mas, procure, daqui em diante, moderar os seus
impulsos poéticos, sobretudo durante as suas excursões pelo campo.
Fonte: “Fon-Fon”,
edição de 21 de março de 1925. Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica de
Iba Mendes (2016).
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