MEMÓRIAS - Crônica - Thomaz Soriano Filho

MEMÓRIAS…1

Thomaz Soriano Filho2

(22/05/1890 – 28/01/1919)


Ao Dr. A. de A.



A alegria e a saudade que sentimos quando recordamos fatos de nossa meninice são um fenômeno físico muito constante e comum aos espíritos bem formados. Alegria por termos passado por coisas tão boas e saudade porque elas já passaram na ampulheta dos “tempos que não voltam mais”.

Corria o mês de março, no meio das ventanias dos dias hiemais, quando eu e meu pai nos preparamos para assistir às festas da Semana Santa em minha terra. Partimos e eu ia tão satisfeito ver a terra onde nasci e onde há muito tempo não pisava! Após um dia de viagem fatigante, saltamos na estaçãozinha—B às 7 horas da noite. Meu pai tomou a frente do caminho que nos conduzia à casa de nossa visita, cujo pessoal só eu não conhecia então. Chegados lá, trocaram-se os abraços e imediatamente nos foi oferecido um jantar. Eu, muito acanhado, apenas respondia ao que me perguntavam; e fiquei ainda mais quando vi que não havia ali um só rapazote, pois era tudo mulher. Findo o jantar, me sacudiram dentro duma roda de meninas. Sentei-me, mas sem ousar dizer uma palavra. Qual não foi, porém, minha surpresa quando a mais bonita delas, uma menina morena e robusta, de olhos grandes e pretos, mais ou menos de minha altura, ergueu-se com a voluptuosidade de uma borboleta e convidou-me a passear?! Corei com o convite da menina e estonteado ergui-me. Começamos a descer uma ladeira da rua que fica defronte de sua casa. Dados uns dez passos, eu já era outro, não tinha o mínimo acanhamento, tanto que comecei por perguntar-lhe o nome. Daí por diante, já descíamos às carreiras, a mão dela presa por minha mão. Licença, leitores, para transcrever aqui o que diz o velho Montegazza sobre os amores juvenis: “Como a borboleta que, saída apenas dos invólucros da crisálida, inda leva nas asas mal abertas os restos da anafaia em que por tanto tempo se envolvera, o amor, a paixão, que mais madruga no homem saído apenas da infância, traz consigo os despojos desta”3. Assim era meu amor, a poucos minutos da saída dos envólucros da crisálida, juvenil, cheio de adorações e sempre tímido.

A menina era tentadora e ainda mais me parecia quando seus cabelos longos e pretos, soprados pela brisa fagueira da noite, vinham bater em meu rosto. Apesar de sua tentação, eu nunca ousei mais do que lhe apertar as mãos e isto de modo que ela não sentisse. Quantas vezes ela, cansada de subir e descer comigo, às carreiras, a rua deserta, não o descansava, encostada no meu ombro?

Enquanto que os outros confessavam-se durante toda a Semana Santa, eu me confessava com os cabelos dela, longos e pretos que, soprados pela brisa fagueira, batiam no meu rosto.

Fatos e memórias!


Recife, 21 do outubro de 1904.



Ilustração: PS/Copilot.

Notas:

1Publicado originariamente no Diário de Pernambuco, edição de 23 de outubro de 1904. O autor tinha apenas 14 anos quando publicou esta crônica (N. do E.)

2O autor, falecido aos 28 anos, vítima da gripe espanhola, quando em exercício do cargo de deputado do estado do Rio Grande do Norte, era tio-avô do editor. Era casado com Alzira Soriano, que veio a ser a primeira mulher a eleger-se e a investir-se no cargo de prefeita no Brasil e na América Latina (N. do E.)

3Tradução de Cândido F. (N. do A., adaptada.)

 

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