VIRGÍNIA - Conto Trágico - J. J. de S. S. Rio
VIRGÍNIA
J. J. de S. S. Rio
(Séc. XIX)
Maldito o seu
furor, porque obstinado, e maldita a sua ira, porque inflexível.
Gênesis
Prostrada
ante uma imagem da Virgem, banhada em pranto o rosto, soltos os cabelos, e a
mais viva aflição pintada no semblante, orava Virgínia, a inconsolável Virgínia,
esperando a cada momento a infausta notícia da morte de seu amante, que nas
trincheiras barateava a vida pela pátria, pelejava contra holandeses,
defendendo a cidade de São Salvador.
Em
vão buscava a mãe tranquilizá-la; em vão; as palavras da velha não podiam levar
a seu dilacerado coração a consoladora esperança, que perdida a tinha ela; mas,
e ainda mal, mais e mais aumentavam-lhe a dor, mais e mais tornavam insuportáveis
os seus sofrimentos.
Ah!
Que ela, moça e tão linda, tinha visto partir do Recôncavo da Bahia o seu
querido Eugênio, na véspera desse dia em que lhe devia dar a mão de esposo, e
firmar ante o altar os seus protestos de amores, em uma tarde do mês de maio.
Tão
depressa ouvira o jovem brasileiro dizer que poderosa armada holandesa sulcava
os mares da Bahia, que esqueceu seus amores, seus dias venturosos e risonhos
que seriam passados junto de uma consorte cheia de encantos e virtudes;
esqueceu para se lembrar do iminente perigo que corria a pátria; e lá se partiu
rapidamente a ter seu quinhão de glória na defesa da capital do Brasil,
ameaçada por inimigo poderoso.
Numeroso
exército de veteranos afeitos à peleja, que haviam afrontado a morte em muitas
batalhas, e a cuja frente marchava o intrépido Mauricio de Nassau, apresenta-se
ante as muralhas da cidade; mas ali estão outros soldados não menos valentes,
que lhe disputam terreno. Embalde milhares de pelouros, açoutando os ares,
derramam a morte nas fileiras dos defensores de São Salvador; embalde os
contrários redobram de intrepidez e valor; Bagnuolo e o valente Pedro da Silva
conseguem repelir os invasores.
Irritado
Nassau por uma resistência que não esperava encontrar, reúne todas as forças de
que pôde dispor, ataca de novo as trincheiras, apodera-se do fosso e busca
vingar a afronta feita às suas armas. Chuva de metralha, nuvem de balas
ardentes, que sibilam o hino da morte, lá rompem pelos ares, lá caem sobre brasileiros
e portugueses. Mas que importa? Não desanimam os sitiados, que lançam e
arremessam de cima das trincheiras sobre o inimigo enormes e pesadas pedras,
robustas e fortes vigas, e panelas inflamadas; correm a reforçá-lo o bravo
Barbalho, o valoroso Henrique Dias, e o invencível D. Antônio Filipe Camarão.
A
batalha tornara-se geral.
Não
pôs a noite termo ao furor dos lidadores e o horror das trevas veio realçar o
horror do conflito; já tomam os sitiados a ofensiva, investem o inimigo com
arremesso terrível; atacam pelos flancos, pela retaguarda; envolvem, derribam,
matam quantos resistem... Mas pouco e pouco começa de enfraquecer o retinir das
espadas, o trovejar das bombardas, o bradar dos guerreiros... e pouco depois
nada mais se ouvia que o gemer e o arquejar dos moribundos como o gemer e o
arquejar do oceano após a tempestade!...
O
inimigo tinha desaparecido.
Surgiu
o Sol no seguinte dia, e seus raios brilhantes vieram esclarecer esta cena de
desolação. Centenares de mortos, de feridos, de estropiados entulhavam o campo,
cobriam o campo da peleja; e cem prisioneiros eram conduzidos, como troféus da
vitória, à cidade de São Salvador.
Quarenta
dias se passaram desde o terrível combate, quando uma esquadra numerosa deu à
vela, deixando após si as águas da Bahia; levava Nassau a bordo de seus navios
para mais, que não para menos, de seiscentos feridos, e lamentava a perda de
três mil de seus esforçados guerreiros.
Jurou
ele, porém, pela sua espada vingar-se do brioso povo que com tento valor
defendera o seu território.
Pequenas
embarcações, carregadas de soldados, exploraram o Recôncavo, levaram a todos os
lugares, ainda os mais remotos, o incêndio, o saque e a morte. Fugiam tímidas
as donzelas diante da ferocidade brutal desses terríveis inimigos, e com elas
os inocentes meninos e os inermes velhos; e por toda a parte faziam os
fugitivos ouvir o seu grito sinistro:
—Nassau!
Nassau!...
Pequenas
cabanas foram entregues às chamas, seus moradores varados pelas espadas; a nada
se respeitou; sexos e idades, tudo padeceu a mesma sorte, que tudo se confundiu.
Tal
a desolação que se originou da odiosa vingança dos holandeses!
E
dois meses decorreram depois do triunfo brasileiro; e como visse Eugênio que
nenhum novo perigo ameaçava a cidade, pediu licença para acolher-se a seus
lares, onde o amor e o zelo de suas propriedades de há muito tempo o chamavam.
Consegue-a;
volta ao Recôncavo. Ah! Que cena de lástima para os seus olhos! Convulsivo
temor lhe agita os membros, e o coração se lhe aperta de dor! Por toda a parte
os vestígios da mão do inimigo cobarde e vingativo... por toda a parte a
desolação, sangue, ruina e morte!...
Em
vão, porém, procura ele pela sua choupana; olhos erradios nada mais encontrão
que destroços... Lá, cinzes dispersas lhe indicam o lugar que ocupava, no
abaulado da montanha, a habitação de sua amada... e, mais adiante, uma pedra e
uma tosca cruz!...
Quem
será que ali repousa?
Aproxima-se...
Crava nela os olhos... Que dor para o coração de um amante! Sobre o braço da
cruz havia uma inscrição, e essa inscrição era o nome dela... O infeliz estava
contemplando a sepultura de sua querida Virgínia.
Que
despertar tão duro!
Quantos
sonhos de felicidade não se desvaneceram em um momento! Quantas sonhadas
doçuras não se trocaram em amarguras! Era um sorriso irônico do infortúnio que
o atraiçoara!
No
dia seguinte, vagava pelo Recôncavo um jovem que tinha perdido a razão; sempre
taciturno, sempre triste; pálido como o semblante da desgraça; com os cabelos
desgrenhados, como as palmas dos coqueiros açoutadas do tufão; caminhava ao
acaso, como uma avezinha ferida pelo raio do caçador; e se porventura
desprendia os lábios, era para bradar frenética e dolorosamente:
—
Nassau! Nassau!
E
tornava a cair no seu abatimento e taciturnidade.
Encontraram-no
uma manhã, sentado sobre uma das pedras lançadas em torno da tosca cruz da
sepultura de Virgínia; tinha a cabeça encostada ao tronco anoso de arvore
copada; a esquerda mão, de encontro ao peito, apertava um anel de louro cabelo;
a direita segurava numa vara com que tinha traçado na areia:
Nassau!
Ah!
Já não era ele que não mais sofria. Era o seu cadáver frio e gelado de morte
que ali estava.
Sua
alma tinha ido reunir-se à de Virgínia.
Fonte: “Jornal das
Famílias”/RJ. Edição de abril de 1869.
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