INFERNO NO CÉU - Crônica de Júlio Portus Cale


 

INFERNO NO CÉU

Júlio Portus Cale

 

Porque virtuoso, quando morri, fui direto para o Céu.

Lá chegando, procurei prontamente Santo Antônio, o mais milagreiro dos santos e o meu santo de devoção.

Encontrei-o sentado a uma escrivaninha, debruçado sobre um livro imenso, fazendo apressadas anotações com uma pena. Tinha um ar de grande cansaço, mas trabalhava febrilmente.

— Com licença, Santo Antônio. Posso me sentar um bocadinho?

— Um dedinho de prosa é bem-vindo. Fique à vontade.

Sentei-me.

— Meu santo, o senhor parece-me cansado — disse-lhe.

— Extenuado, meu filho! Extenuado! Somente nesse minutinho, desde que você chegou, já vieram 50 novos pedidos de casamento. É difícil dar conta de tanto pedido.  E olhe que, hoje em dia, casamento é coisa difícil...

—Mas é assim que o senhor faz os milagres, escrevendo num livro enorme?

— Não, meu filho.  Este aqui é o livro de registro.

— Então o senhor é um burocrata? Não faz milagres de verdade?

— Pessoalmente, muito raramente. O Senhor, em sua infinita bondade, designou centenas de santos ociosos — esses santos de que ninguém se lembra mais — para me auxiliar.  Hoje, dedico-me ao registro de entrada e saída e à coordenação geral dos milagres. É um trabalho árduo.  Toda hora é isso: “Meu Santo Antônio, quero isto”, “Meu Santo Antônio, quero aquilo”... É isso que dá ter a fama de grande taumaturgo.

— Taumaturgo? Mas o que é...

— É o mesmo que milagreiro.  Mas o pior, meu filho, é ter de arranjar marido para essa miríade — sabe o que é miríade, não? — de solteironas desesperadas. A maioria muito feia, Deus me perdoe pela franqueza. E quando elas se vingam, então... E injustamente, pois não sabem o quanto a fila é longa e que milagre não é coisa assim tão fácil de se fazer...

— Mas o que é que elas fazem?

— Põem a minha imagem de castigo, quando o noivo tarda a aparecer. 

— Castigo?

— Nunca ouviu falar?  As megeras põem a minha imagem de cabeça para baixo. Às vezes dentro de um copo d’água; outras, amarrado a um cordão. É uma espécie de vodu. Quando elas fazem isso, eu, aqui no Céu, fico de ponta cabeça. Então, minha batina desce.  Como eu não uso cuecas... Ah, meu filho, estou cansado de chacotas!

— Mas os ajudantes não dão conta?

— Não, não dão. A maioria não é tão boa assim nesse negócio de fazer milagres e prodígios.

— Por isto, o senhor está tão cansado...

— Extenuado, já disse.

— Vida de santo não é fácil, então...

— Ah, até que é, para alguns.  Tem muito santo importante, mas esquecido.  Já viu alguém fazer promessa para São Paulo?  Ou para São Simão?

— Simão Pedro?  Muita gente faz promessa para ele.

— Não me refiro a Simão Pedro, mas a Simão, o Zelote.

— Simão, o Zelote?  Santo importante?  Qual importante que nada! Nunca ouvi falar dele!

— Importante, sim!  Apóstolo do Senhor. Um dos doze. Era um guerrilheiro antes de Jesus intimá-lo ao ministério.  Mas ninguém se lembra dele, nem lhe faz pedidos. E olha que teve um martírio terrível: foi cortado ao meio, vivo, por um serrote. Hoje, vive na maior tranquilidade. Em vez de quando, é chamado para fazer uma palestra sobre a virtude cristã aos mestres carpinteiros.  Mas a última foi há duzentos anos... Enquanto eu, aqui, trabalho noite e dia, todos os dias, atendendo a uma enxurrada de pedidos diários... É o que dá ter fama de milagreiro...

De repente, Santo Antônio ficou de cabeça para baixo.  Gargalhadas ecoaram no Céu. Por pudor, baixei a vista.

— Não lhe disse?  Para alguns santos, vida no Céu é um verdadeiro inferno...

 

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