A CAUÇÃO - Conto - Friedrich Schiller
A CAUÇÃO
Friedrich Schiller
(1759 – 1805)
Tradução de autor desconhecido do início do séc. XX
Meros esconde um punhal sob o manto e entra na casa de Dionísio de Siracusa. Os satélites fazem-no parar e prendem-no a cadeias.
—Que terias feito com esse punhal? — pergunta-lhe o príncipe enfurecido.
—Teria libertado a cidade dum tirano!
— Expiarás esse desejo sobre a cruz.
— Estou pronto a morrer e não peço perdão, mas digna-te conceder-me um favor: três dias de espera para unir minha irmã a seu noivo. Meu amigo será minha caução e, se eu faltar à palavra dada nele, poderás vingar-te.
O rei pôs-se a rir e, depois dum instante de reflexão, respondeu num tom irônico:
—Concedo-te três dias; mas pensa que, se não tiveres reaparecido nesse prazo expirado, teu amigo tomará teu lugar, e te considero quite.
Meros corre à casa do amigo:
— O rei quer que eu expie sobre a cruz a minha infeliz tentativa; todavia, concede-me três dias para assistir ao casamento de minha irmã; sê minha caução junto a ele até que eu volte.
O amigo abraça-o em silêncio e vai se entregar ao tirano, enquanto Meros se afasta. Antes da terceira aurora, havia unido a irmã ao noivo e voltava já apressadamente para não exceder o prazo fatal.
Mas uma chuva contínua estorva a rapidez da marcha; as fontes das montanhas transformam-se em torrentes, e os regatos formam-se em rios. Apoiado sobre o cajado de viagem, Meros chega à margem dum ribeiro e vê de repente as grandes águas romperem a ponte que reunia as duas margens e destruírem os arcos com o fragor do trovão.
Desolado com tal obstáculo, agita-se em vão sobre a praia, lança ao longe impacientes olhares: nenhuma barca que se aventure a abandonar a margem para conduzi-lo para onde os desejos o chamam; nenhum barqueiro que se dirija para ele… e a torrente cresce como um mar.
Cai sobre a praia e chora, erguendo as mãos ao céu:
— Ó Júpiter, acalma as águas estrepitantes! O tempo foge, o Sol chega a seu ocaso; se ele cai mais adiante, chegarei muito tarde para libertar meu amigo!
O furor das vagas não faz senão aumentar, as águas impelem as águas e as horas afugentam as horas… Meros não hesita mais; atira-se no meio do rio enfurecido, luta ardentemente. Deus lhe conceda a vitória: alcançou a outra margem.
Apressa seu passo, dando graças ao céu, quando, de repente, do mais espesso da floresta, uma quadrilha de salteadores atira-se sobre ele, ávida de morticínio, e impede-lhe a passagem com clavas ameaçadoras.
— O que quereis de mim? Não possuo senão minha vida e devo-a ao rei, ao meu amigo, que corro a salvar! — diz, e toma a clava do primeiro que dele se aproxima; três bandidos caem sob os golpes e os outros fogem.
O Sol é ardente. Meros sente os joelhos se dobrarem, alquebrados pela fadiga.
— Oh, tu que me salvaste da mão dos bandidos e do furor do rio, deixar-me-ás morrer aqui, traindo aquele que me ama? O que ouço? Seria um riacho o que me anuncia esse doce murmúrio?
Para, escuta; uma fonte alegre e irrequieta brotou dum rochedo vizinho: o viajante se abaixa, ébrio de alegria, e refresca o corpo ardente.
E já o Sol, lançando olhares através a folhagem, desenha ao longo do caminho as formas das árvores em sombras gigantescas: dois viajantes passam, Meros os precede, mas ouve-os dizer entre si:
—A essa hora, colocam-no na cruz!
O desespero dá-lhe asas, o temor estimula-o ainda… Enfim, as torres longínquas de Siracusa aparecem aos raios do poente. Ele encontra logo Filóstrato, o fiel guarda da casa, que o reconhece e treme.
— Foge, pois! Não há mais tempo de salvar teu amigo. Salva, ao menos, a tua própria vida… Nesse momento, ele expira. De hora em hora te esperava, sem perder a esperança, mas as zombarias do tirano não me tinham podido abalar a confiança em ti.
— Pois bem, se não posso salvá-lo, partilharei ao menos de sua sorte: que o sanguinário tirano não possa dizer que um amigo traiu o amigo. Que ele faça duas vítimas e creia ainda na virtude!
O Sol se apagava quando Meros chega às portas da cidade. Avista o cadafalso e a multidão que o cerca. Levavam já o amigo com uma corda para o porem na cruz:
—Para, carrasco! Eis-me! Esse homem era a minha caução!
O povo admira…
Os dois amigos se abraçam, chorando, entre dor e alegria. Ninguém pôde ser insensível a um tal espetáculo. O próprio rei sabe, com emoção, a surpreendente notícia, e fá-los conduzir diante do trono.
Muito tempo os olha, com surpresa.
— Vossa conduta subjugou-me o coração… A fé não é, pois, uma palavra vã… Tenho, por minha vez, um pedido a vos dirigir. Dignai-vos admitir-me em vossa união e que nossos três corações não formem senão um só.
Fonte: “Leitura para Todos”, edição de janeiro de 1924.
Ilustração: PS/Copilot.
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