O ORADOR - Conto Humorístico - Anton Tchekhov

 


O ORADOR

Anton Tchekhov (1860 – 1904)

Tradução de autor desconhecido do séc. XX



O enterro de Kiril Ivanovich Vavilienski, falecido em consequência de duas moléstias muito frequentes em nossa pátria — o alcoolismo e a mulher iracunda — realiza-se numa radiante manhã. Quando o cortejo inicia a caminhada para o cemitério, um tal Polplavisko, companheiro do defunto, aparta-se de dele, toma um carro e ordena que o levem a toda pressa à casa de seu amigo Grigori Petrovich Zapoikin, moço ainda e, não obstante, muito popular. A maioria dos leitores talvez conheça o talento extraordinário de Zapoikin para pronunciar discursos e improvisos em todas as circunstâncias da vida, como casamentos, aniversários, enterros. Fala a qualquer hora, recém-acordado, em trajes menores, bêbado ou com febre. Discursa com extrema facilidade e eloquência, como jato d’água que rebenta do cano, usando, em seu vocabulário, palavras capazes de enternecer a rocha. Seus discursos são sempre calorosos e enormes, sendo, às vezes, sobretudo nos casamentos, preciso chamar a polícia para fazê-lo calar-se.

Venho buscar você — diz-lhe Polplavisko. — Vista-se e vamos imediatamente. Morreu um amigo nosso e o estamos despachando para o outro mundo… É preciso dizer alguma coisa na despedida e você é o único capaz de tirar-nos desse apuro. Não o incomodaríamos se o morto fosse qualquer um, mas você compreende: trata-se do secretário da Chancelaria… Não se pode enterrar uma pessoa de tal categoria sem ao menos um discursinho.

O secretário? — diz bocejando Zapoikin. — Aquele bêbado?

Sim, o bêbado! Depois, iremos comer. Haverá carnes e mais quitutes, e lhe pagarão o carro. Vamos, menino! Pronuncie, no cemitério, um discurso digno de Cícero e lhe agradeceremos do fundo da alma.

Zapoikin, de acordo com o companheiro, imprime à fisionomia um ar melancólico, saindo ambos para a rua.

Conheci bem o secretário — diz, subindo o carro. — Era um canalha, sem-vergonha como poucos (que Deus o tenha em santa glória).

Fique quieto: não é bom insultar os defuntos.

Tem razão: “aut mortuis nihil bene”. Contudo, foi um sem-vergonha de marca e ninguém me negará.

Os amigos alcançam o cortejo e acompanharam a comitiva, caminhando a passo lento, o que lhes permite entrar nos bares que encontram no percurso, a fim de tomar alguns tragos de aguardente.

No cemitério, canta-se um responso. Sogra, esposa e cunhada choram muito, conforme o costume. Quando os coveiros baixam o ataúde à cova, exclama a esposa: “Deixem-me ir com ele!”, mas não o acompanha à tumba, certamente lembrando-se da pensão que vai receber. Quando tudo se acalma, Zapoikin adianta-se e toma a palavra:

Que vejo e que ouço! Será um pesadelo esse féretro e essas faces desesperadas? Não, desafortunadamente. Não é um sonho, e os meus olhos não me enganam. Aquele que há pouco vimos tão vigoroso, tão jovem e entusiasta, que aos olhos de todos levava uma vida laboriosa, carreando para a colmeia do Estado o fruto de seu trabalho, ei-lo imóvel, convertido em pó... A morte inflexível arrebatou-nos quando, apesar da idade, estava ainda na plenitude das forças e pleno de esperanças. Que perda irreparável! Quem o poderá substituir? Foi escravo do nobilitante dever. Jamais tinha repouso, passando as noites em claro. Era honrado e desinteressado... Desdenhava aqueles que o incitavam a proceder prejudicando os interesses públicos, aqueles que o procuravam subornar, fazendo brilhar a seus olhos bens terrestres. Fomos testemunhas de como Prokopi Osipovitch repartia o pequeno soldo entre os companheiros necessitados e, eis-nos aqui, para exemplo, a escutar os lamentos dos órfãos e das viúvas que viviam de sua generosidade. Consagrado ao dever e às obras de caridade, não pensava sequer em distrair-se, nem em alegrias domésticas, preferindo permanecer solteiro. Jamais teremos companheiro mais leal! Parece-me que ainda o vejo à minha frente, o rosto barbeado, o sorriso bondoso. Parece-me ainda ouvir-lhe a doce voz. Descansa em paz, Prokopi Osipovitch! Repousa tranquilo, nobre trabalhador!

Zapoikin continua o discurso, sem perceber que, no auditório, olham-se um aos outros com demonstração de assombro.

Seu discurso agrada e consegue arrancar algumas lágrimas. Entretanto, muitas frases causam assombro. Principalmente porque chamava ao defunto Prokopi Osipovitch, quando o seu nome era Kiril Ivanovitch. Todos sabiam-no casado, vivendo em constantes disputas com a legítima esposa e dizia-o solteiro. Por fim, o defunto usava uma grande barba vermelha e não se barbeava desde que se conhecia por gente, não se compreendendo, portanto, a alusão ao seu rosto barbeado. Os ouvintes, abismados, falavam em voz baixa e encolhiam os ombros:

Prokopi Osipovitch — continua o orador —, teu semblante não era formoso, feio talvez, porém poderíamos considerá-lo como de irresistível simpatia. Tinhas um gênio difícil e sombrio, mas todos sabíamos que, sob tua aparência rude, pulsava um coração fiel de desvelado amigo!

Repentinamente, passa-se algo extraordinário no orador. Fixa, com visível sinal de agitação, o olhar em um ponto e fica calado, a boca aberta.

Mas ele está vivo! — exclama com voz trêmula, voltando-se para Polplavisko.

Quem está vivo?

Prokopi Osipovitch! Está ali, ao lado do mausoléu!

Pois é claro! Ele ainda não morreu. Quem faleceu foi Kiril Ivanovitch.

Você não me disse que o secretário havia morrido?

O secretário era Kiril Ivanovitch! Foi você quem embrulhou tudo. Prokopo Osipovicth foi secretário há oito anos: transferiram-no para o segundo departamento como chefe de seção.

Você não me avisou nada!…

Olhe, continue a falar. Estão olhando!

Zapoikin vira-se e continua o discurso interrompido.

Ao lado do mausoléu, de fato, encontra-se Prokopi Osipovitch, velho, rosto barbeado, a olhar, de cenho franzido, o orador.

Que bonito fiasco o seu! — dizem-lhe os funcionários, voltando do cemitério em companhia de Zapoikin. — Enterrou homem vivo...

É imperdoável, meu senhor — murmura Prokopi Osipovitch. — Seu discurso pode ser apropriado a um morto, mas, tratando-se de um vivo, não é mais que mordacidade. E de que você me chamava? De desinteressado, incorruptível. Tais coisas, referindo-se a um vivo, só pode significar pura ironia! Além disso, quem o autorizou a falar de meu semblante? Por feio ou simpático que fosse, para que declará-lo publicamente? Chega até a ser um insulto!


Fonte: Letras e Artes: Suplemento de A Manhã (RJ), 23 de maio de 1948.

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