COMO A NOITE APARECEU - Narrativa Indígena - Clemente Brandenburger


 

COMO A NOITE APARECEU

Clemente Brandenburger

(1879 – 1947)



No princípio, não havia noite — dia somente havia em todo o tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais, mas todas as coisas falavam. A filha da Cobra Grande, contam, casara-se com um moço. Este moço tinha três criados fiéis. Um dia, chamou ele os três fâmulos e disse-lhes:

Ide passear, porque nós agora vamos dormir.

Os criados foram-se e então ele chamou sua mulher para se item deitar. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe:

Ainda não é noite.

Disse-lhe o marido:

Não há noite; somente há dia.

A moça respondeu:

Meu pai tem noite. Se queres dormir manda lá buscá-la, pelo grande rio.

Chamou o marido os três fâmulos; mandou-os a moça à casa de seu pai, para trazerem um caroço da palmeira tucumã.

Foram os criados, chegaram em casa da Cobra Grande, esta lhes entregou um coco de tucumã, muito bem fechado, e disse-lhes:

Aqui está; levai-o. Eia! Não o abrais, senão todas as coisas se perderão.

Tornando os fâmulos, ouviram barulho dentro do coco de tucumã, assim: “tem, tem, tem… xi…” Era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite. Quando já estavam longe, um dos criados disse aos companheiros:

Vamos ver que barulho e este?

Respondeu o piloto:

Não; do contrário nos perderemos. Vamos embora, eia, rema!

Foram-se e continuaram a ouvir o mesmo barulho dentro do coco de tucumã, sem saber que barulho era. Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no meio da canoa e acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e o abriram. De repente, tudo escureceu.

Disse então o piloto:

Nós estamos perdidos e a moça, em casa, já sabe que abrimos o coco de tucumã!

Seguiram, porém, viagem. A moça, em sua casa, disse então a seu marido:

Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã.

Então todas as coisas que estavam espalhadas pelo bosque se transformaram em animais e pássaras. As coisas que estavam espalhadas pelo rio se transformaram em patos e em peixes. Do paneiro, gerou-se a onça. O pescador e a sua canoa se transformaram em pato. De sua cabeça nasceram a cabeça e o bico do pato; da canoa, o corpo do pato; dos remos as pernas do pato.

A filha da Cobra Grande, quando viu a Estrela Dalva, disse a seu marido:

A madrugada vem rompendo. Vou separar o dia da noite.

Enrolou então um fio e disse-lhe:

Tu serás cujubim. Fez assim o cujubim: pintou a cabeça do cujubim de branco com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucu, e disse-lhe então:

Cantarás para todo o sempre, quando a manhã vier raiando.

Enrolou outro fio, sacudiu cinza cm cima dele e disse:

Tu serás inambu, para cantar nos diversos tempos da noite e de madrugada.

De então para cá, todos os pássaros cantaram em suas horas e de madrugada para alegrar o princípio do dia.

Quando os três criados chegaram, disse-lhe o moço:

Fostes infiéis, abristes o caroço de tucumã, soltando a noite e todas as coisas se perderam e vós também, que vos mudastes em macacos, andareis para todo o sempre pelos galhas dos paus. Só então repararam que assim era.

A boca preta e a risca amarela que eles têm no braço dizem que é ainda sinal do breu que fechava o caroço de tucumã e escorreu sobre eles, quando derreteram.



Fonte: Jornal do Brasil/RJ, edição de 19 de outubro de 1941.

Ilustração: Tereza Santos.


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