AS NAMORADAS DO VISCONDE - Conto Humorístico de Gervásio Lobato
AS NAMORADAS DO VISCONDE
Gervásio Lobato
(1850 – 1895)
Os criados do Hotel Bragança andavam já intrigados e massados com tantas cartas. Todo o santo dia era o correio à porta com cartas para o senhor Visconde.
O conselheiro, homem grave, sisudo, respeitável, casado com uma mulher encantadora, era primo do visconde e como ele estava aqui de passagem, um mês se tanto, nos dias em que o visconde não jantava em sua casa, vinha acompanhá-lo a jantar no hotel.
Ao jantar, ao almoço, a toda a hora, o conselheiro fazia-lhe as honras da terra com uma amabilidade implacável. Mas o que o desapontava muito, o que o desgostava imenso era que, de vez em quando, o visconde fugia-lhe das mãos como uma enguia.
Tinha que fazer, dizia que precisava estar a tantas horas num sítio.
E ele aí ia, deixando o conselheiro todo desconsolado e pesaroso.
Que demônio teria o visconde que fazer em tantos sítios? De mais a mais, já não era criança. Tinha passado os cinquenta, era feio, pintado, retinto: não podia ser entrevistas d'amor, aquilo? Que demônio seria então?
Outra coisa que o intrigava também era a imensidade de cartas que ele recebia a toda a hora. Ao jantar, com cada entrada, era servida uma carta, com a regularidade de menu bem cumprido.
Que demônio seria aquilo? Um dia tirou-se dos seus cuidados e perguntou-lhe:
— Ó visconde! Diga-me cá: que diabo de correspondência tão ativa tem você?
—Olhe, cheire! — disse-lhe negligentemente o visconde, chegando-lhe ao nariz a carta que recebera.
O conselheiro fungou — era um perfume inebriante a feno.
Compreendeu e sorriu.
—Maganão!
Dali a nada, linguado au gratin —outra carta.
—Deixa-as ver.
—Para quê?
— Exijo!— declamou ele, melodramático.
O conselheiro olhou para o visconde; o visconde deu-lha a cheirar.
Mais feno.
Dindonneau truffé—carta.
O conselheiro não esperou que o visconde lha desse. Avançou logo o nariz. Sempre feno.
O conselheiro estava atordoado e espantado. E fossem lá fiarse nas aparências! Quem havia de dizer que aquele visconde, que parecia um boneco mal feito de loja d’algibebe, era um conquistador daquela força e daqueles cheiros! E ele que o metera na sua intimidade, que o apresentara a sua mulher, que acolhera aquela víbora no seu seio de conselheiro e de marido! E o resto do jantar comeu-o preocupado.
No dia imediato, ao almoço, estava no quarto do visconde, quando chegou outra carta. O visconde abriu-a, leu-a e deixou-a aberta em cima da cômoda. Mal egle voltou costas, o conselheiro foi-se a ela cheio de curiosidade:
“Querido da minha alma.
Às 4 horas no Campo Grande. Não faltes, anjo idolatrado. Sabes como eu te adoro.
Tua
G.”
—Onde demônio eu já vi esta letra? — disse consigo o conselheiro. E cheirou-a. Era feno por uma pá velha.
Às três horas, o visconde disse-lhe:
— Meu amigo, agora há de me permitir, tenho umas voltas a dar…
—Entrevista, hein?
—Não há remédio… elas não me deixam.
—Aposto que é a do feno.
—Como adivinhou?…
Quando o conselheiro entrou em casa, sua mulher apeava-se de seu landau.
—Donde vens, filhinha? — perguntou ele muito amável.
— Do Campo Grande.
—Ah! Do campo Grande?…
—Fui lá dar um passeio. Está bonita a Avenida Estefânia.
— Está, está muito bonita — resmungou ele, cheirando-lhe de repente a feno.
Quando ia para a mesa, apareceu o visconde.
— Então, já sei que esteve no Campo Grande.
— Esteve? — perguntou a conselheira.
— Não, minha prima. Não vou lá há que anos. Hoje estive em Belém.
O conselheiro fez-se pálido.
— Mente como um criminoso — disse ele com os seus botões.
No dia imediato, o conselheiro meteu-se logo pela manhã no quarto do visconde. Veio a carta fatal. Era feno. Na primeira ocasião que teve, leu-a:
“Anjo adorado,
Às 4 horas no Campo Grande, não faltes.
Tua para sempre,
S.”
—A inicial é outra, mas o cheiro e a letra são os mesmos. Onde demônio vi eu já esta letra?
E meteu a carta na algibeira.
Às 3 horas, o visconde despediu-se, ficando de ir jantar com o conselheiro.
Às 5 horas e meia, o conselheiro viu apear-se do seu landau sua mulher e o visconde. Era demais.
Durante o jantar conteve-se para não dar escândalo. Sua mulher disse naturalmente que tinha encontrado o visconde no Chiado.
—Bem te percebo — pensou o conselheiro, fulo.
E teve força em si e continuou a conter-se.
À meia-noite, quando, depois de ter deixado o visconde no hotel, chegou à casa, o conselheiro encontrou sua mulher a escrever a uma das suas mais íntimas amigas, à Clarinha, sentada à sua pequena secretária d'ébano.
— O que estás a fazer? — perguntou ele, curiosamente.
— A escrever.
Ele debruçou-se ávido sobre a secretária, e olhou para a letra de sua mulher. Não era.
—Estou a escrever à Clarinha.
—Tens aí cartas dela? — perguntou o conselheiro, iluminado por um raio de luz.
“A Clarinha é a sua íntima, é quem lhe escreve as cartas para ela se não comprometer”, pensou o conselheiro com uma lucidez d’espírito a que não estava nada habituado.
—Cartas da Clarinha? Tenho.
—Deixe-as ver.
— Para quê?
— Exijo! — declamou ele, melodramático.
E emendando logo:
— Tenho vontade de lhe ver a caligrafia.
—Estão aqui — disse ela, espantada — e começou a procurar num maço de cartas. O conselheiro olhava atentamente para essas cartas. De repente, solta um grito e lança-se furioso sobre um sobrescrito, gritando!
—Cá está ela! Ah, eu bem o suspeitava!
—Mas o que tens tu? — perguntou, assustada, sua mulher.
— O que tenho? Tenho que esta letra é a mesma letra desta carta, infame — disse ele, tirando da algibeira a carta do visconde e comparando-as. — É mesmo assim. Ande, cheire, cheire, miserável!
—Mas o que quer dizer isto?
—Quer dizer que esta carta é da Clarinha, da Clarinha, que é sua cúmplice.
— Não percebo nada do que estás para aí a dizer — tornou sua mulher, um pouco zangada.
—De quem é esta carta? É da Clarinha, não é?
— Essa carta é do nosso primo, é do visconde.
—Do visconde? —Exclamou o conselheiro, sem perceber nada.
— Foi a carta de parabéns que ele me mandou no dia dos meus anos.
—Do visconde? E então esta?
E mostrou a outra carta, a da entrevista do Campo Grande.
— É do visconde também…
—Do visconde? — repetiu pela terceira vez o conselheiro admirado. A letra e o cheiro… do visconde!
Sua mulher desatou a rir. De repente, compreendera tudo: o visconde escrevia cartas a si mesmo para se dar ares de conquistador… para o carteiro do distrito.
O conselheiro riu muito… e nunca mais lhe cheirou a feno…
Fontes: O Vassourense/MG, edição de 28 de fevereiro de 1886; A Illustração Portugueza/Lisboa, 31 de agosto de 1885.
Comentários
Postar um comentário